Educação Física nas escolas, o elo mais fraco

Os professores de Educação Física estão indignados com o que consideram ser o desinvestimento do Governo nesta disciplina. E perguntam: se em todo o lado ouvimos falar da importância de praticar actividade física e combater o sedentarismo, porque é que nas escolas assistimos exactamente ao oposto?

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Adriano Miranda

Um desinvestimento que, diz Nuno Ferro, presidente da Sociedade Portuguesa de Educação Física (SPEF), “começou claramente na actual legislatura”. O “primeiro sinal”, explica, surgiu com o decreto-lei 139 de 2012, que reduz a carga horária da EF no 3.º ciclo (do 7.º ao 9.º anos, em que passou a fazer parte de uma área de Expressões e Tecnologias) e no secundário (do 9.º ao 12.º, em que passou de 180 minutos semanais para 150).

O “segundo sinal” foi o facto de, de acordo com o mesmo decreto-lei, a EF deixar de contar para a nota final do aluno e para a média de acesso ao ensino superior. “Os alunos que estão numa aula que conta para a avaliação têm uma postura completamente diferente da que têm se souberem que não vai contar para nada”, sublinha Nuno Ferro. “E não nos foi dado um único argumento que sustente esta medida. A única coisa que nos foi dita foi que se pretendia tirar de cima dos professores de EF essa responsabilidade. Mas o nosso trabalho como professores, seja de EF, de Português ou de Matemática, é assumir o que representamos na vida dos alunos e agirmos em conformidade com o que eles fazem nas nossas aulas.”

O responsável da SPEF acredita que por trás da medida está a ideia de que uma má nota a EF poderia baixar a média de um aluno excelente a todas as outras disciplinas e pôr em causa o seu acesso à universidade. Mas, afirma, trata-se de um argumento que “não é fundamentado”. E explica porquê: “Pedimos a várias escolas para fazerem o levantamento daquilo que eram os efeitos da nota de EF e verificámos que a percentagem de alunos prejudicados na sua média final por causa dela é de 2 a 2,5%. Sendo que a nota de EF beneficiava os alunos em cerca de 46% dos casos. Trata-se de um estudo feito em 2012 em escolas da região de Lisboa, às quais pedimos esses dados, que o Ministério da Educação não tem.”

Além disso, Nuno Ferro argumenta que “não é possível a um aluno de 19 e 20 noutras disciplinas ser fraco a EF se a tiver, como está previsto pela lei, desde o 1.º ao 12.º ano”. Isto porque “a exigência classificativa da EF não tem nada a ver com criar talentos desportivos”, explica. “O que nós queremos é criar nos alunos o desenvolvimento de uma capacidade de desempenho motora que lhes permita, de forma ecléctica, abarcar várias áreas, da desportiva às actividades de exploração da natureza, passando pelas rítmicas e expressivas.”

E o que é, afinal, valorizado por um professor de EF? “As mesmas características que fazem um bom aluno em qualquer disciplina: tem que ser um aluno que cumpra, que seja aplicado e que procure o seu desenvolvimento. Um aluno que só lá vai mostrar aquilo que já sabe não satisfaz as exigências da EF.” Ou seja, “aquela ideia de que um aluno que é muito bom no futebol no clube da terra só por isso vai ter boa nota não é verdade, porque ele tem que ser bom também a dançar, por exemplo.”

Trabalho de equipa
A EF pretende também desenvolver o trabalho em equipa. “O aluno que pensa que é tão bom que pode pegar na bola e fintar todos, está a ter um comportamento que não é valorizado. A finta é tão importante como a capacidade de cooperar com os outros, o ter espírito de equipa, ajudar o outro, e a até a capacidade de demonstrar dificuldades perante os outros.”

Um problema que começa a aparecer com mais frequência, continua Nuno Ferro, é os alunos chegarem ao 3.º ciclo ou ao secundário sem a tal formação básica que deviam ter tido desde o 1.º ano. “Um dos grandes males de que padece a nossa área prende-se com a forma como é dada a EF no 1.º ciclo, que ainda funciona muito na lógica de ser apenas um professor que lecciona tudo. As áreas de expressão podiam ser dadas por um professor coadjuvante, mas em muitos casos nunca surgiram condições para que houvesse esses professores. É claramente uma área em défice, o que faz com que, por hipótese, possa haver miúdos entre os 6 e os 10 anos que não têm acesso a qualquer tipo de actividade física organizada, o que é um elemento muito negativo para todo o percurso deles.”

É muito importante começar cedo, insiste. “No fim do pré-escolar e início do 1.º ciclo os miúdos estão em idades críticas para alguns dos padrões motores fundamentais, que são a base para que possam ser pessoas fisicamente bem educadas. Começarmos esse processo de educação motora no 2.º ciclo é tarde. Apanhamos miúdos que já perderam muito do que eram as suas possibilidades, e vão estar sempre com algum atraso em relação aos que começaram no 1.º ciclo.”

Importância dos rankings
Claro que muito depende da autonomia das escolas e das opções que estas queiram fazer. Mas mesmo esta autonomia é de certa forma condicionada, afirma o responsável da SPEF. “Um director de uma escola é condicionado por rankings. Quanto melhor estiver no ranking mais créditos a escola recebe, e a subida no ranking é feita com base nos resultados a Matemática e Português. Se esse director der mais tempo a essas duas disciplinas, em princípio os alunos vão ter melhores resultados. E a que disciplinas é que ele pode ir tirar tempo? Às que a lei permite, ou seja à EF. Quando falamos de autonomia temos que perceber que essa autonomia está moldada por princípios que valorizam outras coisas.”

