Pedro Teixeira era lunático e megalómano. Mas deu a Amazónia ao Brasil

Há quase 400 anos, um português de Cantanhede desbravava os 1700 quilómetros do Rio Solimões. Agora, na reconstituição da viagem encontra-se um região ignorada pelo crescimento económico brasileiro

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No Sudoeste do estado brasileiro do Amazonas, o maior do país em dimensões territoriais — capaz de abrigar juntos Portugal, Espanha, França e Itália —, pouco mais de 240 mil habitantes estão distribuídos pelos nove municípios integrantes da microrregião do Alto Solimões. Alimentam-se basicamente de peixe, arroz, farinha, mandioca e banana frita, da espécie pacovan; consomem pouca variedade de verduras, legumes e frutas. O mundo para eles costuma se fazer muito reduzido. Não raras vezes, a viagem mais longa que realizam é a ida a Manaus, capital do estado — distância que, se percorrida em barco lento, o mais barato, chega a levar cinco dias. Quase nada conhecem do resto do país, salvo o contato pela televisão com metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Ainda assim, nas pequenas lojas que comercializam artigos para telefones celulares, é comum estarem à venda capas de proteção para os aparelhos, oriundas da China e com a Torre Eiffel e o Empire State estampados. Sinais da globalização, sem dúvida, embora parte dos que os consomem não saiba exatamente em que países tais monumentos estão erguidos.

A história por aqueles lados se cruza com a desconhecida figura, até hoje em praticamente todo o solo brasileiro, de Pedro Teixeira (1585-1641), militar português, nascido em Cantanhede, Coimbra. É ele o homem que, há quase quatro séculos, concluiu o insano trabalho de atravessar os 1700 quilômetros do Rio Solimões a remo, avançando depois em direção ao Peru e Equador. Missão esta que resultou na assinatura, em 1639, do Auto de Posse da Amazônia, tirando-a das mãos espanholas e garantindo-a ao Brasil. É para participar da primeira etapa de uma expedição que reproduz os passos de Teixeira, que embarcou em direção à região amazônica. Graças aos barcos de motores potentes do mundo moderno, 15 dias de viagem são suficientes para refazer parte do que o desbravador português fez em 26 semanas.

A 36 mil pés de altitude, voando de São Paulo a Manaus, e de Manaus a cidade de Tabatinga — totalizando quase seis horas de trajeto —, ponto inicial da expedição, não consigo deixar de anotar em uma caderneta, enquanto da janela se vê parte pequena da colossal floresta, a frase que orienta minhas primeiras impressões: “Pedro Teixeira era lunático e megalomaníaco.” Não há como pensar outra coisa. Se deixa como herança a maior e mais importante floresta tropical do mundo, também sobram as extensas dificuldades em administrar o espaço de milhões de metros quadrados.

Nada mais triste, portanto, que o Alto Solimões, por onde Teixeira passou, ser hoje o retrato feio de um país ignorado pelo próprio país. Nem que a região estampe como média do Índice de Desenvolvimento Humano a baixa e lamentável nota 0,59, frente a 0,744 do Brasil. Mais ainda, não existe a esperança sólida de que uma reforma estrutural seja implantada por quem comandar o país pelos próximos quatro anos, ou a atual mandatária Dilma Rousseff (do Partido dos Trabalhadores), ou seu rival Aécio Neves (do Partido da Social Democracia Brasileira). Tampouco que o mesmo seja feito pelo próximo governador do estado amazonense, disputado também em segundo turno entre José Mello (do Partido Republicano da Ordem Social) e Eduardo Braga (do Partido do Movimento Democrático Brasileiro).

“O problema da pobreza é um problema de ordem estrutural”, atesta o cientista político Raimundo Nonato, pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos Panamazônicos — Práticas de Pesquisas e Intervenção Social (Lepapis). Embora os repasses de verba do Governo federal tenham aumentado desde 2004, a sucessiva ineficiência da administração municipal determina a situação precária das cidades. “As prefeituras dificilmente procuram criar projetos que venham, efetivamente, redesenhar um quadro que reverta essa situação. Estamos com mais de cem anos de ausência de um processo político de desenvolvimento tecnológico e educacional na região.”

