O ano em que a América tem os olhos postos na marijuana
A legalização da marijuana é o assunto do momento nos Estados Unidos no que diz respeito ao consumo de drogas e, nas eleições de 4 de Novembro, os eleitores de três estados norte-americanos e da capital federal vão também ser chamados a dar a sua opinião sobre o polémico tema
Numa sala com mais cadeiras do que era necessário para acomodar toda a assistência, mas ainda assim bem composta, a histórica Igreja Baptista de Shiloh, em Washington D.C., trocou a oração pela recreação - foram duas horas a discutir a proposta de legalização de consumo para fins recreativos, cultivo e venda de marijuana na capital norte-americana, um debate que entrou de forma definitiva na agenda política do país.
Para além dos nomes de candidatos ao Congresso, de governadores e de um sem fim de outros cargos políticos, os eleitores de três estados norte-americanos e da capital federal vão também ser chamados a dar a sua opinião sobre a legalização do uso recreativo de marijuana nas eleições do próximo dia 4 de Novembro, embora com abordagens diferentes.
No Alasca e no Oregon, a proposta é semelhante às que foram aprovadas no Colorado e em Washington em 2012: quem tiver mais de 21 anos pode consumir, cultivar ou vender legalmente marijuana (em lojas próprias para o efeito e dentro de um limite estabelecido por lei), com o dinheiro recolhido pelas autoridades desses estados a ser canalizado para projectos de combate à toxicodependência e à educação, por exemplo; na Florida, a pergunta é menos ambiciosa, limitando-se a uma tentativa de apanhar o comboio dos 23 estados que já autorizam o uso de marijuana para fins medicinais; e na capital federal, Washington D.C., o peso do Congresso forçou os promotores da proposta a trabalharem em duas frentes: a Iniciativa 71, que vai ser votada a 4 de Novembro, prevê a legalização do consumo e o cultivo a maiores de 21 anos, mas a venda só pode ser aprovada pelo City Council da cidade (o órgão legislativo), já que a regulamentação de um mercado e o pagamento de impostos não podem ser aprovados através de uma iniciativa de cidadãos.
O movimento pela legalização do consumo e da venda de marijuana nos Estados Unidos ganhou um novo impulso com a aprovação de propostas nesse sentido nos estados do Colorado e de Washington, há dois anos. Tal como o Uruguai - que na prática aprovou a criação de um mercado legal de venda de marijuana este ano, regulado pelo próprio Estado -, o Colorado e Washington estão na linha da frente do debate sobre a legalização como próximo passo depois da descriminalização do consumo, de que Portugal foi um dos pioneiros, em 2001.
Mais de uma década depois, os críticos da proibição consideram que apenas não criminalizar o consumo de marijuana é uma corrente ultrapassada, insuficiente para responder aos problemas enfrentados por países como os Estados Unidos.
Um dos principais defensores da legalização entre os membros do City Council da capital norte-americana é David Grosso, eleito como independente para representar todas as oito sub-divisões de Washington D.C. Apesar de defender a Iniciativa 71, o responsável considera que seria mais eficiente adiar a proposta até que ele e os seus colegas cheguem a acordo para uma lei que legalize também a venda a maiores de 21 anos.
“No ano passado, apresentei uma proposta que tinha como objectivo taxar e regulamentar a marijuana em D.C.. Decidi apresentá-la porque acho que precisamos de iniciar um diálogo de uma forma séria e sincera. Estou profundamente convencido de que a guerra às drogas [a política de combate ao tráfico iniciada da década de 1970 nos EUA] falhou nesta cidade e em cidades de todo o país”, defende David Grosso.
Como a sua proposta inicial não foi aprovada, o responsável espera agora que os eleitores de Washington D.C. digam “sim” à Iniciativa 71 para que nos seis meses seguintes as autoridades da cidade possam avançar no sentido do Colorado e de Washington - para um mercado regulamentado de venda de marijuana, com cobrança de impostos e mais fundos para aplicar em programas sociais.
Para além de qualquer juízo moral ou consideração científica sobre o consumo de marijuana em adultos (nenhuma das lei em questão autoriza a venda a menores de 21 anos), é evidente que o tema da legalização do consumo e da venda de marijuana faz brilhar os olhos de muitos empresários e de pessoas que esperam uma oportunidade para fugir ao desemprego ou para criar o seu próprio emprego.
