A princesa palerma

A Revista 2 desafiou o escritor e cronista Valter Hugo Mãe a escrever-nos um Conto de Natal. "A Princesa Palerma" deseja a todos neste Natal, e em todos os dias do ano, o esplendor livre da natureza.

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Um dia, a princesa disse que queria ser enfermeira e imediatamente correu pelo reino que a rapariga estava palerma.

Era comum que andasse ao pé dos bichos, a ver-lhes as patas e as barrigas, a fazer cócegas até aos galináceos mais cacarejantes e destituídos de afecto. Sabiam todos que muitos animais não tinham cultura suficiente para apreciar um carinho, mas a princesa, a crescer para mais tarde herdar a coroa e decidir os destinos do seu povo, gostava de acreditar que o carinho e a ajuda faziam sempre sentido.

O velho rei, todo alterado de preocupação, mandou que lhe chamassem a filha. Que ali fosse diante do trono a explicar-se. E ela lá compareceu. Desarranjada, com o vestido manchado pela verdura das ervas, as mãos a cheirarem ao bafo dos cães, encolhia-se, muito mal preparada para um raspanete. Estava sempre suja, nem penteada direito. E voltou a dizer: quero ser enfermeira, para cuidar das pessoas racionais e irracionais. O rei, espantado e furioso, gritou: tu estás palerma? Aquilo que se dizia à boca fechada passou a ser notícia de jornal. Publicavam-se fotografias das suas unhas com terra, das bainhas das saias descosidas, até das peugadas de terra no chão lustrado do palácio. Tudo servia para mostrar que a princesa era demasiado misturada, não estava instruída para a soberania e para o recato.

Uma rainha não tinha profissão, para lá de ser mandona e vigiar contas e estradas. As rainhas não arranjavam tempo para mais nada. Às vezes, se estivessem bem-dispostas, faziam carinhos nas crianças pobres. Mas apenas se parecessem lavadas e sem piolhos. E apenas se não corressem o risco de lhes desaparecerem os anéis de brilhantes. As rainhas tomavam conta das jóias. Expunham a riqueza dos reinos, como uma garantia de fartura suficiente para os cuidados elementares. E os cães eram para a caça e deviam estar arredados das moças ou mulheres perfumadas e bem vestidas. Tinham pulgas, eram lambentos, lambiam tudo, queria dizer, transmitiam doenças e nojo. Ninguém gostaria de uma rainha doente, enojada ou nojenta. Seria a ruína de uma dinastia. Uma desgraça. O rei dizia estas coisas, gesticulava em círculos aflitos, e todos os súbditos se apiedavam dele. Os súbditos diziam que sim, que sim. O rei era sapiente, equilibrado, muito justo. A sua preocupação era uma ciência política madura. Dependiam completamente da maneira culta como ele até então gerira os patrimónios e os humores, as esperanças e as  colheitas árduas de cada ano.

A jovem princesa, a estender o vestido para disfarçar o amarrotado no colo, gaguejava e procurava ter razão. Gostava que fossem todos saudáveis e ficassem contentes. Era o melhor. Que os cidadãos pudessem ser saudáveis e contentes. O rei, estupefacto, com os olhos a saltarem-lhe da cara, dizia que aquelas eram ideias absurdas. Um povo contente nunca se vira. O contentamento era como um dia de domingo, e aos domingos não se sustentavam impostos. Que horror. Gritava o rei sem respirar direito. Que horror. Tinha uma única filha herdeira e não conseguira ensinar-lhe o essencial sobre o comando de um reino. Era urgente que fosse internada, medicada, curada. Era urgente que a metessem de castigo, que lhe dessem juízo, que lhe tirassem da cabeça uma tão grande palermice. Era urgente que lhe escolhessem comprimidos, supositórios ou vacinas. Estava doente, deficiente, habitada por um marciano, estava torta, mal-disposta, estragada, enganada, desconcentrada, casmurra. Estava muito palerma.

E o povo comentava: a princesa é palerma. A princesa é palerma. E diziam: acudam-nos, vai deixar este reino de rastos, vamos todos passar fome porque a princesa gasta os dias a pensar em ter um emprego normal. Os empregos normais não são bons para as pessoas que não são normais. Toda a gente comentava. As princesas não são normais. Não lhes nasciam os olhos na testa nem sete braços, eram parecidas com moças convencionais, mas de convencionais não tinham nada. Eram cuidadas a água de rosas e miolo de frutos raros para poderem aceder a grandes ideias e visões de futuro. As princesas nasciam em atenções para poderem concentrar-se na prospecção espantosa da vida, descobrindo e guiando os cidadãos comuns e feridos de profunda opacidade. As princesas eram pessoas de transparecer. Deviam ver através delas mesmas e através das outras coisas. Como se para elas o mundo fosse de cristal. Era isso que justificava a sua preciosidade e importância.

