Quatro mulheres em 40 imagens ao longo de 40 anos
Quatro irmãs foram fotografadas durante 40 anos. Eis a história das Irmãs Brown
Tudo começou por acaso. Em Agosto de 1974, Nicholas Nixon tinha 26 anos e estava casado há três com Beverley, conhecida como Bebe, uma das irmãs Brown. Bebe e as suas três irmãs, Laurie, Heather e Mimi. Nunca tinha fotografado as quatro irmãs juntas e o resultado dessa primeira imagem não lhe agradou. Destruiu o negativo. Quase um ano depois, em Julho de 1975, fez outra fotografia que lhe pareceu suficientemente boa para a manter. Naquela altura, Mimi tinha 15 anos, Laurie, 21, Heather 23 e Bebe 25. Um ano depois, em Junho de 1976, Laurie Brown terminava a faculdade e Nicholas Nixon voltou a fotografar as irmãs. Seria essa segunda fotografia do grupo a mudar o curso dos acontecimentos. Nesse ano, Nixon tinha a sua primeira exposição individual no MoMA, organizada por John Szarkowski (fotógrafo, crítico, historiador, durante 30 anos director do departamento de fotografia do MoMA). Eram imagens que reflectiam o seu trabalho como captor de paisagens naturais e construídas, onde entrava o humano e se revelava um contador de intimidades, nunca intrusivo, cúmplice de uma relação onde tinha sido capaz de entrar sem a modificar. Ele era o confidente, o fotógrafo capaz de, mesmo na fotografia mais reveladora, guardar o segredo do que revelava. Nessa exposição entravam as duas fotografias tiradas às irmãs Brown ao lado de paisagens urbanas e naturais, sobretudo de Boston. No livro agora publicado pelo MoMA para celebrar os 40 anos da série dedicada às Irmãs Brown, estão impressas imagens de conjunto que reflectem o modo como essa exposição foi montada e de como as duas fotos foram ali integradas.
Nicholas Nixon nunca gostou de holofotes, a câmara é raro estar apontada para ele. Tem 67 anos, nasceu em Detroit em 1947, foi estudar inglês para a universidade do Michigan e aí descobriu que queria ser fotógrafo em vez de escritor. Poder contar histórias através de imagens, mas com os mesmos pressupostos de um narrador que utiliza palavras: captar a simplicidade, a crueza dos momentos, as emoções no estado mais puro. Admirador de William Faulkner, Eudora Welty, Proust, Anthony Trollope, interessava-lhe a crueza do quotidiano, o que não se é capaz de dizer porque se intui que se ficará sempre aquém, na fronteira do possível.
A descoberta da fotografia aconteceu de modo casual, quando captou momentos dos seus colegas de curso. Foram os primeiros estudos fotográficos. Daí, passou para as paisagens do sul rural dos Estados Unidos, e depois para os ambientes sociais e urbanos dos arredores de Boston, cidade para onde se mudou no início da década de setenta. Nas viagens que fazia a Nova Iorque, aplicava o mesmo olhar. Fosse a imensidão de prédios ou o quotidiano de uma rua, até a intimidade doméstica ou de corpos. Os seus trabalhos foram expostos nos principais museus dos Estados Unidos, mas foi com a a série de fotografias das irmãs Brown que se tornou famoso. É uma história inquietante, tão perturbadora quanto bonita, mais uma vez pela aparente simplicidade com que transmite um dos mais angustiantes efeitos: o do tempo.
Na livraria do MoMA os admiradores chegam aos poucos. Não há fila. Nicholas Nixon não é o que se pode chamar uma vedeta. Pede desculpa por não dar uma entrevista, por não falar do tema que lhe tem ocupado quarenta anos de vida e a atenção contínua dos curadores de fotografia do MoMA: “A história não é só minha e tudo o que posso contar sobre ela está nas fotografias. Perdoe-me.”
É como se o silêncio sobre aquelas fotografias fosse a melhor condição para as entender enquanto testemunhos emocional e visualmente reveladores do efeito do tal tempo, do que é envelhecer num contexto onde cada expressão mostra tanto essa viagem quanto uma ruga ou uma mancha na pele. Estamos no campo da arte enquanto possibilidade de recriação, cada observador pode criar a sua narrativa pessoal para cada um dos momentos captados por Nixon, construir uma história para cada uma das irmãs em particular e da relação entre elas.
Aconteceu fotografá-las na mesma perspectiva e querendo o mesmo efeito dos trabalhos que fazia com as paisagens com a arquitectura. Chamava-lhes “vistas” e englobavam o que um olhar mais abrangente pode retirar delas, tentando dar-lhes um significado mais profundo do que o da aparente captação do momento. Coisas ou actos tão simples e simbólicos como o exemplo que ele dava quando lhe pediam para falar do que fazia: alguém a atar um sapato.
