É “dureza” ser imigrante de segunda no eldorado brasileiro
Chegam do Haiti, da Colômbia, da Nigéria ou do Mali para trabalharem nas obras, nas fábricas, nos matadouros, nas limpezas. Não são os imigrantes qualificados, são os que procuram no Brasil o direito à sobrevivência que não têm nos seus países.
Yves Joseph, de 41 anos, saiu do Haiti no dia 6 de Setembro, e está hospedado na Casa do Migrante da Missão Paz desde então. A vinda para o Brasil foi a solução encontrada para ajudar a família – a noiva e um filho – que ficou para trás. “No Haiti não há trabalho, torna-se difícil fazer as coisas”, explicou ao PÚBLICO – até a festa de casamento está suspensa, à espera que encha a conta-poupança. Mas Yves, que trabalhava na construção, acredita que depois de uma temporada no Brasil conseguirá reunir o dinheiro suficiente para melhorar a situação da sua família, e voltar a casa.
As estimativas apontam para a existência de cerca de 35 mil haitianos no Brasil, que se tornou o principal destino e maior pólo de atracção para a imigração em toda a América Latina. E se o movimento se mantiver constante, antes do fim deste ano, o número de haitianos no Brasil poderá chegar aos 50 mil, acreditam os investigadores do fenómeno migratório. As razões para sair do Haiti em busca de uma vida melhor são óbvias – e são as mesmas daquelas que levam milhares de bolivianos, peruanos e paraguaios a lançar-se para o país vizinho à procura de uma solução para a pobreza.
Mas, crescentemente, há outras razões por detrás da enorme procura das fronteiras brasileiras. Imigrantes provenientes da Colômbia escapam da violência ou perseguição política; uma nova vaga de senegaleses, malianos ou de nigerianos chegam em fuga de violentos grupos militantes como o Boko Haram. Alto e esguio, o jovem Aravali-Moiakani, de 23 anos, veio do Congo há um mês, “por problemas políticos. Era estudante e não podia ficar mais na universidade”, justifica, acrescentando que gostava de continuar a estudar. “Mas aqui queria começar a trabalhar, para depois poder ir para a universidade”, acrescenta.
À entrada, estes novos imigrantes solicitam protecção ao abrigo do estatuto de refugiados, que lhes garante o direito imediato à chamada carteira de trabalho enquanto dura o processo de tramitação. Os dados oficiais do Ministério da Justiça brasileiro mostram que, este ano, já foram entregues 6886 solicitações com pedido de asilo, que a ser deferidas duplicarão a população de refugiados estrangeiros, que oficialmente é de 6721.
Nenhum destes números descreve, porém, as circunstâncias da chegada desta população trabalhadora estrangeira, e menos ainda as condições informais e por vezes desumanas que muitos imigrantes, exilados, refugiados ou beneficiários de visto humanitário – como é o caso dos cidadãos do Haiti – suportam para trabalhar, a maior parte deles na Área Metropolitana de São Paulo, mas em vários outros estados do Brasil, principalmente no Sul: Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Paraná. É para lá que Yves Joseph vai partir neste sábado, contratado por um aviário que recorre à Missão Paz para o recrutamento.
O que diz um tornozelo
Desde o momento do aliciamento, nos seus países de origem, até à viagem com os “coiotes” que os entregam na zona da fronteira, homens e mulheres chegam a ser avaliados para que os seus futuros patrões já tenham uma ideia da “disposição” de cada um deles para o trabalho pesado – habitualmente nas limpezas, construção civil ou em matadouros e unidades frigoríficas de processamento de carne. Depois de entrarem no país, os haitianos (como os congoleses e restantes africanos, ou os dominicanos, que também já começam a chegar) são alvo de uma avaliação da compleição física, completa com uma medição da largura dos tornozelos, que determinará o posto para que cada um será escolhido. Tornozelo mais grosso, não serve para carregar; tornozelo mais fino, geralmente indica alguém que aguenta bem a dureza do trabalho e produz mais.
“É a negação total da inteligência, às vezes o Brasil parece que ficou parado no tempo ou que está a retroceder”, choca-se Tânia Bernuy, coordenadora do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, uma organização da sociedade civil que se dedica ao bairro de Tatuapé, em São Paulo, onde tem sede. “Quando chegam os negros, são ou para trabalho de carga ou para trabalho em condições análogas à escravidão. São eles que garantem o trabalho manual e pesado que os brasileiros deixaram de querer fazer”, diz.
Vários indivíduos que fazem a viagem desde a fronteira do Acre até São Paulo chegam desnutridos e desidratados, são vítimas de ataque pelos seus parcos pertences e ameaçados pelos “coiotes” que exigem pagamento da dívida do transporte. Pior ainda são as condições que estes estrangeiros encontram no seu destino final, onde se resignam a trabalhar em condições de enorme precariedade e insegurança. Acções de fiscalização das autoridades brasileiras rotineiramente descobrem situações similares ao trabalho escravo: na região de São Paulo, que é o maior produtor e exportador de calças de ganga de toda a América Latina (dez milhões de pares produzidos por mês), as oficinas de costura da indústria têxtil são o principal destino de muitos dos trabalhadores que vêm da Bolívia, Peru, Paraguai. Na semana passada, informa o padre Paolo Parise, que conduz a Missão Paz no Glicério, a Casa do Migrante acolheu uma jovem chinesa de 19 anos, que foi resgatada pela polícia depois de três anos de trabalho escravo, fechada num quarto na região de São Paulo.
No Brasil, a indústria têxtil opera em diferentes níveis, explica. No topo da cadeia, estão as grandes multinacionais que têm as suas confecções de acordo com os regulamentos, mas que “terceirizam e quarteirizam” uma parte significativa do trabalho para oficinas de costura, que “raramente são boas. A maior parte é péssima” (e é nestas que incidem as acções para o combate ao trabalho escravo). O sector da construção civil opera num esquema semelhante.
