Arenys de Munt, 8700 habitantes e um lugar no mapa por causa da consulta na Catalunha
É uma vila dura, onde a rua principal nunca foi asfaltada e a chuva arrasta carros. No município, o mastro para a bandeira de Espanha está vazio. Foi aqui que, em 2009 a filha de Josep recebeu uma prenda de anos diferente.
Antigamente só havia Arenys de Mar, bairro de pescadores. Arenys de Munt surgiu no século XVII porque os marinheiros precisavam de se esconder dos piratas e as montanhas estavam ali, prontas a oferecer abrigo. Entretanto, a costa desenvolveu-se e hoje há 8700 habitantes em Munt e mais de 17 mil no Mar. Josep Manel Ximenis, que nasceu no Mar, casou com uma natural de Munt e ali vive desde 1985, lembra-se de ser miúdo e de querer ir lá acima em busca de diversão, quando as duas Arenys tinham mais ou menos o mesmo tamanho.
Ainda hoje, as localidades da zona se espantam com a vida em Munt. “Dizem-me ‘parece que estão sempre em festa’”, conta Sonia Salvany Sejué, dona do café A Praça, um dos três que existem na Praça da Igreja, a principal da vila. Agora, há mesmo festa. O padroeiro é São Martinho e desde sexta-feira que as actividades não param. Mas basta uma volta para confirmar que não faltam actividades regulares, com cartazes que anunciam concertos, peças de teatro, grupos de sardana (a dança típica catalã), aulas de ioga ou de artes marciais.
Pintadas de amarelo
Do Mar ao Munt é um caminho quase recto. Primeiro atravessa-se a avenida principal de Arenys de Mar, onde, como em Munt, todas as árvores estão enfeitadas com grandes laços feitos com plásticos amarelos e janela sim, janela não há bandeiras independentistas ou cartazes da plataforma Ara És L’Hora (Agora é a hora), que reúne a Associação Nacional Catalã e a Omnium Cultural, os dois grupos que organizam a consulta onde é perguntado aos catalães se querem ter um Estado e se este deve ser parte de Espanha.
Na avenida comprida há uma parte ao meio fechada, onde os carros não circulam, é a riera, a ribeira que se enche sempre que chove muito e as águas descem da montanha para o ar, e que aqui corre subterrânea. Arenys de Munt apresenta-se um pouco depois e logo de amarelo: o nome da terra escrito a ferro com os espaços recortados entre as letras tapados por uma grande lona da cor da consulta. Sempre a subir, chega-se à Riera, que aqui é a rua principal e é de areia. Nunca foi asfaltada – já houve referendos, mas as pessoas mais velhas gostam da sua Riera assim.
É por causa desta Riera que todas as casas da rua que sobe ao longo da vila têm de um lado e de outro das portas uns encaixes finos de ferro onde quando chove se colocam tábuas para impedir a água de entrar. Agora, há carros estacionados, mas quando as águas descem a polícia passa a avisar e os habitantes correm a pôr os carros onde podem.
Antes de nos sentarmos à conversa, Josep faz-nos uma pequena visita guiada. Começa pelo Centro Moral, onde a consulta aconteceu. Era para ter sido na sede do município, uns poucos metros acima, mas por causa das decisões judiciais a proibi-la acabou por ser no Centro Moral, um clube que nasceu na Guerra Civil, aberto pela Igreja para as pessoas se encontrarem e decidirem os assuntos da comunidade.
Hoje, o Centro Moral tem um café e, nas traseiras, uma sala onde se assiste a teatro e há ciclos de cinema – agora está em cena uma peça chamada 1714-2014, os 300 anos desde que a Catalunha foi definitivamente integrada em Espanha, a data que todos os anos se comemora como dia nacional, a Diada, a 11 de Setembro.
Quatro mesas, 200 voluntários
O centro de votação foi montado numa sala que é pouco mais do que um corredor com uns quatro metros de largura. Serve de passagem, é a entrada para o centro e, ocasionalmente, de espaço de exposições. “Aqui estavam as mesas, eram quatro”, descreve Josep, apontando para uma das paredes. “Aquelas escadas trazem-me muitas memórias”, diz, a olhar para a escadaria no pátio onde se chega por esta passagem ou pelo café do centro e dá acesso ao teatro. “Foi ali que se sentaram os 200 voluntários para receberem as últimas indicações.”
Na sede do município há uma varanda com três mastros mas só dois ostentam bandeiras: a da Catalunha e a estelada, da independência, falta a bandeira espanhola ao centro.
Josep ainda nos vai mostrar a Praça da Igreja e, um pouco atrás, o monumento à puntaire, a rendilheira que usa uma técnica idêntica à das rendas de bilros. No dia da consulta, em 2009, houve uma manifestação da Falange – o grupo que sobra do que foi a Falange do franquismo, que usava violência para proteger o Estado fascista – e foi ali, à volta da puntaire que os menos de 60 falangistas passaram o dia. Em redor deles, um cordão policial e à volta deste um cordão de voluntários.
“Queríamos impedir a violência, assim ninguém chegava à polícia”, explica Josep. “A consulta estava proibida, mas a manifestação foi autorizada e a polícia veio para os proteger.”