A paisagem de Nixon não excluía o humano. Ele foi dizendo em várias entrevistas mais recentes que o seu objectivo então era o de colocar os seus sentimentos ao serviço de uma descrição clara, limpa do tema ou instante que captava. Fosse na arquitectura ou num corpo. Era a tal noção de contador de histórias que lhe vinha dos seus tempos de estudante no Michigan. Nas histórias que queria contar em fotografia ele era um narrador omnisciente, alguém sabedor de tudo, e que quer passar esse saber através de uma fotografia aparentemente simples. Captava um momento na paisagem porque o queria eternizar justamente daquela forma. O olhar era, assumidamente, o dele, trabalhando exaustivamente em cada impressão até atingir o objectivo: agarrar quem a vê de modo a que o espectador se apropriasse ele mesmo desse momento e o transformasse seu. Ou seja, qualquer coisa muito semelhante ao que acontece quando um leitor é arrebatado por um texto. E nesse trabalho, além das influências literárias, juntavam-se outras. De pintores como Pierre Bonnard, Giotto ou Lucien Freud. Na fotografia, as primeiras influências foram de Charles Marville, Dorothea Lange, Edward Weston ou Lee Friedlander.
Os edifícios em Boston e em Nova Iorque, as pessoas em bairros suburbanos, alunos em escolas, doentes de sida, moribundos, casais na sua intimidade, gente em estados de dor e em alegria. Em 2008, numa conferência que deu na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, afirmou, na forma sempre despretensiosa que o caracteriza, que os seus primeiros impulsos criativos eram um meio de descobrir o mundo que o rodeava através de um momento particular. Essa curiosidade manteve-se ao longo dos anos.
Quando fotografou pela primeira vez as irmãs Brown era tudo isso que ia pela sua cabeça. Tinha-se mudado de Detroit para Boston e começara a conseguir viver das fotografias que fazia, sem cedências ao caminho que ia traçando para si: contar o máximo possível numa fotografia aparentemente linear. Sentia-se grato por conseguir viver disso. Estávamos num tempo em que a fotografia ainda não tinha ascendido ao estatuto que tem actualmente no mundo das artes. Como contou numa entrevista recente à Ahorn Magazine, o fotógrafo era, em 1970, nos tempos de Walter Evans ou Anselm Adams, alguém solitário enquanto artista. Nixon estava entre esses homens sós.
A série das irmãs Brown começava sem fim à vista, impulsionada pelo entusiamo de Szarkowski que as adquiriu para a colecção do museu. Estipularam-se regras mínimas para que o trabalho tivesse continuidade. O grupo de mulheres concordou em juntar-se anualmente para um retrato e acertaram-se duas condições: as irmãs iriam aparecer sempre segundo a mesma ordem — da esquerda para a direita, Heather, Mimi, Bebe e Laurie; e seriam elas a escolher uma única fotografia que as representasse naquele ano. A fotografia eleita seria incluída na série. Seria sempre assim. Nixon fotografava-as e elas teriam a última palavra sobre o trabalho escolhido. Haveria assim uma participação activa de fotógrafo e fotografadas no processo que incluía, necessariamente, uma componente afectiva. Aquelas eram fotografias de família.
Sobre todo este trabalho sempre houve muito poucas palavras. Apenas as suficientes para o contextualizar. Também aí, Nixon era coerente no seu pudor de não revelar nada mais além do necessário e esse necessário estava nas imagens. Sarah Hermanson Meister, curadora do departamento de Fotografia do MoMA e autora do texto que acompanha as fotos no livro, destaca esses pressupostos e as dificuldades que podem estar subjacentes à proposta artística de Nixon. Ou seja, aquela que pode ser uma premissa simples — fotografar quatro irmãs ao longo do tempo — “obedece a uma dinâmica emocional entre marido/cunhado para quem a coerência artística e psicológica está acima de tudo o resto, e que é a partir daí que começa o desafio de apreciar o que esta constante simples pode significar”. Também significativo e “imutável” é o facto de “cada retrato ser feito com câmara oito por oito num tripé e capturada num negativo a preto e branco.”
Passam-se os olhos pelas 40 imagens e é difícil sair dessa paisagem que constitui a vida daquelas quatro mulheres. O “filme” que daí se constrói contém uma essência que é a da própria vida na sua imensa tragédia e beleza. O preto e branco do olhar em frente, o rosto que se vira para o lado, para um lugar a que o observador da foto não tem acesso, o abraço que uma delas dá mais apertado a outra, o desgaste num rosto que no ano seguinte se transformou num sorriso; a tristeza de uma expressão, o envelhecimento que é mais marcante num tempo e se atenua no outro; todas as possibilidades de leitura que se apresentam nessas fotos dão a dimensão da capacidade de Nicholas Nixon de seduzir o observador. Através de uma aparente simplicidade, a da ilusão de não intenção, a da ilusão de que ele não teve outra pretensão a não ser a de fazer uma fotografia de família como tantas outras.
