O ébola, os cães e a ciência

O único estudo sobre o assunto sugere que cães podem ficar infectados pelo vírus, mas não apresentarão sintomas da doença. Até que ponto o cão da mulher espanhola doente de ébola teria permitido saber mais se não tivesse sido abatido?

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Nas aldeias africanas, os cães podem fazer parte da cadeia de transmissão do ébola Afolabi Sotunde/Reuters
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O cão na casa da auxiliar de enfermagem espanhola infectada com ébola SUSANA VERA/Reuters
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Protestos contra o abate do cão à porta de casa da espanhola doente de ébola SUSANA VERA/Reuters

Além dos humanos, o vírus pode matar vários animais, como chimpanzés e gorilas, e pensa-se que os morcegos da fruta em África são o seu reservatório natural. A relação entre o vírus do ébola e os cães ganhou visibilidade quando as autoridades espanholas ordenaram a abate do cão da auxiliar de enfermagem, em estado grave – e que ficou contaminada depois de ter entrado duas vezes no quarto de um missionário espanhol vindo doente da Serra Leoa (ele morreu a 25 de Setembro).

Insurgindo-se contra essa decisão, que começou com o marido da espanhola a não autorizar o abate do cão, os defensores dos direitos dos animais lançaram uma petição para que o animal ficasse antes em quarentena. De nada valeram os protestos, incluindo manifestações à porta de casa da auxiliar de enfermagem, nos arredores de Madrid. Na quarta-feira, o cão foi morto e o corpo incinerado.

Para a decisão, o Departamento de Saúde da Comunidade de Madrid argumentou que a informação científica existente mostrava que “os cães podem ser portadores do vírus mesmo sem terem sintomas” e que o animal apresentava “um risco de transmissão da doença ao homem”.

Do homem e animais para o cão?
Só existe um único estudo sobre a infecção do ébola nos cães. E é isso que diz. Publicado em 2005, na revista Emerging Infectious Diseases, dos Centros para o Controlo e Prevenção das Doenças dos EUA, o estudo foi feito no Gabão a seguir a um surto humano em 2001-2002. A equipa de Eric Leroy, director do Centro Internacional de Investigações Médicas de Franceville (Gabão), estudou 337 cães no território gabanês, a maioria em zonas atingidas pelo surto, à procura de anticorpos específicos contra o ébola desenvolvidos pelo sistema imunitário dos animais, bem como proteínas do vírus (antigénios) e material genético viral.

Os cientistas detectaram a presença de anticorpos contra o vírus no sangue de vários cães – o que é um sinal indirecto de que os animais estiveram em contacto com o vírus do ébola, já que houve uma resposta imunitária contra ele. Mas não detectaram nem antigénios do vírus nem material genético dele, o que significa que não detectaram o próprio vírus nos cães.

É neste sentido que foram os esclarecimentos do director-geral da Saúde português, Francisco George, esta quinta-feira à agência Lusa: “O vírus não foi nunca detectado no cão”, garantiu. “No plano da precaução, a questão do cão foi considerada importante, porque não se sabe até que ponto pode ou não ter a infecção e se é, portanto, uma fonte eventual de transmissão.”

Essa possibilidade está nas conclusões da equipa de Eric Leroy, atendendo à presença de anticorpos contra o vírus no sangue dos cães: “Este estudo sugere que os cães podem ser infectados pelo vírus do ébola e que a suposta infecção é assintomática”, diz a equipa no início do artigo.

Segundo as observações da equipa, os cães poderão ter sido infectados ou por animais selvagens doentes ou pelos seres humanos. “Observámos alguns cães a comer restos de animais mortos infectados pelo ébola, trazidos para as aldeias, e outros a lamber o vomitado de pessoas infectadas”, relatam os cientistas. “Em conjunto, os resultados sugerem fortemente que os cães podem ser infectados pelo ébola e que alguns cães nas aldeias foram contaminados durante o surto humano de 2001-2002”, refere o artigo, acrescentando que nenhum dos cães altamente expostos ao vírus nesse surto desenvolveu sintomas.

Do cão para o homem?
“Tendo em conta a frequência dos contactos entre humanos e cães domésticos, a infecção canina de ébola deve ser considerada como um factor de risco potencial para a infecção humana e a propagação do vírus. A infecção humana pode acontecer através de lambidelas, mordeduras e festas”, refere-se ainda no artigo.

Os cientistas também põem a hipótese de os cães, abundantes nas aldeias africanas, poderem transmitir o vírus às pessoas: “Os cães infectados sem sintomas podem ser uma fonte potencial de surtos humanos de ébola e da disseminação do vírus durante surtos humanos, o que poderá explicar alguns casos humanos sem relação epidemiológica”, escrevem. E mencionam vários surtos humanos de origem ainda hoje desconhecida, na República Democrática do Congo, no Gabão e no Sudão, cuja génese poderia assim ter uma explicação. O vírus do ébola foi identificado pela primeira vem em 1976, numa região perto do rio Ébola, no antigo Zaire, actual República Democrática do Congo.

Resumindo, embora existam mais indícios de transmissão dos humanos e de outros animais infectados para os cães, não é possível excluir que a transmissão também se possa dar dos cães para os humanos.

Apesar das primeiras pistas apontadas por este estudo, está por determinar o papel exacto dos cães nos surtos de ébola, uma vez que a análise de Eric Leroy foi feita a posteriori. Por isso, a hipótese de os cães infectarem os humanos através de lambidelas, mordidelas e festas não está testada. E isso faz dizer a David Moore, especialista em doenças infecciosas da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, citado pela revista Time, que “não há quaisquer provas que sustentem o papel dos cães na transmissão”.

Partindo destas incertezas científicas, a discussão sobre o cão espanhol é se teria sido útil à ciência tê-lo mantido vivo. Aqui os especialistas dividem-se.

Ouvido pelo jornal El País, Eric Leroy considerou que o cão espanhol não devia ter sido abatido. “É muito interessante do ponto de vista científico, não serve de nada matá-lo”, defendeu o investigador ainda antes da morte do animal. “Deve ser isolado e monitorizado, os seus parâmetros biológicos estudados e verificar-se se excreta o vírus.”

Como o estudo no Gabão foi já depois do surto, Eric Leroy frisou: “Em Madrid, temos [tínhamos] um possível caso activo, com o qual [podíamos] aprender muitas coisas, como, por exemplo, se os cães representam efectivamente um foco de infecção nos surtos do ébola.” Se estivesse infectado, defendeu, poderia ver-se se recuperaria e se teria eliminado completamente o vírus.

No entanto, os especialistas espanhóis levantaram o problema de em Espanha não haver um laboratório de biossegurança de nível 4 (o máximo), exigido para manipular o vírus do ébola. “O ideal seria transferi-lo [ao cão] para condições de biossegurança, coisa que não temos em Espanha, e pô-lo em observação”, disse ao jornal El País José Manuel Sánchez Vizcaíno, especialista em sanidade animal da Universidade Complutense de Madrid. “Não se podia correr o risco de infectar tratadores e veterinários.”

O cão foi abatido no Laboratório de Alerta Biológica da Universidade Complutense, e a seguir transportado para o local de incineração num dispositivo selado de segurança biológica. Não houve recolha de amostras. Isso criaria mais riscos, explicou ao El País o coordenador do laboratório, o veterinário Luis Martín Otero, “Tinha de se usar um laboratório de nível 4 com esse agente patogénico, porque é o que diz a legislação.”

A questão que permanece é por que não se optou então por enviar o cadáver para autópsia num dos países europeus que possuem instalações de biossegurança adequadas.

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