Falta de água em São Paulo pode esvaziar a maré de Aécio Neves
A seca extrema afecta 70 cidades do estado – que com 44 milhões de pessoas é o mais populoso do Brasil – que já decretaram racionamento da distribuição de água. Dilma já apontou culpas ao partido rival, o PSDB.
O insignificante episódio não passa de uma nota de rodapé de página, mas serve como uma espécie de parábola do possível – para já incalculável – impacto político de uma crise hídrica sem precedentes em plena campanha presidencial. No dia 5 de Outubro, na primeira volta eleitoral, o PSDB, que governa o estado de São Paulo desde 1995, sobreviveu nas urnas: o governador foi reeleito com uma confortável maioria, e o partido até roubou ao rival Partido dos Trabalhadores (PT) uma cadeira do Senado.
Mas agora, os tucanos – assim chamados porque o animal é o símbolo do PSDB – estão preocupados que a escassez de água possa prejudicar as aspirações de Aécio Neves, revoltando uma parcela do eleitorado contra a sua gestão. Como notam vários comentadores, o governador tem resistido à pressão para decretar o racionamento de água antes da derradeira votação presidencial, com medo de uma reacção negativa nas urnas.
No domingo à noite, a Presidente candidata ao segundo mandato, Dilma Rousseff, não fez referência à crise hídrica de São Paulo, mas no confronto anterior assinalou aos eleitores paulistanos que a actual situação resultava da má gestão do PSDB no estado, que não terá feito nem o planeamento nem os investimentos adequados para garantir que o sistema de abastecimento não entrava em colapso.
Números divulgados nesta segunda-feira pelo instituto de sondagens Datafolha revelam que a falta de água está generalizada e já atinge 60% da população de São Paulo, que confirmou a interrupção do abastecimento nos últimos 30 dias. Os residentes em prédios de apartamentos, habitualmente com depósitos de água, têm sofrido menos do que os moradores em casas – desses, 67% sofreram com o corte do serviço (contra apenas 26% em apartamentos).
O inquérito também mostra o nível de preocupação e até alarme em que vivem muitos paulistanos, com 66% dos inquiridos a confirmar que estão a guardar água em casa como precaução em caso de desabastecimento. Nos supermercados, há quem compre paletes de garrafões de água tal e qual chegam dos armazenistas, sem desembrulhar do plástico.
Fátima, que mora no bairro do Itaim Bibi, ainda não sentiu a falta de água em casa, mas só porque o seu edifício “tem uma caixa de água muito grande” que acumula e distribui para todos os apartamentos. “Então, em casa não falta, mas no condomínio falta”, diz. Conselhos e dicas sobre como poupar água nas tarefas mais comuns tornaram-se frequentes.
Já Amanda Luizon Damas, de 25 anos, e moradora no Jardim Conceição, em Osasco, passou todo o fim-de-semana à espera de que a água pingasse na torneira de casa. O reservatório da moradia tinha o suficiente para garantir o banho, a descarga da retrete e as necessidades da cozinha – mas só ao final da tarde de domingo, quando sentiu movimentação nos canos, é que Amanda arriscou ligar a máquina da roupa acumulada durante toda a semana.
Na zona norte de São Paulo, já faz três meses que a água é cortada durante a noite, entre as 21h e as seis da manhã seguinte. Na zona leste, as lanchonetes passaram a usar pratos e copos de plástico, nos cabeleireiros usam-se baldes para lavar o cabelo e o negócio da lavagem de carros nas estações de serviço praticamente acabou.
Noutros lugares da periferia de São Paulo e cidades da região metropolitana, a situação atingiu o dramatismo, com registos de cortes de abastecimento que já chegaram a durar quase duas semanas. Descontentes com a situação, os moradores de bairros começaram a organizar-se em “sociedades” que pagam quotas para contratar os “camiões-pipa”: muitos desses veículos-cisterna passaram a circular com escolta depois de casos de ataque e desvio por populações iradas.
O receio do PSDB é que o agravamento da situação leve os eleitores a manifestar essa ira na votação, penalizando o candidato do partido. Os lugares mais afectados pela falta de água são os mais pobres da cidade, zonas onde o voto de protesto pode com mais facilidade transferir-se para o PT.
Sistema em falência
Nem a pancada de chuva que caiu antes do debate presidencial durante perto de uma hora, nem a que se estima possa reaparecer a partir de quarta-feira, serão suficientes para melhorar a situação do sistema Cantareira, um vasto e complexo sistema de barragens e reservatórios que é a fonte primária de abastecimento de água de São Paulo – e que vive a maior crise dos últimos 80 anos.
Os especialistas advertem que a sustentabilidade do sistema não se resolve prontamente com umas quantas cargas de água e que a recuperação dos recursos pode levar décadas. Além disso, a poupança dos consumidores individuais, que está a ser incentivada, representa uma gota de água (!) que dificilmente ajudará a superar a actual situação de carência: os maiores gastos provêm do consumo industrial (da agropecuária e sector transformador) e das perdas por falta de manutenção do sistema.
Há meses que a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) está a recorrer à libertação de reservas do chamado volume morto, uma medida de emergência polémica por causa da má qualidade da água. O índice do Cantareira no domingo era de 3,6% da capacidade, um nível que é considerado crítico (e é o pior registo histórico). Os receios são de que durante o período quente, entre Novembro e Março do próximo ano, o sistema possa secar por completo.
A seca extrema afecta 70 cidades do estado – que com 44 milhões de pessoas é o mais populoso do Brasil – que já decretaram racionamento da distribuição de água. A Sabesp eufemisticamente designa essa medida como “administração da disponibilidade de água” e garante que esse quadro atinge apenas 2% da população. Os problemas no abastecimento, reconheceu a empresa, são um “desconforto”, mas não se devem à inexistência de água, foram provocados pela pressão reduzida no sistema.
De acordo com o inquérito do Datafolha, três em quatro paulistanos consideram que o governo estadual poderia ter evitado a crise hídrica. Para 66% dos inquiridos, o governo tem “muita responsabilidade” pela situação vivida na área metropolitana. Só 23% dos inquiridos responsabilizam a falta de água exclusivamente na seca e escassez de chuva da região.
Apesar de reeleito, o governador de São Paulo tem visto a sua popularidade cair por causa da falta de água: de Agosto para hoje, o número de eleitores que classifica o seu desempenho como “ruim ou péssimo” aumentou de 38% para 43%; enquanto os que entendem que é “óptimo ou bom” diminuiu de 21% para 19%.