Michael Ignatieff: "Devia ser uma regra — não intervenciones um país que não compreendes"

O Ocidente deve intervir contra o Estado Islâmico com forças terrestres, e ter o realismo de apoiar o regime de Assad, diz Ignatieff. As novas classes médias preferem a liberdade privada de comprar do que a pública de agir.

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Michael Ignatieff é um dos pensadores políticos mais influentes do mundo Daniel Rocha

Há hoje ameaças à liberdade mais fortes do que no tempo da Guerra Fria?
Primeiro, as boas notícias: temos mais pessoas vivendo a democracia, a liberdade política e cívica, do que alguma vez na História. As más notícias são os regimes de capitalismo autoritário, que se consolidaram na China, Rússia, Turquia, Hungria, Roménia, Angola, Moçambique, etc.. Temos capitalismo com governo de partido único. As pessoas têm liberdade privada, de comprar e vender, mas não de mobilizar, participar, agir. As liberdades públicas não existem para 1,5 mil milhões de pessoas. Isso é uma coisa nova.

Não é propriamente novo, tivemos capitalismo de partido único em Portugal.
Sim, mas nunca tínhamos tido globalização, com democracia liberal de um lado e capitalismo autoritário do outro. E o curioso é que a globalização está a estabilizar os regimes autoritários, não a miná-los. O facto de as pessoas terem liberdade privada leva-as a não querer saber da liberdade pública.

Porquê?
Preferem a ordem ao caos. Na China dizem-lhes que se lutarem por direitos democráticos, destroem o país. O mesmo na Rússia. As pessoas escolhem a ordem e a repressão, desde que isso garanta as suas liberdades privadas.

As novas classes médias, que vêm da pobreza, na China, Rússia ou Turquia, tendem a não valorizar muito os valores democráticos?
Aceitam a liberdade privada e são cúmplices do autoritarismo.

As pessoas são levadas a temer a liberdade.
Penso que sim. Só se aprende a confiar na liberdade quando se tem instituições como o primado da lei, tribunais independentes, imprensa livre. A democracia não é só o governo da maioria. Só se perde o medo quando se tem direitos.

Isso é difícil de construir.
Muito difícil. Um trabalho de séculos. É preciso criar hábitos da mente e do coração. Mas eu sou optimista, e acho que a democracia não é apenas uma ideia europeia. Porque expressa um conceito muito universal: a minha voz vale tanto como a tua. Ser este apelo moral à igualdade torna a democracia atraente para muitas pessoas. Mas primeiro é necessário ultrapassar o medo.

As tentativas de exportar a democracia não têm tido muito êxito.
A maior parte das vezes não acertamos, não o nego. Mas às vezes acertamos.

Segundo um conceito criado por si, "Responsabilidade para Proteger" (R2P), o Ocidente tem o direito e a obrigação de ingerência quando está em perigo a segurança de populações. Que avaliação faz hoje das últimas três grandes intervenções, que tiveram o seu apoio — Afeganistão, Iraque, Líbia?
São casos diferentes. Não se pode impor a democracia nem a liberdade com uma arma apontada. Não se pode mudar uma cultura de um momento para o outro. As circunstâncias eram diferentes. No Afeganistão, tivemos de trabalhar com o que tínhamos, que eram senhores da guerra locais, estado altamente descentralizado, lógica tribal. Se queríamos pôr alguma coisa a funcionar no Afeganistão, tínhamos de abandonar muitos dos nossos ideais, e trabalhar com os poderes fácticos existentes no terreno. Isso levou-nos muito tempo a aceitar. Porque antes de ter liberdade e instituições decentes, é preciso ter ordem, e isso não se consegue a cinco mil metros de altitude. É preciso pôr as botas no terreno. Não tivemos êxito no Afeganistão, nem no Iraque, e é ainda mais evidente na Líbia. Mas correu bem na Bósnia, em Timor-Leste, no Kosovo, na Macedónia.

Que lições se devem tirar?
Três lições: devemos ser humildes, saber alguma coisa sobre o lugar onde se vai intervir, e devemos trabalhar com o que temos. Somos inacreditavelmente ignorantes. Pensámos que lugares como a Líbia eram folhas em branco. A nossa ignorância foi catastrófica.

