“Qualquer elemento pode falhar perante uma situação de stress”
Director do Serviço de Infecciologia do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, uma das três unidades de referência do país preparada para receber eventuais casos de ébola, recorda que há gestos involuntários que podem pôr em causa os protocolos de contenção.
Mas uma coisa são as instruções escritas num papel, outra diferente é “estar trabalhar com grande stress, em situações que geram medo. Há gestos involuntários e reacções que as pessoas não controlam e que podem fazem falhar as medidas de contenção”, explica Fernando Maltez, director do Serviço de Infecciologia do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, uma das três unidades de referência do país preparada para receber eventuais casos de ébola.
Fernando Maltez diz que não há informação suficiente sobre o caso da auxiliar de enfermagem que foi infectada em Madrid, mas admite que tenha havido “uma falha involuntária”. A espanhola deu algumas entrevistas e contou que pensa que se terá contaminado ao tocar na cara com as luvas, quando despia o equipamento, depois de ter entrado no quarto do missionário infectado, onde esteve duas vezes, um para mudar um pano e outro para fazer a limpeza depois da morte do doente.
“Temos um plano de contingência montado que consideramos seguro mas, como qualquer plano de contingência, qualquer elemento de uma equipa pode falhar perante uma situação de stress, de risco, pode ter um gesto que faz falhar o sistema todo. São coisas imprevisíveis. É sempre possível”, admite o médico, que é também o presidente do colégio da especialidade de Infecciologia da Ordem dos Médicos.
Mas sublinha que o que está em causa para um país como Portugal não é um cenário “de propagação descontrolada da infecção”, como o que está a acontecer na África Ocidental. “O perigo real para a Europa e Portugal é o de vir a ter alguns casos importados”, mas, “a partir do momento em que são detectados, pensamos que temos mecanismos controlados para controlar a infecção”. Fernando Maltez nota que aqueles que são os grandes locais de grande disseminação" têm infra-estruturas de saúde muito limitadas, não têm equipamentos de protecção, médicos em número suficiente, quartos de isolamento”.
Dos 14 quartos desta enfermaria de isolamento do serviço de doenças infecto-contagiosas do Curry Cabral há dois preparados para acolher eventuais casos de ébola em Portugal. À primeira vista parece uma banal enfermaria, com corredores de ar asséptico e luzes artificiais, mas pequenos pormenores, uns visíveis, outros invisíveis, distinguem-na de outras.
No exterior de cada quarto de isolamento há dois mostradores que parecem conta-quilómetros, servem para medir a pressão do quarto e da antecâmara que o precede (todos estes quartos têm uma espécie de pequeno hall fechado), de modo a que o quarto esteja a pressão inferior à da antecâmara, de modo a impedir que o ar saia para o corredor e seja antes empurrado para os filtros de ar no quarto. Como na entrada de um banco, é preciso que uma porta se feche para que seja possível abrir a seguinte. No quarto, todo o ar é renovado cinco a seis vezes por hora, explica Fernando Maltez.
É na antecâmara de cada quarto que muito está em jogo. É aqui que têm de ser vestido e, mais importante, despido o equipamento de protecção que é suposto servir de barreira ao contágio para que quem contacte com o doente, ou com o seu material orgânico (sangue, saliva, por exemplo), não seja infectado. Depois de usado, o equipamento usado é colocado num caixote, para depois ser incinerado, explica Fernando Maltez.
A enfermaria está vazia de doentes. Enquanto fazemos a visita ao quarto, uma empregada da limpeza, que é impedida de falar com o PÚBLICO, apenas tem tempo de dizer que não tem medo de ali trabalhar e que usa sempre o equipamento. O médico diz que deram e estão a dar formação a todos os que possam incorrer em perigo, médicos e enfermeiros, certamente, mas também auxiliares de enfermagem, empregados de limpeza, electricistas e funcionários da casa mortuária. Questionado sobre o número e tipo de acções de formação responde que são “em número e quantidade adequados”.
No resto do país estão em curso as medidas de contenção que lhe parecem as mais adequadas, como a criação de “salas individualizadas para estes doentes estarem separados” em todas as unidades de saúde, a regras que implicam que só os aeroportos de Lisboa e Lajes possam receber aviões com casos suspeitos, comentando assim o caso do avião que, esta semana, foi impedido de aterrar no Funchal para reabastecer por transportar uma médica norueguesa, da organização Médicos Sem Fronteiras, infectada com ébola na Serra Leoa. Acabou por fazer escala nas Canárias.
Quem responde por esse tipo de medidas é a Direcção-Geral de Saúde, sublinha, mas diz que “não faria sentido abrir um precedente permitindo que aterrasse no Funchal. É a mesma coisa que dizer que os hospitais de referência para o ébola são o São João e o Curry Cabral e autorizar a ida de um doente infectado para o Hospital da Guarda”.
Retoma dos voos com Guiné-Bissau "pode aumentar o risco"
Fernando Maltez considera que “a situação é preocupante” porque “a epidemia na África Ocidental não está de forma alguma controlada. Continua a aumentar e portanto há riscos de propagação aos países com fronteiras terrestres com zona endémica”. Questionado sobre se a retoma dos voos directos da TAP com Guiné-Bissau implicará riscos acrescidos para Portugal, admite que “pode aumentar o risco”.
Os três voos semanais voos com o país, que faz fronteira com a Guiné-Conacri, um dos países afectados, serão retomados a 26 de Outubro. As ligações aéreas entre Lisboa e Bissau foram interrompidas em Dezembro, devido ao embarque de cidadãos de origem síria com documentos falsos. O último balanço da Organização Mundial de Saúde, do mês passado, dá conta de 579 casos confirmados e 343 mortes na Guiné-Conacri.
O ministro da Saúde, Paulo Macedo, disse esta quarta-feira na comissão parlamentar de Saúde que Portugal está a equacionar enviar uma equipa para a Guiné-Bissau para ajudar a população a dar resposta ao vírus do ébola "na linha da frente". Segundo adiantou, as autoridades portuguesas têm mantido "contactos sistemáticos" com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), tendo concretizado apoios, ao nível da formação e de envio de material para Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé, referiu a Lusa.
Em relação à Guiné, Paulo Macedo pormenorizou o apoio, revelando que as autoridades de saúde estão a equacionar, conjuntamente com o Instituto Nacional de Emergência Médica, a criação de uma "estrutura para prestar apoio benemérito na chamada linha da frente". "É, de facto, no local que poderemos ser mais úteis", disse, adiantando que o director-geral da Saúde vai deslocar-se à Guiné Bissau no próximo dia 17 para avaliar essa possibilidade.