“Discussão parada”
Apesar de assinalar avanços na forma como o Brasil tem lidado e gerido a questão migratória, Tânia Bernuy lamenta que o assunto não esteja na agenda política – sobretudo em época de campanha eleitoral. Temas como a revisão do estatuto do estrangeiro, uma lei da ditadura militar e desfasada da legislação internacional relativa aos direitos dos imigrantes; a promulgação de uma nova lei migratória, que alargue o âmbito da actual política de concessão de vistos e para a qual já foram elaboradas quatro propostas desde 2009, ou a integração e gestão unificada das questões da imigração, hoje dispersas por vários ministérios e a Polícia Federal só são abordadas “na base da pressão imediata e da emergência. Há uma ausência de visão de política migratória como um todo”, considera Paolo Parise. “A falta de interesse é clara. Esta é uma discussão parada, não foi minimamente incluída na campanha [presidencial]”, continua Tânia Bernuy.
Mas uma discussão de campanha relacionada com o assunto está a deixar os activistas e os imigrantes com os nervos em franja: a sugestão, avançada pelo porta-voz da candidatura do social-democrata Aécio Neves para as questões da diplomacia e política externa, de uma reorientação das alianças comerciais e políticas do Brasil, em caso de vitória. O que verdadeiramente apavora esta comunidade é a possibilidade de um abandono brasileiro de fóruns regionais como o Mercosul e de grupos de integração como o Unasul, cujos acordos estão na base da movimentação das populações latino-americanas para o país.
O embaixador Rubens Barbosa, que é indicado como o provável responsável pela pasta das Relações Exteriores num Governo do PSDB, é defensor de uma política de aproximação do Brasil aos Estados Unidos, União Europeia e China, e de uma mudança de paradigma no relacionamento com os actuais parceiros da América Latina. O Mercosul, considera, tornou-se uma organização anacrónica e que “não serve os interesses brasileiros.
De acordo com dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, o total de estrangeiros registados como residentes no município, no final de 2013, ascendia a 368.188. Os portugueses compunham a maior parcela, com 78.418, logo seguidos pelos bolivianos, que eram 63.454, japoneses (36.036) e italianos (25.188). Os números nacionais colocam a população boliviana no Brasil em cerca de 350 mil com a situação regularizada; calcula-se que um número semelhante de bolivianos permaneça no país sem documentos – como nota o padre Paolo, eles são os mais susceptíveis à exploração laboral por trabalharem na economia informal, e também à violência de quem os quer assaltar, por não poderem depositar o dinheiro no banco.
Somando ao número de bolivianos as parcelas dos argentinos, chilenos, peruanos, paraguaios, uruguaios, colombianos ou mexicanos – todas as nacionalidades que figuram no top 25 da lista de estrangeiros –, constata-se que a imigração da América Latina é dominante.
A porta foi aberta graças ao acordo preferencial de migração económica assinado pelo Mercosul, que concede a livre residência e regulariza a estada e o trabalho, mediante a inscrição junto da Polícia Federal. O Brasil, país de enormes recursos e necessitado de mão-de-obra, tornou-se rapidamente o lugar mais hospitaleiro para os trabalhadores migrantes. Mas a sua vida quotidiana está longe de ser fácil: são alvo de exploração, intolerância e discriminação, e têm recursos reduzidos para se defender.
Direito ao voto
O seu acesso a bens e serviços públicos básicos, como saúde ou educação, está condicionado por factores burocráticos e administrativos (por exemplo, os formulários dos centros médicos para a requisição de um exame pré-natal de uma mulher grávida não aceitam os documentos de identificação não brasileiros), mas também por xenofobia – no caso de uma imigrante europeia, de tez clara e olhos azuis, o grau de benevolência é superior. “São os negros, de raízes andinas ou descendentes de índios, que sentem a rejeição e o preconceito”, nota Tânia Bernuy.
Para a activista, os problemas de discriminação que os imigrantes sentem no Brasil poderão começar a ser resolvidos quando obtiverem um direito fundamental: o voto. O CDHIC, e muitas outras organizações não governamentais ligadas ao fenómeno da migração, mantém uma longa campanha – com o slogan “Aqui vivo, aqui voto” – para sensibilizar o Governo, os partidos e a opinião pública brasileira da necessidade de “reconhecimento da expressão política do imigrante”. Com cerca de 1,2 milhões de imigrantes a contribuir para a economia nacional (0,8% do total da população), o Brasil é dos poucos países da América do Sul onde os imigrantes que vivem em situação legal e estabilizada não podem exercer o voto.
Na actual disputa eleitoral, a escolha dos latino-americanos recairia, sem dúvida, na candidatura do Partido dos Trabalhadores. “Os instrumentos de integração regional são fundamentais para evitar e prevenir situações de risco nas rotas migratórias”, defende Tânia Bernuy. O porta-voz de Dilma Rousseff para as questões de política externa, Marco Aurélio Garcia, não se cansa de repetir que a importância do Mercosul “vai além da tentativa de criação de uma união aduaneira”: num novo mandato, o Brasil investirá na ampliação das alianças regionais para a sua transformação num “pólo industrial de referência através de uma integração produtiva”.
A relevância do Brasil no palco internacional, considera, é fruto da política de combate à desigualdade dentro do país e da capacidade de negociação com os parceiros da região. A aliança regional vai ressentir-se se “continuarmos a dizer que estamos cercados de países produtores de cocaína”, criticou, numa referência a declarações de Aécio Neves. Na campanha, o candidato do PSDB prometeu o reforço do controlo das fronteiras, por causa da criminalidade e do tráfico de droga.