Pequim e Moscovo "abrem novas possibilidades", unidos pelo pragmatismo económico
Os dois governos assinaram nos últimos dias dezenas de acordos económicos, que assumem particular importância numa altura de confronto entre a Rússia e o Ocidente.
As duas comitivas elogiaram a aproximação cada vez mais estreita entre os dois países, mas foi mais a pensar em quem não estava presente que o encontro se desenrolou. A Rússia, cada vez mais embrenhada na complicada situação económica que as sanções internacionais a mergulharam, procura “abrir novas possibilidades”, como disse Medvedev, e a grande potência chinesa é o parceiro ideal. Pequim procura assegurar o seu posto como uma das principais economias mundiais e os números não bastam, é preciso reconhecimento.
Privadas de financiamento junto das principais instituições bancárias norte-americanas e europeias, as empresas russas precisam de crédito urgente. Foram abertas linhas de financiamento entre os bancos chineses Exim e o Banco de Desenvolvimento da China e alguns dos bancos russos mais atingidos pelas sanções.
A China tem lidado nas últimas semanas com manifestações diárias em Hong Kong, motivadas pelos sectores pró-democráticos – algo que faz lembrar o início da revolta em Kiev, no final de 2013, que precipitou o conflito no Leste da Ucrânia. As semelhanças foram notadas também em Pequim e a viagem à Rússia serviu para que o aviso fosse deixado. O vice-primeiro-ministro Wang Yang criticou a ingerência ocidental em Hong Kong que está a tentar forçar uma “revolução colorida”, numa clara referência à Revolução Laranja na Ucrânia em 2004.
“Estes acontecimentos vêm reforçar ainda mais os sistemas normativos daquilo que China e Rússia têm defendido em termos de soberania e não ingerência”, observa a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Maria Raquel Freire. No entanto, a especialista em Relações Internacionais entende que “as declarações não significam alteração do posicionamento chinês”, que é a de se manter de lado do conflito em termos oficiais.
Os dois governos concordaram também em utilizar apenas as suas divisas domésticas (o rublo e o yuan) nas suas trocas comerciais, em vez do dólar, durante um período de três anos – o que deverá envolver quase 20 mil milhões de euros, segundo a Reuters. A China tem promovido a utilização da sua moeda nas trocas internacionais, reduzindo o papel do dólar.
No último ano, as trocas comerciais entre os dois vizinhos movimentaram 70 mil milhões de euros e, de acordo com os desejos firmados neste encontro, a expectativa é que esse valor seja dobrado em 2015 e ultrapasse os 150 mil milhões no final da década. Na equação entra já, por exemplo, o acordo para o fornecimento de gás natural russo assinado em Maio entre os dois Presidentes, no valor de 315 mil milhões de euros, cujo início está marcado para 2018.
A aproximação entre Moscovo e Pequim é uma tendência que tem sido seguida nos últimos anos, mas que ganha um novo valor num contexto de maior confronto entre o Ocidente e a Rússia, em virtude do conflito na Ucrânia – onde, dizem os Estados Unidos e a Europa, o exército russo terá intervindo directamente. A China tem mantido a sua habitual política de não ingerência nos assuntos internos de outros países, apelando à concretização de uma solução política, embora condene as sanções aplicadas à Rússia.
China mantém uma postura em que tem ganhos óbvios com a aproximação da Rússia – sobretudo ao nível energético –, mas tem de salvaguardar as relações económicas que mantém em todo o mundo. “A China tem uma política de alguma independência, não se envolvendo, não veta nem aprova. Esta postura de distanciamento tem-lhe permitido alguma margem de manobra”, explica Raquel Freire.
Aquilo que realmente preocupa Pequim são as sanções e, portanto, o objectivo é o de “refrear de uma situação que pode trazer consequências desagradáveis para a própria China”.
O aprofundar de relações entre os dois países prende-se sobretudo com a defesa de um modelo de desenvolvimento económico alternativo ao modelo capitalista ocidental. “A Rússia tem vincado a necessidade de um pólo alternativo e não hegemónico”, diz a investigadora.
Alguns analistas temem que o contínuo isolamento da Rússia do sistema ocidental, aliado a uma postura cada vez mais afirmativa da China em relação às suas reivindicações territoriais nos mares do Sudeste asiático possam levar ao estabelecimento de uma aliança militar rival da NATO – ou seja, um regresso a um cenário de Guerra Fria. Raquel Freire não considera que este seja um desenvolvimento provável, lembrando que os dois países “são competidores regionais, apesar de tudo”. Para que tal acontecesse, seria necessária “uma grande alteração do statu quo que obrigue a um redesenhar dos equilíbrios de poder”.