Preparar o terreno
Mesmo ali ao lado fica o café A Praça, onde tudo começou, a 17 de Setembro de 2006. “Estávamos a falar sobre a Catalunha, eu, o Pepe Jordana, o filho da antiga dona. Tinha passado pouco da Diada. De repente, o Pepe disse, ‘e se fizéssemos uma consulta sobre a independência?’”, recorda Josep. A conversa ficou por ali, mas no dia seguinte Josep foi ter com Pepe e perguntou-lhe: “Isso que disseste sobre a consulta? Estavas a falar a sério?”.
Josep era conselheiro municipal eleito pela CUP (Candidaturas de Unidade Popular). “Demorámos até sentir que estávamos prontos, recolhemos assinaturas, promovemos debates”, explica. “Na altura, muita gente tinha medo de falar abertamente de independentismo”, diz. Pelo meio, houve dúvidas, avanços e recuos. “Mas nós tínhamos um núcleo duro, formado por membros da CUP e cidadãos comuns, muito decidido.”
A proposta para realizar a consulta foi apresentada por Josep em plenário municipal a 4 de Junho de 2009. Mas em Março já ele tinha dito à filha que teria uma prenda de aniversário especial. E assim foi, a 13 de Setembro, o primeiro domingo depois de Rosa completar 16 anos, pôde votar pela primeira vez. Votaram 2671 pessoas e dos 2659 votos válidos, 2559 eram votos no “sim”, que venceu com 96,2%.
Na altura, em 13 conselheiros, dois eram socialistas, os outros da CUP e da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC, ambos partidos de esquerda que defendem a independência); os restantes da CiU (Convergência e União, nacionalistas de direita, no poder no governo da Catalunha). Actualmente, há dois conselheiros do Partido Popular, os outros onze são dos partidos que apoiam a consulta.
Uma bola de neve
Nos meses seguintes formou-se “uma bola de neve”: centenas de municípios vieram a Arenys de Munt pedir ajuda para organizar consultas. “Há mínimos, Casal de Arvis, por exemplo, queria fazer uma consulta. Tem 30 mil habitantes e havia 15 voluntários. Isso não é possível. Tens de ter pelo menos 1% da população para haver garantias de credibilidade, para assegurar que cada pessoa só vota uma vez.” A verdade é que até 15 de Dezembro desse ano 167 municípios tinham votado, com 16 mil voluntários envolvidos, muitos formados pelo próprio Josep.
Três anos depois, o político ganhou as eleições com o apoio da CiU, terceiro partido mais votado. Em Junho de 2013, a CiU anunciou a saída do governo, acusando Josep de marginalizar os seus conselheiros e este acabou por perder a presidência do município numa moção de censura. Hoje, o presidente é da ERC.
Nem toda a população gostou da consulta de 2009 ou apoia a deste domingo, que vai acontecer em toda a Catalunha. David, de 45 anos, nascido em Arenys de Munt, queixa-se do desemprego e diz-se “neutral”. “Os trabalhadores continuam a trabalhar, com ou sem consulta”, diz. A Joan Villá também pouco lhe interessa a política: “Já fui combatente vermelho, depois militar do Estado. Já fiz tudo o que tinha a fazer. De política não quero saber”, afirma, apoiado na sua bengala, depois de repetir duas vezes que tem 100 anos, perante o espanto de quem não quis acreditar à primeira.
Ser do contra
Damiá, 23 anos, que trabalha na construção, diz que as decisões do Tribunal Constitucional, que suspendeu a consulta marcada pelo governo catalão, só o tornaram mais decidido. “Vou votar, claro, pelo nosso direito de expressão”, afirma. Sonia, a dona do café onde a ideia da consulta foi pela primeira vez verbalizada, também é das que “quando mais me dizem que não posso mais eu decido que vou fazer”.
Filha de pais de Barcelona, Sonia nasceu na Holanda, voltou a Barcelona e acabou por vir aqui parar por casamento. Em 2012, comprou o café e diz que todos os anos, a 17 de Setembro, vai continuar a pôr um cartaz junto à mesa onde a conversa aconteceu. “Quem não gostar que não venha, há 21 cafés na terra, muito por onde escolher.”
É por causa dos avós que Sonia quer uma Catalunha independente. O avó era polícia municipal e “morreu a tratar de crianças” no início da Guerra Civil. “Tinham prometido que não iam bombardear escolas nem hospitais, mas do meu avó não sobrou nada, só o relógio. Estava numa escola atrás da catedral de Barcelona ”, conta. A mãe de Sonia tinha 2 anos. E 9 quando perdeu a mãe, que morreu com tuberculose por não ter dinheiro para se tratar. Sonia chegou à Catalunha “dois dias depois da morte de Franco”.
“Em minha casa, de direita nem se fala”, afirma. Depois, conta como se habitou a gostar desta terra onde “as pessoas são estranhas como meias verdes”, duras mas “boa gente”.
Em Arenys de Munt, vota-se na escola mais longe do centro, 20 minutos a pé e a subir. “Se houver problemas, já disse ao presidente que pode usar a minha casa. Tenho uma sala de 200 metros quadrados”, diz Sonia, cabelo louro, olhos muito pintados, sorriso fácil. E se não houver autocarro para levar as pessoas mais velhas a votar, Sonia avisou o marido que passará o dia a subir e a descer com o seu carro. “Antes, não ligava nenhuma à política, agora, enfim, já não sei. Já tenho dito ao Josep. Qualquer dia…”