O que representa uma contradição, afirma também José Alves Diniz, presidente da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa: “Há vários estudos internacionais sobre as implicações que a actividade física tem para as disciplinas ditas cognitivas, nomeadamente a matemática e a língua materna, que associam claramente a prática de actividade física a melhores resultados nessas duas áreas”.

Um desenvolvimento motor mais débil tem consequências no cognitivo, sublinha. “Temos cada vez mais crianças e jovens que não conseguem fazer coisas simples do ponto de vista motor, como andar de bicicleta ou passar por equilíbrios instáveis, como um tronco de árvore, num percurso simples. Cada vez há menos actividade física espontânea. E os pais preferem tê-las ao pé deles no sofá a ver televisão ou a jogar computador e não percebem que isso representa um risco muito grande ou até superior ao de estarem a brincar num jardim e a subir a árvores.”

Há raízes culturais na forma como os portugueses encaram a educação física. “Existem estudos que indicam que os adultos em Portugal, para além de fazerem muito pouca actividade física, são, na Europa, os que se mostram menos preocupados com essa questão”, refere José Alves Diniz. “Na Finlândia, cerca de 70% fazem actividade física com regularidade, mas mesmo assim consideram que deviam fazer mais, enquanto em Portugal só 20% fazem, mas acham que já fazem o suficiente.”

Nuno Ferro explica também que “a EF como temos hoje nas escolas portuguesas é uma conquista do 25 de Abril” e lembra que só em 1993 é que apareceram pela primeira vez os programas nacionais de educação física, o que provocou uma enorme mudança positiva.  

Nos últimos anos tem-se notado uma pequena melhoria, com mais gente a dedicar-se à actividade física, mas, lamenta José Alves Diniz, não há incentivos para isso. “As políticas públicas que desvalorizam a presença da educação física nas escolas enviam precisamente uma imagem contrária”, diz, referindo vários estudos, nomeadamente nos Estados Unidos, que apontam no sentido oposto, ou seja, para que seja dada maior importância à actividade física, ligando-a a melhores resultados escolares. Um estudo recente, da Universidade de Toronto, no Canadá, conclui até que o desporto e a ginástica nas escolas contribui para reduzir os níveis de stress, ansiedade e depressão.

Escolher o que mais interessa
Nuno Ferro acrescenta que o Desporto Escolar, uma opção em que o aluno escolhe a modalidade de que mais gosta, não serve como substituição, porque “cumpre objectivos diferentes”. “Há muitas pessoas, mesmo na área do desporto, que acham que a formação dos alunos deve ser especializada desde cedo, mas nós defendemos que o que lhes deve ser dado é uma base alargada para que depois possam escolher a via que mais lhes interessa.”

Nuno Ferro diz ter recolhido dados sobre a prática do Desporto Escolar que lhe permitiram chegar à conclusão que este é praticado por apenas 14% dos alunos. “E o que acontece com os outros 86% se não houver uma disciplina de EF no currículo?”, interroga-se. “É por isso que dizemos que esse maior investimento que possa existir no Desporto Escolar nunca poderá substituir o resto.”

Ana Santos, presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, defende, por seu lado, que é “urgente” aumentar o número de horas de prática do Desporto Escolar, em que os miúdos se dedicam à modalidade que preferem. “O Desporto Escolar – de onde saem os campeões olímpicos do atletismo – devia assentar em projectos de regularidade e continuidade e não ser deixado ao sabor da mobilidade dos professores e respectivas apetências, com quadro competitivo na escola e inter-escolas em várias modalidades, assumido sem complexos. As modalidades de sucesso deviam ser uma das marcas de identidade de cada Agrupamento. A competição desportiva faz bem, contrariamente ao que se supõe - saber perder é muito importante e querer vencer, no interior de um quadro normativo, é super-pedagógico.”

Por outro lado, é também muito crítica do facto de a avaliação a EF não contar para a média final. O problema, na opinião de Ana Santos, é que “grande parte das escolas faz adaptações ao programa de EF, não garantindo uniformidade na sua aplicação” nem nos critérios de avaliação, o que acaba por “colocar pais e encarregados de educação (maioritariamente dos bons alunos) contra a avaliação na disciplina”.

E conclui: “A avaliação na EF é, por todos os motivos, simbolicamente importante porque avalia competências do saber fazer diferentes das outras disciplinas. Não basta ‘marrar’ as componentes críticas do encestar uma bola ou marcar um golo há que vivê-las e senti-las com o corpo. Para além do mais, há um conjunto de valores ligados com o trabalho em equipa, respeito de regras, disciplina, e até mesmo de sacrifício, que são cruciais na educação dos jovens.”

Perante estes argumentos, o que têm sido as respostas dos responsáveis políticos aos protestos dos professores? “Concordância e silêncio”, responde Nuno Ferro. “Nunca nos foi dado um único argumento. Em última análise, o que dizem é que estas eram medidas inscritas no programa do Governo e que tinham que ser aplicadas. Não quero entrar por este debate, mas o que vemos é que tem sido atribuído cada vez mais tempo a disciplinas como o Português e a Matemática e os resultados dos alunos não são compatíveis com esse incremento, o que poderá indicar que mais tempo por si só não vai resolver o problema.”

Não se trata de desvalorizar os rankings, frisa. “Mas estes não podem ser o universo das preocupações. Há uma formação que passa pela educação física, visual, musical, áreas que deviam fazer parte do património formativo e que são cada vez mais retiradas porque, simplesmente, o tempo não chega para tudo.”

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