Blade Runner: o ídolo que foi do pódio à prisão
O jovem belo, rico e adorado foi abandonado pelos patrocinadores e vê um crime brutal pôr fim não só à sua carreira mas a uma história de superação que inspirou milhões de pessoas.
Só que afinal "o jovem, belo, rico e admirado" – como o define a AFP – era igualmente "imaturo, colérico e paranóico". O homicídio da namorada, Reeva Steenkamp, e as revelações surgidas durante o mediático julgamento ajudaram a desconstruir o mito, fazendo de Pistorius mais um ídolo desportivo caído em desgraça. Não pelo doping (como o ciclista Lance Armstrong ou a velocista Marion Jones) ou pelas infidelidades (como o golfista Tiger Woods), mas sim por um brutal crime, que lhe vale cinco anos na prisão e uma suspensão por idêntico período por parte do Comité Paralímpico Internacional (CPI).
Oscar Pistorius vai, assim, falhar os Jogos Paralímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, perdendo a hipótese de enriquecer o seu currículo, onde constam seis títulos paralímpicos e ainda uma medalha de prata e outra de bronze. “Qualquer atleta que esteja a cumprir pena criminal não pode participar em competições validadas pelo Comité Paralímpico Internacional. Assim, devido à sentença de cinco anos decidida nesta terça-feira, [Oscar Pistorius] não pode voltar a competir antes de 2019”, disse ao PÚBLICO Craig Spence, director de comunicação do CPI.
Já o Comité Olímpico Internacional prefere não tomar posição. “Tomámos nota da decisão do tribunal. Esta é uma tragédia humana para a família de Reeva Steenkamp e também para Oscar Pistorius. Esperamos que o tempo traga conforto a todos os que foram afectados, mas nesta fase não temos mais comentários a fazer”, disse ao PÚBLICO, por email, um porta-voz do COI.
Certo é que Pistorius terá 33 anos quando se realizarem os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020 (em Tóquio), podendo considerar-se quase impossível voltar ao estatuto que tinha até à morte da namorada, especialmente depois de um período tão longo sem se treinar e sem competir. “Para qualquer atleta, uma paragem destas aos 27 anos pode significar o fim ou o princípio do fim”, diz ao PÚBLICO Humberto Santos, presidente do Comité Paralímpico de Portugal, sem querer comentar em concreto esta suspensão.
Além de este ser provavelmente o fim da carreira de Pistorius, é igualmente uma mancha irreparável num exemplo de superação no desporto mundial. Em 2012, ano em que se tornou o primeiro duplo amputado a competir nos Jogos Olímpicos, a revista Time colocou-o na lista das 100 personalidades mais influentes do mundo: “Ele é a definição da inspiração global”, escreveu então o colunista Sean Gregory.
Por essa altura também, Hugh Herr, um especialista em biomecânica do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT, na sigla inglesa), dizia ao The New York Times que o atleta sul-africano era um “mutante” e uma “aberração”, no sentido de ser um atleta extraordinário (como o nadador Michael Phelps, o atleta Carl Lewis ou o basquetebolista LeBron James) e de ter capacidades físicas que não são habituais na população em geral.
Exemplo mundial
Oscar Leonard Carl Pistorius nasceu em 22 de Novembro de 1986, nos arredores de Joanesburgo, com uma deficiência em ambas as pernas (não tinha perónios). Aos 11 meses, foram-lhe amputadas as duas pernas abaixo dos joelhos. Mas, seis meses depois, já andava com recurso a próteses.
A mãe foi sempre uma fonte de inspiração e motivação. “De manhã, quando estava a sentir pena de mim próprio, diziam-me: ‘Como o teu irmão calça os seus próprios sapatos, tu próprio pões as tuas pernas. Há milhões de coisas que tu podes fazer, não penses naquilo que não podes fazer.’ Quando estava a crescer, apercebi-me de que não havia muita coisa que não pudesse fazer. Não me deixaram pensar de outra maneira”, disse Pistorius, numa entrevista ao PÚBLICO, em 2011.
