Tem pouco menos de 25 minutos e uma promessa bem maior que a sua duração. Começa com a maior intimidade possível para quem canta: a voz lançada ao ar enquanto a água corre no duche e não há ninguém a ver. Éme “a capela”. O ritmo não está no ponto, a voz não afina tudo. Fica essa proximidade desarmante e, pelo menos, dois versos:“cantei mas não vi o luar / ficou a canção para quem quiser cantar”. Ficou a canção. Sete delas depois desta introdução é precisamente isso que fica. Éme, que é João Marcelo, membro do colectivo/gangue/agremiação musical Cafetra, vocalista n’Os Passos Em Volta, mostra em Último Siso aquilo que Gancia, o álbum anterior, já prenunciava: o assomar de um músico que se põe em canção sem subterfúgios (a transparência emocional é a regra) e que, com a cabeça cheia dos Dylans de ontem e dos Fachadas de hoje, tem o dom de saber identificar, trabalhar e adornar com precisão uma melodia.
“Gancia” era um álbum tão bonito quanto disperso. Era mais colecção de canções que álbum de corpo inteiro – e isso fazia parte do seu charme. Último Siso que, a começar pelo título, aponta para a chegada a uma certa maturidade, é verdadeiramente um álbum. Som de identidade definida (guitarra eléctrica limpa a conduzir, o calor do órgão a colorir, secção rítmica de precisão inatacável), voz segura de si e das incertezas que canta. Gravado por Walter Benjamin, produzido por B Fachada e gravado com três companheiros da Cafetra (Júlia Reis na bateria, Lourenço Crespo nas teclas e Miguel Abreu no baixo), Último Siso tem travo clássico e sentimento moderno – Éme é muito do seu tempo.
“Estou no futuro a achar presente”, canta no balanço
rocksteadyde
Um lugar, cujo segredo está no salto do contratempo dos versos para a tempo certo, oh tão trauteável, do refrão.
“Um lugar é tão difícil de encontrar”, confessa Éme nele. Musicalmente, encontrou-o. Está no marulhar misterioso de
Escolhe o teu veneno, essa grande, grande canção (
“Ninguém me avisou que eu ia ser assim”). Está na surpresa de ouvir
Cara que tenho(a pop portuguesa dos anos 1980 no corpo de um cantautor) despedir-se com solo de guitarra feito mancha de electricidade e com uivos à Joe Strummer; está na deliciosamente divagante
Temos medo, cenário reconfortante para a ansiedade geracional exposta (
“se não nos dão paz, eu não vou ser capaz”); ou na carta de amor/ódio a Lisboa,
Lisa, que, sem preconceitos, faz ponte declarada com o Fachada mais declaradamente pop.
Éme despede-se como se apresentou. Despido. No fim, uma voz e uma guitarra acústica. “A voz deitou-se e já não se levanta”, ouvimos Éme. Liberdade de autor. Esta voz acabou de se erguer verdadeiramente. Último Siso é precioso.