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O economista e escritor Osiris Araújo Silva, ex-secretário da Indústria, Comércio e Turismo e ex-secretário da Fazenda do Amazonas, estende a visão para a esfera estadual, necessitada, em sua opinião, da criação de estruturas modernas, sólidas e capitalizadas: “Este passo pressupõe investir em planejamento estratégico com perspectivas de curto, médio e longo prazo, de acordo com setores prioritários em que o Amazonas detenha ou possa gerar vantagens competitivas.” Seria fundamental ainda a governabilidade sobre o sistema de pesquisa, tecnologia e inovação tendo como foco “promover a exploração dos recursos da biodiversidade com responsabilidade ambiental e inclusão social”.

Por um momento, voltemos 375 anos no tempo. Embora não haja muitas informações sobre a vida de Pedro Teixeira, sabe-se que ele foi um dos fundadores da cidade de Belém do Pará, capital do Pará. E que foi perto dali que iniciou, em 1637, a bandeira fluvial pelo Rio Solimões. Ainda durante o período da união das coroas ibéricas [domínio filipino], quando o Tratado de Tordesilhas teve menos importância, o bandeirante recebeu o pedido do governador do Grão Pará e Maranhão (um dos estados coloniais portugueses), Jácomo Raimundo de Noronha, de avançar rumo às terras do Vice-Reino do Peru (divisão administrativa da Espanha na América do Sul), ampliando os domínios de Portugal. A missão resultou na assinatura do Auto de Posse da região amazônica em nome da coroa portuguesa, documento reconhecido em 1750, quando da criação do Tratado de Madri.

No Alto Solimões, Pedro Teixeira cruzou divisas [fronteiras], as mesmas que caracterizam e problematizam o local. Na configuração atual, há a zona fronteiriça com Colômbia e Peru, acessada em duas cidades, Tabatinga e Benjamin Constant. A primeira delas, a mais importante da região, com população de quase 60 mil pessoas e IDH médio, é o que se pode chamar de polo financeiro, com uma melhor disponibilidade de serviços públicos e comércio, muito devido à existência de grandes bases do Exército, Marinha e Aeronáutica consumindo o mercado local. Sua avenida principal faz divisa com a cidade colombiana de Leticia, enquanto na outra margem do Rio Solimões está a pobre vila peruana de Santa Rosa. A presença das três Forças Armadas se explica quando se tem em mente que ali já foi uma das principais portas do tráfico de drogas, com auge nos anos 1980 e 1990, mas que ainda se faz forte. Nos sete primeiros meses de 2014, por exemplo, mais de duas toneladas de cocaína foram apreendidas pela Polícia Federal em embarcações que navegavam o Rio Solimões, grande parte vinda de Tabatinga. “Já houve uma grande redução no tráfico de drogas nesta área, comparado ao que foi nas décadas anteriores. No entanto, ainda é necessário ampliar ações repressivas junto aos ilícitos; de recuperação junto aos dependentes químicos, assim como criar ações que viabilizem a inserção dos jovens, por cima, no mercado de trabalho. E o caminho não é outro senão a formação educacional de nível superior”, salienta Ricardo Nogueira, autor do livro Amazonas: a Divisão da Monstruosidade Geográfica.

Mas o aspecto fronteiriço amplia outra boa característica destas terras: a diversidade cultural e linguística. Entre Tabatinga e Leticia, por exemplo, os habitantes transitam de um lado a outro sem apresentação de passaporte ou qualquer outro documento. Nada incomum, portanto, brasileiros passarem o fim de tarde sentados em algum bar colombiano, como o antigo Club de Billares y Cafeteria Barbacoas, tomando uma cerveja ou a tradicional aguardente Antioqueño, feita do anis e da cana de açúcar. “É fundamental as relações de integração destes países de fronteira, pois somos um enclave que, em certa medida, nos coloca distante de suas capitais”, diz Fred Spinoza, peruano radicado no Brasil há três décadas e professor na Universidade do Estado do Amazonas, em Tabatinga. É ele o proprietário da única livraria e sebo [alfarrabista] da cidade, localizada em uma sala de 9m² dentro do mercado municipal, diante de bancas de frutas e legumes. “Sempre somos deixados por último, quando é aqui que deveriam ensaiar políticas de integração, já que somos afetados em todos os sentidos pelas políticas destas nações. Todos os que vivem aqui consideram-se irmãos, e esta condição é portadora de rumos para o desenvolvimento de uma nova sociedade fronteiriça.”