O catálogo/livro cita-o sobre tudo aquilo que ele quis dizer acerca dessa série, que não é mais do que o que sempre quis alcançar com a sua assinatura em cada fotografia que fez. Mais um vez o tal objectivo que traçou para si: criar a ilusão de ser capaz de ver mais do que o olho pode ver se o espectador da fotografia estivesse lá no momento. Estar lá seria menos do que ver a foto. “É basicamente a fotografia mais clara que se pode fazer em fotografia.” Diz mais: que grande parte desse trabalho tem a ver com lealdade ou fidelidade, mas também com fazer uma impressão cuja qualidade de realismo seja tão alta ou elevada ou exigente que possa por vezes parecer surreal. “Gosto tanto disso”, afirma sobre um processo que se pode dividir em duas partes. A primeira levou-lhe cerca cerca de 25 anos em que fez unicamente provas de contacto, impressões de negativos directamente em papel. O resultado era sempre do mesmo tamanho, capaz de revelar detalhes mínimos e continuidade de tom. Primeiro as Irmãs Brown apareciam em oito por dez polegadas e só mais tarde, a partir de 2006, na segunda fase do processo, Nixon passou para o formato de 20 por 24 polegadas, sem nunca ter cedido aos formatos maiores permitidos pela fotografia digital. No seu entender, isso seria comprometer o carácter íntimo que queria dar às suas fotografias.
Mais uma vez é Sarah Hermanson Meister quem justifica a opção no catálogo: “Ele nunca perseguiu as modas e muitos podem argumentar que a principal diferença entre as impressões mais pequenas e as maiores é experimental: as impressões maiores podem sacrificar a intimidade da escala mais pequena, mas podem ser apreciadas a uma distância que sobrevive à distância do tempo.” Como se ao imprimir em maior escala as imagens mais recentes estivesse a apagar ou eliminar daquelas mulheres a sua identidade mais jovem. Perdia-se esse “eu” anterior.
A carga subjectiva inerente a este trabalho é enorme. O silêncio que Nicholas Nixon escolheu para se refugiar sobre ele entende-se tanto quanto mais se olham as imagens. Já emocionaram muita gente nas salas de exposições por onde passaram. As mulheres interrogam-se: “eu expunha-me assim?”.
Na pequena conversa que Nixon teve com a Revista 2 naquela tarde no MoMA ele referiu-se a Bebe, a mulher, como a melhor interlocutora. “Bebe não quer que eu fale disso e o que há para dizer sobre isso ela diz que está no livro.” E no livro ela sublinha que o poder da série feita pelo marido ao longo destes 40 anos não tem nada a ver com escala. Através do modo como o tempo se manifesta fisicamente, “podemos especular acerca do significado de cada expressão, gestos, uma peça de roupa”.
Esse é o poder do trabalho de Nixon. Há quem se refira a ele como um trabalho de autenticidade. Como se passa isso? Como se fala sobre isso, como se ensina alguém a ser fotógrafo segundo esse pressuposto? É o que Nicholas Nixon faz desde 1975, quando começou a ensinar no Massachusetts College of Art. Defendendo que mais importante do que aquilo que se sabe é aquilo que cada um faz. Criticando o método de muitos professores de fotografia que tentam estimular em cada estudante o seu lado mais selvagem ou transgressor e que isso é “terrível” porque pode ser forçado, não autêntico. Também por isso defende que, mais do que ler artigos críticos sobre fotografia, é mais útil ler Yeats, Dante ou, outra vez, Eudora Welty.
A história das Irmãs Brown continua. É um repositório de tudo isto. A vida delas neste encontro com a de Nicholas Nixon passa a ser também o que cada um de nós lê. Cada observador terá uma versão de cada imagem. Cada imagem tem uma data e o local onde foi tirada. E cada imagem faz parte de um todo, a tal história que se reconstrói a cada olhar.
“O trabalho não acabou”, diz Nicholas Nixon à Revista 2. “Continua sem ter data para acabar, mas o essencial do que ele é está aqui. O resto está dependente de variáveis, muitas das quais eu não posso controlar, são as da vida”, sublinha. Mas para já o MoMA decidiu marcar a data como simbólica.
Olhamos para as imagens e como Nixon nos parece pedir, colocamo-nos no lugar de cada uma daquelas mulheres. Surgem questões como a vaidade, o confronto com a verdade. Nicholas Nixon sabe do grau de exposição a que cada uma se submete, por isso, sempre que a foto que elas escolhiam não era a que ele escolheria, era delas a última palavra. Esta é uma história de amor. E será, como ele sintetiza, uma história sempre inacabada.