Pandemia da sida resultou de uma “tempestade perfeita” que começou em Kinshasa em 1920
O alastramento do vírus VIH pelo mundo foi propiciado por mudanças económicas e sociais que começaram há quase um século em África.
Kinshasa é naquela altura um pujante centro mineiro, com uma rede ferroviária em pleno desenvolvimento. Ajudado por estas circunstâncias, entre 1937 e 1940, o vírus, hoje designado “VIH-1 grupo M”, espalha-se para Brazzaville (capital da República do Congo) via rio Congo e para Lubumbashi e Mbuji Mayi, no Sul da RDC, por barco e comboio. Uns anos mais tarde, entre 1946 e 1953, dissemina-se para Bwamanda e Kisangani, no Norte da RDC.
Mas é só a partir dos anos 1960, com a independência do Congo Belga – um período de menor pujança económica –, que essa forma particular do vírus (VIH-1 grupo M) conhece uma fase de crescimento exponencial em comparação com outras formas então existentes do VIH-1 na região.
Em 1964, o seu subtipo B – a linhagem dos vírus M mais frequentemente encontrada no hemisfério Norte (EUA, Europa, Japão) – desembarca no Haiti, levado por trabalhadores que regressam da RDC ao seu país de origem.
Dali é disseminado para os Estados Unidos e para o resto da Europa. Em 1981, os primeiros casos de sida são reportados nos Estados Unidos. Segue-se a história que todos conhecemos de uma pandemia que, até hoje, já infectou 75 milhões de pessoas.
Foi este cenário da emergência da pandemia de sida que o investigador português Nuno Faria, da Universidade de Oxford (Reino Unido), traçou para o PÚBLICO. Nuno Faria integra a equipa internacional que conseguiu agora, pela primeira vez, reconstituir a “árvore genealógica” do vírus HIV-1 grupo M, hoje responsável por 90% dos casos de infecção a nível global.
Os resultados, que são publicados esta sexta-feira na edição em papel da revista Science, permitem afirmar com grande certeza, segundo os seus autores, que foi efectivamente desta forma que se gerou a pandemia global de VIH, quase um século antes de pandemia surgir.
“O nosso estudo encaixa pela primeira vez as várias peças fragmentárias do puzzle”, diz Nuno Faria, “e mostra que a pandemia de HIV-1 emergiu em Kinshasa por volta de 1920 e daí se espalhou para outras localidades [na RDC e em países vizinhos], décadas antes de ser detectado pela primeira vez”.
Mudanças de comportamento
Por que é que os cientistas se focaram em Kinshasa? “Até hoje, as amostras mais antigas de HIV-1 foram recuperadas em sangue e biopsias datadas de 1959-1960, que pertenciam a dois indivíduos distintos que viveram em Kinshasa”, explicou Nuno Faria ao PÚBLICO. “Esse facto sugeria que a pandemia poderia ter começado nesta cidade, que tinha o crescimento populacional mais rápido da Africa central no início do seculo XX.”
Porém, acrescenta, vários estudos sugeriam que a pandemia também poderia ter começado noutras regiões. Foi isso que o novo estudo veio agora desempatar.
Já se sabia, a partir de anteriores comparações genéticas dos vírus VIH humanos e SIV dos macacos e grandes símios (como chimpanzés e gorilas), que houve, no início, pelo menos 13 transmissões pontuais do vírus entre primatas ou grandes símios e seres humanos, explica a universidade de Oxford em comunicado. E que apenas uma dessas transmissões entre outra espécie e a nossa deu origem ao vírus VIH que se tornaria pandémico – o VIH-1 grupo M. Mas, em particular, não se percebia por que é que de repente, na década de 1960, as infecções pelo vírus M triplicaram e a epidemia alastrou para o resto do mundo. Como explicar que, ao mesmo tempo, um outro grupo de VIH-1, o grupo O, principalmente presente nos Camarões e cuja história, até 1960, foi semelhante à do grupo M, ainda hoje permanece confinado à África centro-ocidental?
“Os nossos resultados sugerem que (…) houve apenas uma pequena ‘janela’ de oportunidade, durante a época colonial belga, para a emergência e difusão desta estirpe particular de VIH”, salienta Oliver Pybus, co-autor de Oxford, no mesmo comunicado.
E conclui: “Ao que tudo indica, uma combinação de factores que se verificou em Kinshasa no início do século XX criou uma ‘tempestade perfeita” para a emergência do VIH [pandémico], dando lugar a uma epidemia generalizada e imparável que se difundiu pela África subsariana”, explica.
Os transportes ferroviários fazem claramente parte da equação: “Os dados dos arquivos coloniais revelam que, no fim dos anos 1940, mais de um milhão de pessoas passava de comboio por Kinshasa cada ano”, diz Nuno Faria.
Mas para além dos caminhos-de-ferro da época colonial – e da própria capacidade de o vírus M se adaptar à espécie humana através de mutações – , os ingredientes dessa fórmula para o desastre também incluem o crescimento demográfico. E sobretudo, argumentam os autores, incluem, a partir de 1960, mudanças de comportamento dos trabalhadores sexuais na RDC, bem como campanhas de vacinação das populações com material médico contaminado.
Nova abordagem
O estudo agora publicado articula, pela primeira vez, dados genéticos extensos com dados históricos. “Até aqui, a maior parte dos estudos abordava o problema de forma fragmentada, olhando para certos genomas de VIH em certas localidades”, diz Oliver Pybus. “Pela primeira vez, nós analisámos todos os dados disponíveis utilizando as mais recentes técnicas filogeográficas, que permitem estimar estatisticamente a proveniência dos vírus. E podemos afirmar, com um alto grau de certeza, onde e quando a pandemia de VIH nasceu.”
Mais precisamente, os cientistas analisaram todas as sequências genéticas dos vírus do grupo M contidas na base de dados do laboratório nacional de Los Alamos, nos EUA, e cruzaram esses resultados com dados geográficos e epidemiológicos.
“O nosso estudo exigiu o desenvolvimento de um conjunto de ferramentas estatísticas para reconstituir a disseminação dos vírus no tempo e no espaço a partir das suas sequências genéticas”, diz por seu lado Philippe Lemay, co-autor da Universidade de Lovaina (Bélgica). E, uma vez esclarecida essa origem espácio-temporal, tornou-se possível comparar o resultado com os dados históricos e concluir que os dados genéticos e os dados documentais contavam histórias compatíveis.
Apesar de achar que o estudo é “tecnicamente brilhante”, Michael Worobey, especialista do estudo das origens do VIH pandémico na Universidade do Arizona (EUA), não concorda totalmente com as conclusões deste trabalho, como relata Jon Cohen, jornalista da Science, num jornalístico publicado na mesma edição que o estudo. Em particular, a ideia de que o vírus M terá sido disseminado pelas campanhas de vacinação não o convence. “Não acho que este artigo resolva a questão das diferenças entre os vírus do grupo O e do grupo M”, salienta.
Os próprios autores também acham que serão precisos mais estudos para perceber o papel exacto dos diversos factores sociais na emergência da pandemia de sida.