Sim, Pedro Teixeira, penso eu, jamais imaginaria que à margem do rio de 1700km de extensão (apenas no Brasil) navegado por ele, na companhia de mais de mil pessoas — entre índios remeiros e flecheiros e soldados portugueses —, se formariam, anos depois, cidades que permanecem à berma do desenvolvimento do país, ou em ritmo muito mais lento. Cabe à imaginação do advogado e historiador autodidata português Antonio Carrelhas, radicado em São Paulo desde 1977 e organizador da Expedição Pedro Teixeira, supor qual seria a reação do desbravador lusitano se voltasse hoje aos locais por onde esteve: “Como a imaginação é livre, diria que ele, que passou por terras com, obviamente, natureza e um alto índice populacional de indígenas, ficaria surpreso com a evolução do território, mas, se visse hoje outras coisas para além desta região, ficaria com certeza surpreso, mas talvez triste. Porque a região Norte, em primeiro lugar, tem a característica de ser pouco divulgada até entre os próprios brasileiros, que não conhecem seu território, e, em segundo lugar, sentimos nela uma vida muito atrasada e muito pobre.”

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Na capital amazonense, o Polo Industrial da Zona Franca de Manaus responde por cerca de 85% da produção e 92% dos impostos arrecadados no estado, além de seu Produto Interno Bruto (PIB) equivaler a 82% do total do Amazonas. De lá, via barcos cargueiros, são distribuídos em outras cidades do estado o total do consumo de alimentos como frango, açúcar, arroz, sal, trigo, confecções e demais suprimentos, além de bebidas, alcoólicas ou não. Outros produtos chegam de diferentes cidades do Brasil ou são importados, levados a Manaus e, de lá, remanejados. “As demais regiões configuram vazios demográficos improdutivos, pobres e sem esperança”, atesta Osiris Araújo Silva. No interior do estado, incluindo o Alto Solimões, a produção local é limitada, restrita a ovos, laticínios, banana, algumas verduras e um pouco de peixe e carnes. “No auge da safra, a oferta deve representar não mais do que 40% da demanda. Aqui não se produz milho, feijão, arroz, frango, batata, etc. A produção do caboclo e do índio são pouco representativas, mesmo de artesanatos”, completa o especialista.

A densidade demográfica também impressiona, uma vez que a capital concentra mais de 50% da população total do estado. Em números, basta pensar que, com uma área de 1.570.746km², a densidade populacional do Amazonas, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, é de 2,21 habitantes por quilômetro quadrado. “É natural, portanto, que os subsídios sociais — bolsa família e bolsa floresta, principalmente — assumam importância vital junto às populações interioranas. O bizarro da questão está em que as bolsas sociais não retiram o povo da pobreza, apenas amenizam as adversidades sociais (para não falar em miséria) ali predominantes. O pobre continua recebendo o peixe, mas não lhe é ensinado como pescar”, enfatiza Araújo Silva. O escritor Ricardo Nogueira complementa: “A região tende a ser polarizada por poucas cidades que abrigarão serviços mais qualificados. Outras tantas pequenas cidades vêm perdendo população a cada censo. A dispersão da população associado ao baixo poder aquisitivo é um problema inerente à Amazônia.”

Em São Paulo de Olivença, um dos municípios do Alto Solimões e com 70% da população na faixa da pobreza, estive diante de exemplos concretos de sobrevivência. Genison, de 29 anos, trabalha diariamente no mercado central de carnes. Em uma bancada de madeira montada na entrada do espaço, um porco aberto ao meio e exposto às altas temperaturas amazonenses do dia — em torno de 37°C — está à disposição dos clientes. Ele lucra 1 real por quilo vendido; no mês, fatura cerca de 400 reais (128 euros). “Fomos nós que abandonamos você?”, escrevo na caderneta, impressionado com a baixa renda e falta de perspectiva.

