A "eleição da mudança" deu afinal a reeleição a Dilma Rousseff
A mais imprevisível e emocionante corrida presidencial do Brasil terminou com a vitória da candidata do Partido dos Trabalhadores, que terá 16 anos consecutivos de governo.
Na eleição mais disputada desde 1989, a Presidente conquistou 51,6% dos votos e o seu adversário do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves, obteve 48,4%. Depois de cumprimentar a sua adversária pelo telefone, Aécio fez uma breve declaração, debaixo de gritos de “orgulho brasileiro” dos seus apoiantes. “Mais vivo do que nunca, mais sonhador do que nunca, deixo esta campanha com o sentimento de que cumpri o papel da mudança”, afirmou, desejando sucesso à Presidente, “cuja maior tarefa é reunir novamente o país num projecto de crescimento”.
O senador e ex-governador de Minas Gerais conseguiu a maior votação de sempre do seu partido, mas perdeu a eleição no seu próprio estado, o segundo maior colégio eleitoral do país e que já na primeira volta tinha favorecido o PT: os 52% que Dilma alcançou no território do seu adversário no domingo podem ter sido os votos decisivos que a impulsionaram para a vitória.
A Presidente dominou também no Rio de Janeiro (55%) e em Pernambuco (70%), dois estados que no dia 5 de Outubro tinham votado na candidata do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Marina Silva, apoiante de Aécio Neves na segunda volta.
Em São Paulo, o maior estado do país com 44 milhões de habitantes, a votação no candidato tucano (o animal que simboliza o PSDB) foi avassaladora: 64%. Aécio Neves venceu nos estados do Centro, Sul e Sudeste, e com 63% “levou” também o Acre, o pequeno estado na fronteira que por causa da diferença do fuso horário para Brasília manteve o país em suspenso do resultado duas horas depois do fim da votação.
O resultado levará, inevitavelmente, a um processo de reconstrução no PSDB, que para a eleição de 2014 conseguiu uma unidade interna histórica entre as duas facções paulista e mineira, que vivem em concorrência desde a fundação do partido, em Junho de 1988. A derrota de Aécio Neves na corrida presidencial põe essa unidade à prova: o risco da aliança estratégica entre os dois blocos começar a rachar não pode ser excluído. No entanto, o partido saiu fortalecido no Congresso após a votação de 2014 – e com Aécio de regresso ao seu lugar no Senado, terá um grupo de elite na oposição na câmara alta.
De forma menos violenta, o PT deverá também aproveitar o momento para uma reestruturação. Dilma precisa de resgatar o seu relacionamento com o partido, com quem manteve uma guerra surda durante a campanha. A pressão será para uma reforma da estrutura, com uma maior abertura e nova ênfase nas correntes minoritárias como as novas formas de organização política – redes e colectivos -,os movimentos juvenis e os intelectuais.
E à margem dos partidos, o fim do processo eleitoral forçará ainda o país à reflexão, para ultrapassar a tensão e a agressividade – e pôr fim às divisões – que foram alimentadas durante a campanha. Será esse, aliás, o desafio mais imediato de Dilma Rousseff: colocar-se acima das picardias e dos ataques pessoais, fazer as pazes e estender a mão à metade do país que votou no seu concorrente e afirmar-se, de facto, como a Presidente de todos os brasileiros.
Campanha histórica
A corrida presidencial de 2014 foi a mais inesperada e a mais disputada desde a redemocratização do Brasil, no fim da década de 80. Mas apesar das surpresas e reviravoltas, a votação final acabou por confirmar as tendências das eleições anteriores: o favoritismo do ocupante do cargo (antes de Dilma, também os Presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva foram reeleitos) e a dependência dos votos dos eleitores mais pobres.
Um ano antes da eleição, o país explodiu em protestos e manifestações de rua, que de uma reivindicação contra o aumento das tarifas dos transportes públicos evoluíram para um desabafo colectivo contra a política institucional. Nesse momento, a popularidade da Presidente Dilma Rousseff, que parecia bem encaminhada para a reeleição, tombou de forma abrupta – e criou as condições simbólicas, mas também políticas, para que a eleição presidencial fosse encarada como o início de um novo capítulo no país.
