Uma década para garantir que todos os seres humanos têm direito a um país
O ACNUR calcula que há dez milhões de apátridas no mundo. A cada dez minutos nasce mais uma criança condenada a esta "forma silenciosa de exclusão".
“Sem nacionalidade não somos mais do que um animal selvagem que vagueia de um sítio para o outro”, disse à Reuters Maryam Draogo, que só há poucos meses conseguiu ser reconhecida como cidadã da Costa do Marfim. “Não somos ninguém, não pertencemos a lado nenhum”, explicou, no mesmo dia em que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) pôs em marcha uma campanha internacional com um objectivo ambicioso: assegurar que no prazo de dez anos não haverá um único ser humano sem direito a ter um país que possa chamar seu.
“Ser apátrida faz as pessoas sentir que a sua própria existência é um crime”, disse António Guterres, o alto-comissário, no arranque da iniciativa I Belong (Eu Pertenço), lançada 60 anos depois de as Nações Unidas se terem comprometido pela primeira vez a resolver esta “forma silenciosa de exclusão”. Mas, apesar de progressos recentes, a cada dez minutos nasce no mundo uma criança sem direito à cidadania, calcula o ACNUR – um ser humano a quem provavelmente será negado o direito de estudar, de ser tratado num hospital, de ter um emprego estável, de viajar livremente ou de sequer se casar. Estes “fantasmas legais”, como lhes chama a ONU, estarão por isso mais expostos à pobreza, a abusos e até à escravatura – sem nacionalidade, nenhum Estado defende os seus direitos e não podem recorrer também aos tribunais.
“Isto é absolutamente inaceitável, é uma anomalia em pleno século XXI”, afirma Guterres, primeiro signatário de uma carta aberta onde constam os nomes de 30 celebridades, incluindo a embaixadora do ACNUR Angelina Jolie e o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, e que será agora transformada numa petição com o objectivo de recolher dez milhões de assinaturas.
São diversas as razões pelas quais alguém nasce ou se torna apátrida. Uma das principais é a discriminação étnica e religiosa que explica, por exemplo, que a Birmânia não reconheça cerca de um milhão de rohingyas (minoria islâmica do país) ou que só recentemente o Bangladesh tenha permitido ao povo bihari (de origem indiana) adquirir a nacionalidade. Mas há também o caso dos cidadãos de países que deixaram de existir, como a ex-União Soviética, e que não foram reconhecidos por nenhum outro – dos cerca de 600 mil apátridas que vivem na Europa, cerca de metade tem etnia russa e reside nos países bálticos.
Mas, hoje como no passado, a guerra permanece uma das principais causas para esta forma extrema de invisibilidade, e o conflito na Síria é um bom exemplo. O ACNUR calcula que desde 2011 nasceram 50 mil crianças sírias no exílio e só no Líbano, o país que mais refugiados recebeu, 70% delas não foram registadas à nascença. A Síria é um dos 27 países que não reconhecem o direito das mulheres a transmitir a sua nacionalidade aos filhos e muitas das mães que dão à luz nos campos de refugiados deixaram os maridos para trás ou não trouxeram consigo a certidão de casamento necessária para registar os recém-nascidos.
O ACNUR diz, no entanto, que há sinais de optimismo – alterações à lei em vários países permitiram a quatro milhões de pessoas obter a nacionalidade – e propõe um plano de acção para garantir que, em 2024, nenhuma criança nasce sem ter direito a um país e assegurar que todos os Estados removem das leis de cidadania todas as discriminações com base no género, religião ou etnia. “Há 60 anos, o mundo decidiu proteger as pessoas sem pátria”, lembram os signatários da carta, dizendo que “agora é tempo de pôr fim a essa situação”.