Apoiado pela família e alimentado pelo vício da “adrenalina” – como descreve na sua autobiografia Blade Runner –, Pistorius nunca abdicou de ser uma criança arrojada. Pôs em prática os conselhos da mãe, que, conta a BBC, lhe deixava bilhetinhos com mensagens inspiradoras na marmita: “O verdadeiro perdedor nunca é o que cruza a meta em último lugar, é a pessoa que se senta à margem, que nunca tenta competir.” E Pistorius fartou-se de tentar. Conduziu minimotos, karts, praticou pólo aquático, críquete, boxe e râguebi. Até que uma lesão no râguebi o fez descobrir o atletismo, já depois da morte da mãe, quando tinha 15 anos – outro momento traumático da sua vida.
Com as suas próteses que parecem lâminas, Pistorius transformou-se no Blade Runner. Numa das primeiras vezes em que correu os 100 metros, acabou com um tempo nunca conseguido por um duplo amputado: 11,72s. Meses depois, ganhava o ouro nos 200 metros e o bronze nos 100 metros nos Jogos Paralímpicos de Atenas 2004. Nascia um fenómeno mundial, que nos anos seguintes ultrapassaria a fronteira do desporto para deficientes.
Pistorius quis participar em provas de alta competição para atletas sem deficiência, mas inicialmente a Federação Internacional de Atletismo impediu-o de o fazer, alegando que as próteses lhe davam vantagem em relação aos restantes atletas. O sul-africano recorreu à justiça desportiva e conseguiu remover esse obstáculo.
Vencida a luta na justiça, o sul-africano falhou os mínimos para os Jogos de Pequim 2008, mas esteve nos Mundiais de atletismo de 2011 nos 400m e na estafeta de 4x400m, em que ajudaria a conquistar a medalha de prata. No ano seguinte, em Londres, tornou-se o primeiro duplo amputado a participar nos Jogos Olímpicos. É certo que já outros atletas com deficiência tinham conseguido apurar-se para Jogos Olímpicos (como a nadadora Natalie du Toit em 2008), mas nenhum teve tanta projecção como Pistorius.
“Ele acabou por ajudar a desconstruir uma certa barreira entre olímpicos e paralímpicos. Ele mostrou que em alguns casos há uma fronteira muito ténue entre estas duas dimensões do desporto de elite”, salienta Humberto Santos, destacando que a luta de Pistorius pôs o “mundo académico e desportivo a reflectir sobre a igualdade de oportunidades”.
O sul-africano tornou-se então um ídolo à escala mundial – ainda hoje, tem 378 mil seguidores no Twitter. Os patrocínios rendiam-lhe dois milhões de dólares por ano, segundo o Guardian. Tornou-se imagem da Nike, da marca de óculos Oakley, da empresa de telecomunicações britânica BT, só para citar alguns exemplos.
Uma vida sem cautelas
A boa fama, a fortuna e admiração global, no entanto, começaram a desaparecer na fatídica noite do Dia dos Namorados de 2013, quando Pistorius disparou quatro tiros e matou Reeva Steenkamp. Nos dias e meses seguintes, começou a conhecer-se o outro lado do Blade Runner. Nomeadamente o gosto pelas armas, a agressividade e a impulsividade. “Não há sensação que se compare à de chegar a nossa casa, ouvir a máquina de lavar, pensar que está lá um intruso e entrar no modo de combate. Waaa!”, escreveu no Twitter em Novembro de 2012.
Um a um, os patrocinadores começaram a abandoná-lo. A Nike, por exemplo, suspendeu uma campanha que estava prestes a lançar e em que – suprema ironia – Pistorius se apresentava como “uma bala pronta a disparar”. O sul-africano teve de vender a casa e o carro para pagar as despesas com o julgamento. Fechou-se a torneira da boa fama e olhou-se com outros olhos para informações que já eram conhecidas, como ter disparado uma arma num restaurante, gostar de ir para a carreira de tiro quando tinha insónias ou ter passado uma noite na prisão, por ter agredido uma jovem em 2009.
Blade Runner não era, afinal, o ídolo perfeito. Uma reportagem do New York Times sobre a vida rápida de Oscar Pistorius, de Janeiro de 2012, inclui uma frase premonitória do repórter Michael Sokolave, depois de ter conhecido melhor o sul-africano e de ter andado no seu carro a mais de 250km/h: “Pistorius é, igualmente, abençoado com um temperamento incomum: uma feroz, e até frenética, necessidade de enfrentar o mundo com velocidade máxima e cautela mínima.” Uma mistura explosiva que, desta vez, o conduziu não ao pódio, mas à prisão.