Um só diploma vai regular tudo o que tem a ver com adopção de crianças
O novo regime jurídico deverá regular diferentes intervenções: do Ministério Público, dos tribunais, da Segurança Social, da Agência para a adopção internacional. O PÚBLICO falou com um casal que entregou os papéis em 2011. O filho chegou este ano a casa.
O casal Félix — ele educador social, ela educadora de infância — tomaram a decisão de adoptar há cinco anos. Depois passaram quase dois anos até formalizarem a intenção — “porque a informação está em Lisboa, fora de Lisboa andamos empurrados de um lado para o outro, andei meses a pedir informações”, diz Ângelo. Em 2011 entregaram os papéis. Depois esperaram — “Às vezes telefonávamos ao técnico que nos acompanhava que, para além do nosso, tinha mais 300 processos. ‘Esqueceram-se de nós?’ Eles dizem, e bem, que não andam à procura de uma criança para a família, mas sim de uma família para a criança, é um processo complexo, leva tempo...” Mas tanto tempo assim, levou-o a querer desistir — a criança vem? Não vem? Ângelo falou ao PÚBLICO dias depois de o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, dizer no Parlamento que haverá mudanças no sistema de adopção.
“Como há famílias que aguardam melhor resposta da adopção, permitam-me anunciar o seguinte: iremos melhorar todos os seus mecanismos para que sejam mais lestos, para que não durem, preferencialmente, mais que um ano na instrução do processo”, declarou Mota Soares na quarta-feira. A intenção passará por reunir num único diploma toda a matéria processual relativa à adopção, criar um regime jurídico do processo de adopção que abranja o processo judicial e o processo administrativo e que regule quer a adopção nacional, quer a internacional.
O diploma deverá contemplar as diferentes intervenções: do Ministério Público, dos tribunais, da Segurança Social e da Autoridade Central para a Adopção Internacional. Pretende-se a qualificação do processo e da informação a disponibilizar às pessoas.
O filho chegou em Junho
O PÚBLICO conheceu Ângelo e Leonor em Junho de 2011, numa reportagem sobre o Plano de Formação para a Adopção, promovido pelo Instituto de Segurança Social (ISS), uma obrigação que tinha sido introduzida havia pouco tempo. Estavam a fazer a formação, acharam útil, mas passou esse ano. E outro. E outro. E... já tinham decidido que Agosto deste ano era o limite quando numa quinta-feira do passado mês de Maio o telefone tocou.
Cinco anos depois da decisão e três anos depois da formalização da candidatura foram chamados a ler o processo de Rui (nome fictício), um menino “de etnia negra que tinha sido entregue a uma instituição depois de nascer”, em Dezembro de 2012, conta Ângelo. Leram a sua história, analisaram os exames médicos... a fotografia só lhes foi mostrada depois de dizerem que o aceitavam. “E é tão giro...” O filho “chegou em Junho”. Uma “loucura” — depois de anos de espera, é “parto e gravidez em 15 dias”, costuma dizer Ângelo a rir.
“A família está feliz”, diz. Continua a ser acompanhada pelos técnicos da Segurança Social. E está a correr bem, afirma. Foi duro esperar mas, sobretudo, continua, foi duro terem feito esperar também o filho. “Em Novembro de 2013 um tribunal decretou uma medida de adoptabilidade, só em Maio de 2014 a decisão transitou em julgado”, conta Ângelo. “Não percebo por que tem que passar tanto tempo, foram mais cinco meses que ele esteve institucionalizado do que acho que seria necessário, o que nesta idade é uma brutalidade”.
Quando o ministro diz que se vai mexer na legislação, o que sugere este pai? Que os tribunais sejam mais rápidos a decretar a situação de adoptabilidade das crianças, quando se entende que o melhor para elas é que sejam adoptadas.
Já Luis Villas-Boas, director do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, que presidiu o Grupo de Trabalho para a Agenda Criança, defende que não é na demora da Justiça que está o problema. “O problema é que não há intervenção precoce”, que permita detectar o perigo o mais cedo possível e intervir junto das crianças e das suas famílias.
Quanto mais cedo se intervém, mais cedo se percebe se a criança pode ficar com a família biológica ou se a solução é rncminhá-la para a adopção. “Se não há uma intervenção precoce, tecnicamente envolvente, os tribunais não têm hipótese de decretar a adoptabilidade”, diz Villas-Boas — a lei define que uma criança pode ser adoptada até aos 15 anos.
Quantas crianças não permanecem à guarda do Estado apenas porque as instituições não prepararam a tempo os processos tendo em vista a adopção? — questiona-se. Enquanto isso, muitos casais esperam anos a fio por receber em casa uma criança que vive numa instituição — e muitos desistem, como Ângelo e Leonor estiveram prestes a fazer.
O último Relatório de Caracterização das Crianças e Jovens em Situação de Acolhimento é de 2013. Contabilizava 8445 crianças e jovens em instituições (na sua maioria do sector social, que recebem um financiamento por cada criança que guardam). Boa parte dos acolhimentos diz respeito a adolescentes e jovens, entre os 12 e os 20 anos — 67,4%. E são cada vez mais os que só são retirados às famílias aos 10, 12 anos ou mais, diz Villas-Boas.
Quanto tempo dura um processo?
Desde o início do mês que o PÚBLICO pede ao ISS vários dados sobre adopção em Portugal. Desde logo, qual é, actualmente, a duração média de um processo de adopção — uma informação que não foi disponibilizada.
O relatório de 2013 diz que 491 crianças com uma medida de adoptabilidade decretada pelo tribunal estavam à espera de serem adoptadas. Para outras 389 foi encontrada uma “família adoptante” — em 2012 tinham sido 443, em 2011, 379...
É sabido que os candidatos querem sobretudo crianças pequenas, bebés de preferência, caucasianas e sem problemas de saúde. As crianças que estão no sistema não são, muitas vezes, assim. Das 491 que aguardavam por uma família cerca de metade tinham mais de nove anos e 35% tinha problemas de saúde e/ou de comportamento.
O ISS não disse qual é hoje o número de candidatos a pais inscritos no sistema. Sabe-se que a tendência nos últimos anos foi para uma diminuição — 2012, por exemplo, foram formalizadas 552 candidaturas e seleccionadas 467.
“O ‘dossiê Criança’ está doente”
Foi em 2012 que o Governo nomeou o Grupo de Trabalho para a Agenda Criança, que tinha como missão apresentar um relatório com recomendações — “para que as problemáticas que envolvam as crianças não sejam observadas parcelarmente”, argumentou-se na altura. O grupo liderado por Luís Villas-Boas apresentou o relatório no fim desse ano. Sublinhava a importância de um Sistema Nacional de Emergência Infantil e da intervenção precoce junto das crianças em perigo, a necessidade de reforço dos mecanismos da adopção internacional, a eventual necessidade de criar um Conselho de Ética para a Adopção, entre outros.
Depois disso, o Governo aprovou uma resolução onde dizia que face às fragilidades detectadas no sistema de protecção iria nomear novas comissões. Estabelecia um prazo de 15 dias. Mas só a 24 de Janeiro deste ano as comissões foram criadas. Uma tem como missão centrar-se na adopção e é presidida pela procuradora-geral adjunta Lucília Gago.
Aguardam-se resultados, mas Villas-Boas vai dizendo que “o dossiê Criança está doente, tem excesso de diagnósticos e falta de cuidadores”. Faltam técnicos à Segurança Social para “supervisionar os processos das crianças que estão em instituições” e persiste uma “tendência depositária”.