Como se explica isso? Os EUA têm as melhores universidades.
Que falharam. Somos ignorantes e temos um incurável provincianismo. Devia ser uma regra: não intervenciones um país que não compreendes. Outra regra: se queres ordem, tens de trabalhar com o que tens. Se trabalhas com o que tens, precisas de fazer compromissos, sobre democracia, direitos humanos, etc.. E se vais fazer isso tens de ter tropas no terreno. E estas são mensagens muito difíceis de aceitar para o público dos países democráticos. A resposta das pessoas ‘inteligentes’ é: vamos ficar em casa. Isso não é responsável. Olhemos para outro caso, a Síria. Não fizemos nada, e acabámos por ter o Estado Islâmico.

O Estado Islâmico apareceu em consequência da intervenção americana no Iraque, onde não havia fundamentalismo islâmico.
Não há dúvidas sobre isso. A desestabilização do Iraque desestabilizou a Síria. Mas desde que Assad começou a matar o seu próprio povo, deixámos que isso acontecesse, e podemos estar a pagar o preço da não intervenção.

É agora altura de aplicar outra teoria sua, a do "Mal Menor", ajudando Assad?
O Estado Islâmico tem de ser detido, porque não queremos extremistas terroristas a controlar território e poços de petróleo. Se usarmos o poder aéreo, podemos impedi-los de se expandirem, mas não nos vemos livres deles. Temos por isso de estar preparados para os combater no terreno. Os curdos vão lutar, mas não para os expulsar do Iraque. O mesmo com as milícias xiitas.

Não será portanto suficiente ajudar esses grupos.
Podemos ajudá-los, mas isso não vai resolver o problema. Os EUA estão a aperceber-se dos limites do seu poder, nesta região, o que é bom. E é preciso fazer alguma coisa. Por isso digo que talvez tenhamos de promover um cessar-fogo em que Assad mantém o território que tem, e os rebeldes mantêm o que têm. Mas que as mortes parem. Porque o que está a acontecer é uma catástrofe, e não vejo como o ISIS [Estado Islâmico] pode ser derrotado, a menos que haja um cessar-fogo com o regime de Assad.

É imaginável uma intervenção em grande escala, semelhante à de 2003 no Iraque?
É muito difícil imaginar isso. Só se houver um ataque a território turco, a que a NATO teria de responder. Ou uma catástrofe humanitária, com perigo real de genocídio. Se não, assistiremos a uma longa guerra de atrito, em que as fronteiras do Iraque e da Síria se irão aos poucos dissolvendo. O Iraque e a Síria ainda existem de jure, mas de facto estão a desaparecer.

É mais clara a emergência da nação curda, como estado?
Penso que sim. Já há, de facto, um estado curdo independente. Para sê-lo de jure, será necessária uma conferência internacional, daqui a 15 ou 20 anos, em que os membros do Conselho de Segurança, incluindo a Rússia e a China, se sentarão para redesenhar os mapas de toda a região.

A emergência dos nacionalismos, ainda que na sua forma benigna, como na Escócia ou Catalunha, vai obrigar a redesenhar fronteiras nas próximas décadas?
Há um paradoxo evidente para todos: num mundo global, é de esperar que as comunidades reajam afirmando as suas diferenças. Mas eu oponho-me sempre à secessão, quando as pessoas vivem em democracia, e não é exercida nenhuma violência sobre elas. É sempre melhor partilhar do que separar-se.

A independência não proíbe necessariamente a partilha.
O problema é que, por exemplo, na Catalunha, se assume que um grupo de pessoas é catalão, e outro grupo é espanhol. Como se fossem duas espécies de animais, uns são tigres, outros leopardos. Mas eu conheço pessoas em Barcelona que têm pai espanhol e mãe catalã, há casamentos mistos, uma enorme interligação…

Tal como existia na Jugoslávia.
Sim. O que o nacionalismo sistematicamente esconde é que há quem seja catalão e espanhol ao mesmo tempo. E nas democracias liberais somos livres de escolher se queremos ser mais catalães ou mais espanhóis. E devemos manter a liberdade de ser ambos. Mas o meu conselho para os espanhóis é: dêem-lhes um referendo. A secessão unilateral é uma receita para a guerra civil. Não se consegue manter um estado multinacional excepto com consenso.

