O “Spice” está a assustar a Rússia, é proibido em Portugal mas vende-se na Net
Em Portugal não há registo de ocorrências hospitalares na sequência do consumo daquela mistura de canabinóides sintéticos. Sicad diz que o nosso país não está no circuito de tráfico daquela substância
Mais de 700 russos procuraram apoio médico nas últimas semanas, relata também o jornal britânico The Guardian. A edição online do jornal Pravda fala de envenenamentos em massa. Alguns vendedores de rua têm sido detidos, a imprensa avança que se acredita que a mistura vem, maioritariamente, da China.
O Pravda contava no início do mês que um homem se esfaqueou a si próprio em Khanty-Mansiysk e que só na região de Kirov mais de 200 pessoas apresentaram sintomas de envenenamento, tendo cinco morrido. Há relatos de pessoas que fumam “Spice” e se atiram pela janela.
Em Portugal, e conforme sublinha o Infarmed, as componentes que até há pouco tempo faziam parte da mistura “Spice” (de acordo com os resultados de várias análises feitas na Europa, compiladas pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência), nomeadamente os canabinóides sintéticos JWH-018, JWH-073, JWH-398, fazem parte da lista das 160 substâncias psicoactivas que eram comercializadas em smartshops e cuja venda foi proibida em Abril de 2013. Aliás, a grande maioria das apreensões de "Spice" em Portugal deu-se precisamente quando as smartshops começaram consequentemente a fechar. "Os comerciantes entregaram muitas saquetas. Depois disso, só pontualmente tem sido apreendida e o fenómeno deixou de ser tão visível", adiantou ao PÚBLICO uma fonte do Laboratório de Polícia Científica da Judiciária.
O director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad), João Goulão, confirma que “não houve nenhum sinal de alerta recente” relativamente ao consumo daquelas substâncias em Portugal. “Temos notícias de consumo de canabinóides, mas não com aquele grau de toxicidade”, precisa Graça Vilar, directora do serviço de planeamento e intervenção do Sicad, garantindo que nenhum hospital reportou casos de entrada nas urgências de doentes que tenham consumido “Spice”.
“Os canabinóides que geralmente se consomem cá não têm aquele grau de toxicidade, o que não quer dizer que estejamos imunes”, insiste Graça Vilar, para quem “essas substâncias altamente tóxicas são mais comuns nos países de Leste” do que na Europa do sul, o que terá que ver com “a localização dos laboratórios onde são produzidos e os circuitos de tráfico estabelecidos”.
Contudo, os relatórios europeus do Observatório também têm alertado para o facto de o “Spice” estar disponível sobretudo na Internet. “É verdade que muitas destas substâncias começaram a ser adquiridas na Internet e que aí o controlo pelas alfândegas se torna muito mais difícil”, reconhece Graça Vilar, para enfatizar que “tendo saído do circuito das lojas, o comércio destas substâncias pode estar muito mais dissimulado”. Até porque os fabricantes destes canabinóides “arranjam subterfúgios, recorrendo nomeadamente a embalagens em prata, para dissimular o cheiro e garantir que a substância passa o controlo” alfandegário e chega ao destino.
Pelo menos desde 2006, as misturas com este nome existem, como se lê num relatório sobre o então designado “fenómeno Spice”, que sintetiza as conclusões de um encontro em 2009 sobre o tema, que teve lugar no Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, sediado em Lisboa.
O “Spice” é em geral vendido em saquetas metálicas, de 3 gramas, com os mais diferentes nomes, que mudam à velocidade da Web (Spice Silver, Spice Gold, Spice Diamond, Spice Arctic Synergy, Spice Tropical Synergy, Spice Egyp..). Em 2011 cada saqueta custava entre 12 e 18 euros.
Foi em 2008 que os químicos da polícia científica descobriram que a droga das saquetas coloridas não era um inofensivo produto à base de plantas, como alegava ser, lê-se no "Relatório Anual 2010: A evolução do fenómeno da droga na Europa, também do Observatório Europeu".
As verdadeiras componentes psicoactivas do “Spice” foram então identificadas como aditivos sintéticos, lê-se. “O denominado fenómeno ‘Spice’ continuou a receber uma atenção considerável em 2009. Ao longo desse ano, os nomes e as embalagens de marca dos produtos diversificaram-se. Os compostos psicoactivos adicionados a esses produtos também têm mudado.”
Por tudo isto, os efeitos podem ser imprevisíveis. O relatório de 2010 do Observatório Europeu relatava: “A variedade e o número de canabinóides sintéticos, ou de outras substâncias que podem ser adicionadas aos produtos herbáceos, dificultam a sua identificação, monitorização e avaliação dos riscos. Quase nada se sabe sobre os perfis farmacológicos, toxicológicos e de segurança destes compostos em relação aos seres humanos (...) Alguns dos compostos podem ser muito activos em doses muito pequenas. Por isso, não se pode excluir a possibilidade de sobredosagem acidental, com o risco de graves complicações psiquiátricas ou de outro tipo.”
À comunidade terapêutica Lugar da Manhã, vocacionada para a recuperação de toxicodependentes, não chegaram toxicodependentes com historial de consumo de “Spice”. “São drogas muito potentes. Geralmente, as pessoas começam por ficar retidas nas urgências e só depois chegam às comunidades terapêuticas. Mas, até agora, não tivemos solicitações”, adiantou o coordenador técnico, Nuno Eloca.
Luís Espírito Santo, responsável pela associação Novos Rostos, que acompanha cerca de 200 pessoas com toxicodependência, diz também que não tem nenhum utente que seja consumidor de “Spice”. Admite que este possa ser um fenómeno isolado na Rússia. Mas não se surpreende nada com os relatos das alucinações descritas nos jornais, de pessoas que se esfaqueiam e atiram pela janela: “As drogas sintéticas podem provocar, muito rapidamente, lesões neurológicas muito graves. E esse tipo de episódios acontecem, são frequentes.”
Contactado pelo PÚBLICO, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que costuma compilar informação sobre as apreensões de substâncias proibidas no país, de modo a perceber se elas estão presentes no mercado negro, faz saber que não pode prestar informações nos próximos dias por falta de meios humanos.