Metida para os seus luxuosos e solitários aposentos, a aprendiz de enfermeira choramingava. Tinha de entreter-se a bordar e a estudar piano, vinham afinar-lhe a voz, uma oitava e duas oitavas, mandavam-na nadar porque era importante ter os ombros definidos para os decotes e para o busto. Um bom busto era fundamental para as esculturas e para os retratos que se faziam dos nobres. Era imperioso ter belos ossos, belas linhas para o carisma e para a confiança. Nada, filha. Dizia o rei todo convencido de que as boas tarefas eram suficientes para fomentar as boas ideias. E assim a princesa passava os dias e terminava as noites, sozinha, choramingando à procura de uma solução.

Chegava-se às janelas do palácio para ver como pareciam as coisas e ninguém mudara nada. O quotidiano do reino seguia a sua rotina sem mais sobressaltos. Os jornais explicavam que a princesa estava em educação de rigor e o povo descansara. A palermice não havia de ser pior do que uma forte gripe. Com tanta esperteza no reino, seria até fácil devolver a lucidez a uma princesa confusa.

No entretanto, animavam-se as pessoas porque se abeirava o Natal e inventavam-se presentes e já se colhiam frutos secos para doçarias e outras comilanças gulosas. Andavam a enfeitar os postes da luz, inclusive os que alumiavam o palácio, e a cidade punha-se vaidosa de alegria e menor preocupação.

A princesa, nos seus aposentos sempre à espera, achava que no Natal, por prioridade, se deviam enfeitar os olhos dos tristes. Era como pensava nas coisas. Sentia urgência em procurar os tristes e fazê-los sorrir. Depois, lembrava-se. Certamente encontraria alguns sujos, apanharia piolhos, talvez apanhasse pulgas dos cães vadios e com frio. Voltaria a ser vista como uma princesa desmazelada, o que era injusto. O sujo do trabalho não é um desmazelo, é um esforço. O sujo do trabalho devia ser sempre belo. Ela pensava assim.

Davam-lhe folga ao sábado de manhã. Numa dessas alturas, a princesa levantou-se discretamente e vestiu-se de rapaz. Escondera o rosto com um capuz largo, ficavam-lhe as pernas muito finas dentro das calças bambas mas, vista à pressa, era um moço qualquer, sem coroa nem tempo a perder. Saiu à rua para saber dos cães e dos pintainhos. Queria ver as capoeiras e o lugar dos pombos. Os animais não se enganavam. Conheciam-na por qualquer nesga de pele. Animavam-se. Sentiam, afinal, a sua falta. Mais ela se convencia de que eram pessoas irracionais, o que não significava que fossem exactamente estúpidos ou ignorantes. A princesa assim os cumprimentou, também ela alegre, chegou-lhes comida e água fresca e, despreocupada, sujou-se.

Subitamente, sem se dar conta, tombou-lhe o capuz mesmo diante de toda a gente. Continuava de cara voltada para o chão, convencida de um bom disfarce, era como se lhe desse um problema no pescoço. E as pessoas viram-na assim, já não se admiraram, e comentaram frustradas: a princesa continua palerma. Foram chamar alguém ao palácio. Depois, vieram buscá-la com urgência, todos atarantados como quando se caçava um animal em ziguezague.

O rei, por ser Natal, e depois de muito lho pedir a filha e as criadas mais antigas, não internou a princesa mas prometeu interná-la logo em Janeiro. Passadas as festas, ia para um colégio de freiras onde rezaria e estudaria com austeridade. Passaria a ocupar-se das matemáticas mais complicadas, de filosofia antiga, que a moderna era um delírio, e escreveria para treinar a redacção das leis e dos importantes comunicados que teria de elaborar. Iam aumentar-lhe o empenho nos bordados durante as horas de lazer. Saberia bordar até tapetes. Poderia, por graça, conservar alguns para pôr nas paredes como arte régia. Para o povo, era valioso que os nobres revelassem alguma sensibilidade. O colégio interno faria dela uma princesa sensível e rapidamente todos esqueceriam os episódios lamentáveis que se andavam a verificar.