Dessa forma se deteve os escoceses. O que terá pesado na vitória do Não?
Para muitos foi a percepção de que a aventura romântica teria custos económicos. A União Europeia parecia fazer baixar o preço da secessão. Mas Bruxelas começou a dar para trás: um novo estado terá de se candidatar de novo à UE. E será um processo lento e complicado, porque a Espanha, ou o Reino Unido, vão opor-se vigorosamente à integração dos novos candidatos.

E qual será a capacidade do nacionalismo na Ucrânia para manter a integridade do país?
O nacionalismo ucraniano tem desafios muito difíceis. Terá de aceitar que a língua russa faz parte da tradição ucraniana, bem como, de alguma forma, a presença da Rússia. É claro que Putin quer, no mínimo, criar um conflito permanente no Leste da Ucrânia. No máximo, pretende criar uma ponte de território que una a Crimeia às zonas orientais da Ucrânia, unificando os territórios. O compromisso seria ter uma autonomia desses territórios do leste, que os colocaria sob controlo real russo, mas sem uma transferência formal de soberania. E desde que a Ucrânia não adira à NATO nem À UE.

Esse compromisso é razoável?
Não. Os ucranianos nunca aceitarão que Mosvovo lhes diga o que fazer em relação à Europa. Esse é a batalha fundamental. Por isso acho importante a pressão económica que obrigue Putin a aceitar um compromisso pior do que gostaria. Que as faixas orientais do país tenham uma autonomia substancial, mas que seja possível uma parceria e programa de adesão à NATO e UE. Em suma: Putin tem de aceitar que a Ucrânia está perdida, e a Ucrânia tem de aceitar a realidade de estar na fronteira da Rússia.

É por causa dessa fatalidade que os fascistas são tão populares em Kiev?
Sim, porque querem expulsar os russos. E também os judeus. Mas o povo ucraniano tem de decidir quem o representa. A História é complicada, mas a Ucrânia terá de escolher: ou quer um nacionalismo cívico, que inclui os russos, ou um nacionalismo fascista. E os actores externos têm de dizer-lhes: se querem tornem-se fascistas, mas não vão ter amigos. Não vão entrar na Europa, e ninguém vai investir aqui.

A presença dos fascistas é precisamente o argumento dos russos para terem tomado a Crimeia.
Sim, tornarem-se fascistas é a melhor maneira de ter os russos em Kiev. Os ucranianos vão perceber isso.

Imagina uma bipolarização que conduza a um grande conflito mundial?
Quando a Internet se desenvolveu, pensou-se que criaríamos uma espécie de comunidade de informação global. Isso preveniria a desinformação e, por isso, a guerra. Mas o interessante é que estamos a criar bolhas de informação, que são mundos separados, de fantasia e mentiras. Depois da Crimeia, Angela Merkel disse sobre Putin uma frase muito reveladora: "Ele vive no seu próprio mundo". Isso define a realidade de hoje. Mesmo Putin, que tem acesso a todo o tipo de informação, vive num mundo de espelhos criado por ele, em que acredita que está a lutar contra os fascistas da Ucrânia.

Em relação a isso, o Ocidente também pode estar na sua própria bolha de informação.
Sim, nós temos o mesmo perigo. É importante ouvir o que dizem os russos e os chineses, e os nossos próprios líderes. A Internet reproduz as divisões que já existem. Cada um está no seu mundo. Putin não precisa de controlar os media. Basta-lhe vender as empresas de comunicação aos seus amigos, e eles criam uma bolha mediática. Erdogan fez o mesmo na Turquia, e, no Ocidente, a excessiva concentração dos media pode ter o mesmo efeito.

Não nos conhecemos melhor, apesar dos novos media.
Não nos conhecemos melhor, de todo, o que é muito perigoso para a paz no mundo. Não penso que uma grande guerra seja provável, porque temos armas nucleares. Mas a nossa incapacidade para nos compreendermos uns aos outros é tão grande como sempre. Na realidade está cada vez maior.

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