O regresso dos brasileiros à rua, dias antes da abertura do Campeonato do Mundo de futebol, em Junho, pareciam o prenúncio da mudança inevitável da política brasileira. A poucos dias do arranque do tempo de antena obrigatório na televisão (que marca informalmente o início da campanha política a sério), o candidato do partido Socialista Brasileiro (PSB), que se afirmava como a terceira via, Eduardo Campos, morre num desastre aéreo – e a tragédia revolucionou completamente a campanha.
A ambientalista Marina Silva, que se coligara a Campos depois de falhar o registo do seu próprio movimento político Rede Sustentabilidade, assumiu a candidatura do PSB e, por um momento, conseguiu pôr em causa a histórica polaridade política brasileira entre o PT e o PSDB. As campanhas de Dilma e Aécio foram obrigadas a adaptar as suas estratégias perante a ameaça da “nova política”. Mas a dureza da campanha revelou as fragilidades dessa nova via, que colapsou depois de um mês de escrutínio intenso.
A votação da primeira volta demonstrou que o desejo de mudança dos brasileiros não teve a força ou a organização suficientes contra os mecanismos da “política convencional”: com mais militância, com o respaldo dos governos dos estados, e com campanhas milionárias geridas por “marqueteiros” experientes, foram as candidaturas do PT e PSDB, eternos rivais eleitorais, que passaram à segunda volta – e extremaram a polarização para níveis nunca vistos no Brasil. “Não sobrou nada das manifestações de 2013”, escreveu Julia Duailibi no Estadão: no filme da eleição, os protestos que ameaçaram ser protagonistas terminaram como figurantes.
Segundo disse ao PÚBLICO o blogger e comentador do portal UOL, Leonardo Sakamoto, a promessa de mudança dos protestos do Verão passado resultou em nada. “Não mudou em São Paulo e não mudou no Rio de Janeiro, que foram os dois grandes focos das manifestações e acabaram por reeleger os respectivos governos [PSDB e PMDB, respectivamente]. E não mudou nada no país, que votou na continuidade de Dilma”, apontou. As manifestações serviram para “trazer as pessoas para a participação política, mas o discurso da mudança não colou”, concluiu.
A governante e as circunstâncias
O novo Governo Dilma deve iniciar o trabalho imediatamente, ainda que, oficialmente, o segundo mandato só comece após a tomada de posse no dia 1 de Janeiro de 2015.
“Neste momento do país, há dois aspectos importantes: a economia, que tem apresentado um desempenho mediano ou medíocre e será um problema seríssimo para a Presidente; e o gerenciamento político do Governo, com a gigantesca fragmentação de partidos políticos no Congresso, que vai tornar muito difícil administrar a base de apoio do Governo”, sublinhou o colunista da Folha de São Paulo, Fernando Rodrigues.
O especialista eleitoral do Estadão José Roberto Toledo faz o mesmo diagnóstico. Como assinalou ao PÚBLICO, “o governante é ele e as suas circunstâncias, e no Brasil elas não estão boas”, nem do ponto de vista económico, nem em termos da configuração política em Brasília. A conjuntura económica vai forçar a Presidente a “algum tipo de ajuste fiscal”. Mais complexa é a situação da governabilidade, que na opinião de Toledo será a condicionante mais forte, “fruto de um sistema partidário suicida, com uma maior pulverização de cadeiras nas bancadas”.
Rodrigues antecipa já um “choque de realidade” que pode levar as pessoas a “ficar mal humoradas” e “servir de combustível para a oposição” – com o fim da campanha e o regresso à normalidade quotidiana, os brasileiros vão perceber muito rapidamente que “o Brasil real é muito diferente do das propagandas políticas”. “Por conta do ambiente de crise, haverá uma diminuição da sensação de bem-estar. Existe um potencial para um ambiente de crise, que depende da forma como as pessoas vão sentir esse choque com a realidade”.