O problema foi que a princesa trazia os bolsos cheios de uns ovinhos pequeninos de passarinho. Apanhara nas gaiolas um ninho abandonado e os ovos estavam pesados, tinha a certeza de que se chocavam. Se não se mantivessem aquecidos, iam morrer. As criadas barafustavam com ela e ela não queria que lhe mexessem. Exigia despir-se sozinha na sua casa de banho. Dizia que se lavaria sem ajuda. Queria pensar. As criadas até acharam bem. Podia ser que ganhasse maior afeição à higiene. Deixaram-na despachar-se. Ficaram à porta dos banhos a comentar as ideias absurdas da futura rainha e riam-se incapazes de conter um carinho gracioso.

A princesa colocou os sete ovinhos numa toalha seca e inclinou sobre ela um candeeiro forte. Não sabia ser uma mãe-pássaro, mas esperava que pudesse enganar a natureza só um bocadinho. Ninguém o haveria de saber. Se descobrissem que cuidava do choco dos ovos, iam dizer que queria ser uma galinha. A diferença entre as enfermeiras e as galinhas era muito grande. Só os preconceitos podiam considerar algo igual.

Saiu da sua imensa casa de banho, trancou a porta à chave e guardou a chave no bolso do seu vestido cheio de brilhos. As criadas fungaram. Não fazia mal. Estava lavada e arranjada. O importante era que aparecesse nessa decência. Foram sentá-la à mesa para o almoço e estavam orgulhosas com o resultado. Por seu lado, a princesa sentia-se cada vez mais aprisionada com o seu destino. Achava que preparar-se para rainha precisava de ser uma coisa boa, mas, até ali, só se previa como algo de muito mau. Era uma obrigação cheia de regras e parecia implicar atributos que ela não tinha. Desde logo, com tanta natação, não tinha ombros para bustos impressionantes. As suas estátuas seriam mais mirradas. Aumentara-lhe pouco o peito como, afinal, acontecia a tantas moças que não eram nobres. Com o ter pouco peito até nem se importava. Preocupava-se mais com outros assuntos. E ela disse: pai, posso aprender duas vezes mais filosofia antiga e duas vezes mais matemáticas, juro que nado todos os dias e me lavo, penteio, falo baixinho, sou educada, eu prometo que bordo e sorrio mas, por favor, não me tire daqui. Ainda que não possa ver as pessoas todas, sinto que estou no meio delas, ainda que não possa ver os animais, sinto que estou no meio deles. Estou perto, pai. Se não me puderem ver ou tocar, ao menos que se saiba que estou aqui e que penso na felicidade deles como se faz um desejo de Natal. Talvez se salvem as pessoas todas só porque o desejamos quando o desejamos tanto. Mesmo que elas não nos entendam, mesmo que ninguém nos entenda. Talvez o Natal seja um aviso para que as coisas boas aconteçam sem precisarem de explicações complexas.

O rei, carregado de ponderação, respondeu que pensaria acerca do seu pedido. Almoçaram como desconfiados do silêncio. O que se dissera pairava ainda. Era uma ideia tão forte que se tornara uma visita. Uma ideia que era uma visita. Acontecia porque nada mais podia ser visto ou pensado sem a presença daquela formulação. O rei e a princesa estavam profundos. Surgira entre eles uma esperança que nenhuma outra inteligência conseguiria combater.

À noite, sempre às escondidas, a princesa ia ver como estavam os ovos de passarinho que cuidava sob a luz quente de um candeeiro. As peles transpareciam minimamente. Percebia como lá dentro se faziam pessoas irracionais que podiam ser de todas as cores. A dada altura, mexiam-se. Deviam ajeitar as posições das asas e das patas. Os ovos começavam a ficar pequenos para bichos que só sabiam crescer. Ela estava ansiosa. Ia dar-lhes nomes, limpar-lhes as penas, conversar com eles acerca de voar. Ia prepará-los como soubesse, talvez até pensassem que era mãe deles e o comentassem na língua de palavrinhas pequenas que os pássaros tinham. Não se importava nada com o que pensassem os pássaros. Achava que estariam sempre do lado dela, muito melhor entendidos acerca da liberdade do que as verdadeiras pessoas do reino.

