Realismo: precisa-se!

“Neo-Realismo e Novos Realismos”, um dos ciclos do DocLisboa, arranca hoje à meia-noite, no Cinema Ideal, para mostrar realidades que nos confrontam com a vida. O PÚBLICO falou com Davide Oberto, um dos programadores desta retrospectiva. Que acredita que este cinema dá ao espectador uma possibilidade de ‘resistência’ que lhe permite confrontar o futuro. "Precisamos destes filmes, precisamos deste cinema”.

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O neo-realismo italiano foi o ponto de partda para encontrar traços do realismo noutras geografias: L'Amore in Città
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Manila in the Claws of Light, de Lino Brocka, abre hoje, às 24h, o ciclo
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Que diálogo se pode estabelecer entre Ossos, de Pedro Costa, e A Terra Treme, de Luchino Visconti?

Mas nestes tempos em que a memória se apaga e a alarvidade é sinónimo de entretenimento, quem os poderá ver? Quem os querará ver? Davide Oberto, um dos programadores do ciclo (com Cíntia Gil e Augusto M. Seabra), acredita que haverá sempre gente interessada e curiosa, muito para lá do espectador habitual de festivais.

“Construiu-se uma ideia muito paternalista de cultura popular em que as pessoas são todas idiotas, que só desejam lixo e, portanto, é lixo o que devem ter. Isso é uma mentira”, diz. Davide Oberto sabe do que fala. Crítico de cinema e programador no Festival de Cinema de Turim, já levou filmes às periferias, aos subúrbios, às cidades do interior da Itália. E o que encontrou foi sempre, sublinha, curiosidade e necessidade de ver. O contexto social e político actual tem ajudado “Com a crise, com o enfraquecimento da democracia e o aumento das desigualdades, relacionamo-nos mais com a vida. E este tipo de cinema dá-nos muitos mais instrumentos para a interpretar do que os produtos do espectáculo. Representam também uma ‘resistência’ que nos permite confrontar e olhar o futuro. Precisamos destes filmes, precisamos deste cinema”.

A propósito de filmes, regresse-se a “Neo-Realismo e Novo Realismos”. O que motivou esta selecção? “Quis propor uma espécie de manifesto, algo provocatório. Quis explorar a ideia do documentário no cinema, colocá-lo em movimento, em contradição, no interior da própria retrospectiva. E decidi começar pelo neo-realismo italiano, para encontrar traços do realismo noutras geografias”. Essa busca pode concluir-se em The Exiles, de Kent MacKenzie, em Subarnarekha, de Ritwik Ghatak (dia 25, Cinemateca) ou em Manila in the Claws of Light, mas a fonte situa-se na Itália dos finais dos anos 40 do século XX, no filme colectivo L'Amore in Città (dia 23, Cinemateca), em Appunti su un Fatto di Cronaca, de Luchino Visconti (sexta-feira e dia 26 na Culturgest) ou em Giorni di Gloria [sexta-feira e dia 26, na Culturgest] outro filme colectivo.

“São obras que estão no limite do documentário, que se apropriam dos formatos da reportagem jornalística ou televisiva, da entrevista e nos quais encontramos uma encenação. Por exemplo em Giorni di Gloria, sobre a resistência italiana na Segunda Guerra Mundial, isso é muito evidente”. Nada que impeça o espectador um encontro com uma realidade, “mas uma realidade criada”, atalha Davide Oberto: “O neo-realismo italiano foi uma linguagem cinematográfica desenvolvida nas condições do pós-guerra, depois da derrota do fascismo. Não existiam estúdios, alguns dos seus actores vinham do cinema popular, como a Anna Magnani, ou eram amadores, anónimos. Não pretendia imitar ou captar a vida, mas criá-la”. E essa vida era a das pessoas comuns, das crianças, das mulheres, dos velhos, dos desempregados, dos jovens, dos pobres. O programador acredita que certo cinema, aquele comprometido com as ficções do documental, ainda acolhe nas suas imagens essa galeria imensa e tão viva, e nomeia, como exemplos, filmes das outras secções do Doclisboa. “Os filmes do Lav Diaz e do Carlo Schirinzi [dia 23, Culturgest] ou Belluscone. Uma História Siciliana de Francesco Maresco [dia 24, City). Apesar das dificuldades financeiras, da solidão que os seus autores enfrentam, eles existem”.

Filmes que falam entre si
O filme de Maresco, uma espécie de inquérito às ligações entre Silvio Berlusconi e a Cosa Nostra Siciliana ("espécie de" porque esse inquérito se revela desde o início impossível e o filme vai escolhendo outros pontos de apoio), é um bom mote para discutir a ausência aparente da “commedia all´italiana” na selecção. Espreitará este “género” em algumas das suas imagens? “Sim, nos filmes do Dino Risi, e do Alberto Lattuada [que integram L’ Amore in Cittá]. Há uma leveza, um humor que remete para a comédia italiana. Só podia mostrar um número determinado de filmes e esse é aquele que estabelece essa ligação. Apesar da fantasia, da ficção que caracterizou os filmes de Risi e outras cineastas, a crítica sobre as condições de existência e o carácter dos indivíduos esteve sempre presente”.

São associações assim que o programa procura estabelecer. “Há aqui filmes que falam uns com outros, mesmo sem se conhecerem, mesmo quando provêm de geografias distantes. Ossos de Pedro Costa com La Terra Trema, de Visconti, que, apesar das diferenças estilísticas, criam a realidade, provocando um curto-circuito entre a ficção e o documentário. Mas também o Umberto D. [dia 25, São Jorge) com o filme do Lino Brocka, o episódio do Risi [em L’ Amore in Cittá] com We are the Lambeth Boys, de Karel Reisz. Espero que os espectadores descubram traço comuns, histórias semelhantes”.

Sobre o regresso do realismo ao mainstream Davide Oberto não tem grandes ilusões. “Hoje tem a mesma função que tem na televisão. Utiliza as pessoas para criar emoções fáceis, história edificantes que limpam as consciências”. Daí a importância de um ciclo como “Neo-Realismo e Novos Realismo”. “Se conseguir pôr as pessoas a discutir, a ver, se conseguir criar lugares onde isso possa acontecer, é porque o meu trabalho valeu a pena. Porque estes filmes ainda estão vivos, muito vivos”.


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