Um deles é Corey Barnette, um dos convidados do painel na discussão promovida pela Igreja Baptista de Shiloh.
Já envolvido no negócio da marijuana para fins medicinais na Califórnia, Barnette aproveitou o facto de Washington D.C. ter autorizado o consumo para os mesmos fins em 2010 e virou a atenção para a capital dos Estados Unidos quando se começou a discutir a possibilidade da legalização.
“Aos actuais preços no mercado ilícito, o consumo estimado de marijuana em Washington D.C. representa entre 1700 milhões e 2300 milhões de dólares, uma verba que temos a oportunidade de regular na nossa cidade, e garantir que pequenas empresas, detidas por habitantes locais, possam beneficiar disso”, diz Corey Barnette.
O argumento da oportunidade de negócio irrita uma colega de painel, Sandra Jowers-Barber, professora de História na Universidade do Distrito de Columbia e uma das poucas vozes contra a legalização do consumo e venda de marijuana presentes na sala. Depois de Barnette falar em “oportunidades ilimitadas para se construir um negócio de sucesso”, Sandra Jowers-Barber deixa uma pergunta: “Não é irónico querermos fazer dinheiro para devolver à comunidade, para devolver às pessoas a quem dizemos que é legal fumar marijuana? Algo não bate certo neste raciocínio. Se queremos mesmo ajudar estes jovens, por que não resolvemos primeiro o problema do desemprego antes de começarmos a falar da legalização de marijuana?”
O apoio à legalização da marijuana nos Estados Unidos - não só à descriminalização - tem-se reflectido nas sondagens onde a questão está a ser mais discutida. Quando as autoridades de D.C. decidiram que o consumo de marijuana iria deixar de ser crime, no Verão deste ano, o jornal The Washington Post perguntou aos cidadãos se achavam que o passo seguinte deveria ou não ser a legalização: 65% dos inquiridos disseram que sim e 33% disseram que não, com uma vitória do sim em quase todos os grupos questionados - apenas no grupo de pessoas com mais de 60 anos houve um empate (48%).
Nos estados do Oregon e do Alasca, o resultado final é muito mais incerto. A sondagem mais recente relativa ao Oregon, publicada na segunda-feira pelo maior jornal diário de Portland, o The Oregonian, indica que 44% dos inquiridos defendem a legalização e 46% estão contra, mas os 7% de indecisos mostram que a corrida está ainda muito longe do fim. No Alasca, a situação é ainda mais confusa - enquanto uma sondagem da Dittman Research aponta para uma reprovação de 53%, um outro estudo, realizado pelo especialista em sondagens Ivan Moore e citado pelo Alaska Dispatch News, indica que 57% dos inquiridos estão a favor da legalização. A sondagem da Dittman Research, salienta o jornal do Alasca, foi paga pelo grupo que se opõe à legalização de marijuana para fins recreativos.
Seja qual for o resultados das propostas que vão ser votadas no próximo dia 4 de Novembro, a legalização da marijuana é o assunto do momento nos Estados Unidos no que diz respeito ao consumo de drogas. Se as propostas forem aprovadas, 2014 será lembrado como a segunda vaga de legalização no país, depois das leis aprovadas no Colorado e em Washington em 2012. Ainda nesta segunda-feira, o think tank Brookings Institute escrevia que “as eleições de 2014 sobre marijuana vão transformar 2016 no ano crucial para a cannabis na América”, numa referência à provável apresentação de mais propostas de legalização durante as próximas eleições para a Presidência dos EUA.
Para tentar antecipar o futuro da legalização da marijuana a nível nacional nos Estados Unidos, a revista Pacific Standard comparou os dados existentes com outros períodos polémicos da história do país, como a Lei Seca, o direito de voto das mulheres, a introdução do salário mínimo ou o casamento entre pessoas do mesmo género.
“As várias percentagens deixam claro que não existe nenhum ponto de viragem bem definido para este tipo de políticas. Mas, em média, o Governo federal tende a envolver-se depois de cerca de 60% dos estados terem avançado com legislação própria. Este facto sugere que cerca de 30 estados terão de legalizar a marijuana antes que isso possa acontecer a nível federal”, escreve a revista. Apesar de salientar que o processo que agora parece imparável pode vir a ser travado ou até mesmo posto em marcha-atrás nos próximos tempos, a Pacific Standard arrisca uma previsão: “Podemos muito bem ter a marijuana legalizada a nível nacional nos próximo sete anos, até 2021.”