Numa noite, acordada de surpresa, a princesa escutou o piado magrinho de um passarinho. Ficou atónita. Na escuridão, ainda, esperou até escutar novamente aquele piado muito fraquinho que vinha da casa de banho. Os seus passarinhos haviam nascido. A princesa nem se conseguiu levantar imediatamente. Ela ficou tão grata por a natureza se ter deixado enganar com um candeeiro que se comoveu. Depois, acendeu a luz e correu a ver. Estavam os sete pintainhos de pássaro numa trapalhice divertida dentro do ninho improvisado. Uns de pernas para o ar, outros já abrindo os olhos, piavam a conversar a perplexidade e o cansaço de nascerem. Eram lindos. Pássaros lindos e verdadeiros. Iam saber voar. A princesa limpou-os e começou a fazer cálculos sobre como os deveria alimentar. Estava radiante.

Assim chegou o Natal. O palácio muito engalanado e as criadas entusiasmadas, traziam vestidos novos e ideias para penteados ainda mais requintados e belos. As mesas ostentavam as toalhas cheias de ornamentos e pousavam-se já comidas frias que coloriam tudo. O rei tinha saído para cumprimentar e fazer promessas ao povo. Demorava sempre muito tempo nessas actividades protocolares e era bonito que os cidadãos pudessem vê-lo e até conversar com ele para se queixarem e pedirem melhor. O rei, nos eventos de Natal, voltava cheio de presentes, porque os camponeses lhe levavam queijos e compotas de morango. Levam-lhe metros de tecidos e faziam recomendações de felicidade. O rei era ajudado pelos seus criados e gostava que se enchessem as cozinhas e as despensas do palácio com as ofertas generosas.

À tarde, por ser solene, a presença da princesa era obrigatória e ela teria de estar na varanda, mais bonita do que nunca, acenando e mostrando às pessoas todas como estava feliz e orgulhosa de si mesma e do seu reino. A princesa atarefou-se a esconder os passarocos ainda atordoados e a fechar a casa de banho. Deu ordens para que ninguém ali entrasse. Inventara que não queria gente metediça nas suas privacidades e puxaria até as orelhas de quem se atravesse a desobedecê-la. As criadas, rindo-se, já haviam combinado que, naquela tarde e porque não se poderia passar o Natal com imundices no palácio, abririam a porta e limpariam as mármores e os espelhos para que tudo ficasse impecável. Depois que a princesa saiu, afastaram as portadas e as janelas para cima, o sol fresco entrou em raios de arco-íris e, subitamente, ouviram um piado e acharam impossível. Calaram-se. Ouviram outra vez. Vinha da casa de banho. Não havia erro. Com a chave-mestra destrancaram a porta e uma pequena nuvem de sete pássaros voou sobre as suas cabeças espantadas e rodou duas vezes pelo quarto até se sumir janelas fora. As criadas ficaram boquiabertas.

Entretanto, na praça acumulavam-se as pessoas para a mensagem de Natal do rei e comentavam também o quanto a princesa estava bonita, tão comportada, quando os sete pássaros voaram diante da varanda e chilreavam como a dizerem coisas alegres à pressa. Falavam todos ao mesmo tempo e a princesa reconheceu-os de imediato e sorriu feliz. Os seus pintainhos de pássaro voavam e eram livres. O rei mandou perguntar de onde vinham aqueles bicharocos, mesmo no frio do Inverno. Foi quando, incrivelmente, os sete pássaros pousaram nos ombros da princesa que se levantou num orgulho impossível de conter. E eles continuavam felizes a falar ao mesmo tempo e formavam de ponta a ponta uma linha colorida e toda a gente achou que nunca se vira uma princesa mais bela, misturada entre linhos e rendas, penteado, coroa, e pássaros de todas as cores. A princesa disse: é a mais bela linha de ombros que poderia ter. Se algum dia se fizer o meu busto, que seja assim. Porque a natureza nos dá a oportunidade de ocupar os lugares mais improváveis. Porque a natureza é uma obra em aberto que nos compete aceitar e potenciar. A princesa disse: desejo-vos neste Natal, e em todos os dias do ano, o esplendor livre da natureza. Desejo-vos a liberdade.

O rei, sem outra explicação que não a do Natal, sorriu e pediu que toda a gente aplaudisse a princesa herdeira. Havia um milagre só na sua esperança. Era, afinal, apenas isso. Um milagre guardado na esperança. E quem guardava a esperança manifestava uma enorme inteligência.

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