Pouco adiante, a vida pacata do interior se mostra com o sr. Ovidio observando a vida de sua janela, em uma típica casa de tábuas. Ele é um dos milhares de descendentes dos índios cambebas, representativos no Alto Solimões, mas que durante determinado tempo foram incorporados aos índios ticunas, devido à demarcação das terras indígenas. Certamente, um dia, os cambebas e ticunas cruzaram com Pedro Teixeira. Seriam eles que recebiam as ordens do militar português para remar?

Perto dali, cruzo com o casal Salvador e Julia, que carrega no ombro o macaco chamado de Chico; e vejo em peregrinação religiosa as peruanas Antonia e Tani, membros de uma seita fanática do Peru intitulada Associação Evangélica da Missão Israelita do Novo Pacto Universal. Ativa há três décadas, a religião cresce se valendo das vidas difíceis dos moradores dessa parte da região norte brasileira. Vestidos com túnicas de cetim ou veludo até os pés, seus seguidores acreditam que serão poupados do fim do mundo e guiados a uma terra prometida no meio da floresta por Ezequiel Ataucusi Gamonal, fundador da seita e morto no ano 2000.

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Cinemas, teatros e centros culturais são inexistentes nas cidades do Alto Solimões. O entretenimento para os jovens e adultos se resume a jogar futebol nos inúmeros campinhos de futebol de terra batida, assistir televisão ou frequentar bares; outros, infelizmente, debandam para o caminho das drogas. “As questões culturais são nulas. O poder público, por meio das prefeituras, poderia muito bem fazer bibliotecas acessíveis em cada município, criar espaços em que as manifestações populares fossem efetivamente trabalhadas”, enfatiza Nonato.

Por outro lado, o acesso à educação é amplo e as escolas estão bem equipadas. Além disso, todos os alunos recebem material escolar, uniformes e são alimentados com boa merenda na hora do almoço. “Fiquei muito impressionado com a quantidade e a atenção generalizada dos alunos durante as palestras que fiz para falar sobre Pedro Teixeira”, conta Carrelhas. “Podemos até achar que a qualidade dos professores pode não ser a melhor, mas, por outro lado, há um incentivo muito grande de apoio às escolas.” Além disso, a Universidade do Estado do Amazonas, instituição gratuita, está presente com vários núcleos pelo interior amazonense, incluindo cidades do Alto Solimões.

Todavia, a formação acadêmica está longe de representar a inserção no mercado de trabalho. Cabe a esse quesito uma ampla reforma estadual. Na visão do economista Osiris Araújo Silva, um dos projetos necessários é a readequação do Polo Industrial da Zona Franca de Manaus, cujo prazo de vigência foi estendido por mais 50 anos a partir de 2023. “Ele, por razões vocacionais, não foi capaz nem o será de promover a interiorização do desenvolvimento.” Outro desafio na visão do especialista é o governo ajustar suas ações de impacto “em setores prioritários geradores de emprego e renda, além de promover investimentos massivos em educação, saúde pública, infraestrutura e logística de transporte, comunicações e saneamento básico. Complexo, mas não impossível. É factível elaborar programas e projetos que podem ser financiados com recursos internacionais de governos e fundos multilaterais”. Caso contrário, as comunidades interioranas permanecerão na mesma situação de pobreza que se encontram há muitas décadas. “Com uma diferença: hoje, essas comunidades dispõem de TV a cor, equipamentos de som e celulares em profusão. O grosso da população, contudo, continua semianalfabeta, usando técnicas de plantio, caça e pesca oriundas de seus ancestrais.”

Enquanto isso, as vidas seguem por essas terras e águas, ainda à espera. E Pedro Teixeira? Bom, o bandeirante português um dia passou por ali. Foi o megalomaníaco que entregou esta floresta sem fim ao Brasil.

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