A grande literatura brasileira numa colecção de referência

Livros de Machado de Assis, Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto e Alfredo Bosi abrem colecção lançada pela editora Glaciar e pela Academia Brasileira de Letras.

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Machado de Assis aos 57 anos dr
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O editor da Glaciar, Jorge Reis-Sá Paulo Pimenta

Os quatro títulos já lançados – aos quais se juntará ainda este ano O Ateneu, de Raul Pompeia, uma notável singularidade impressionista na ficção brasileira do final do século XIX – mostram bem as ambições desta colecção, que aposta em edições de referência, volumosas, muito cuidadas e bastante caras.

O primeiro volume é uma monumental compilação dos dez romances de Machado de Assis, precedidos de uma extensa apresentação do ensaísta e professor de literatura brasileira Luís Augusto Fischer, igualmente responsável pela fixação do texto. Se os romances da chamada trilogia realista de Machado de Assis – o genial Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borbas (1891) e Dom Casmurro (1899) –  foram sendo regularmente publicados em Portugal, já os seus primeiros livros, como Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874) ou Helena (1876), dificilmente se encontram nas livrarias, e ainda menos em edições fiáveis.

Com mais de 1500 páginas e capa dura, o livro custa quase 80 euros. Os restantes volumes já lançados são mais pequenos e mais baratos, com preços que andam entre 30 e os 50 euros. “Os livros são caros, não vou dizer que são baratos”, reconhece o editor da Glaciar, Jorge Reis-Sá, mas afirma que preferiu “editar obras que podem durar 20 anos”, e não pensadas para a cada vez mais vertiginosa rotação das novidades nas livrarias. “Em 15 anos como editor [co-fundou a Quasi e esteve depois no grupo Babel], nunca fiz uma coisa tão interessante”, diz.

E a verdade é que quem não tiver condições económicas para comprar estes livros tem pelo menos a garantia de que os poderá ler sem ter de se afastar demasiado de casa, já que a Academia Brasileira de Letras encarregou a Glaciar de distribuir exemplares não apenas às poucas bibliotecas que beneficiam de depósito legal, mas a todas as bibliotecas municipais do país.

O ensaísta e poeta Antônio Carlos Secchin, membro da ABL desde 2004 e coordenador da colecção, explicou ao PÚBLICO que “no acordo feito com a Glaciar, a Academia quis ter a certeza de que todas as bibliotecas públicas portuguesas receberiam um exemplar”. Secchin, que esteve esta segunda-feira na Gulbenkian a apresentar a colecção, recorda que o projecto nasceu de uma proposta da Glaciar que a ABL adoptou. “A Academia é uma instituição privada, com recursos próprios, e assume nos seus estatutos o compromisso de difundir a língua e a literatura nacional, e é isso que está fazendo com esta colecção”, diz ainda Secchin.

Cinco títulos por ano
Embora não sejam ainda conhecidos os volumes que sairão a partir de 2015 – a ideia é publicar cinco títulos por ano até 2018 –, o académico brasileiro adianta que “a colecção vai incidir em grandes nomes já falecidos da literatura brasileira”, em “livros clássicos, como os romances de Machado de Assis, ou Os Sertões, de Euclides da Cunha, que passaram pela prova do tempo, mas que nunca tiveram em Portugal a repercussão que justificariam”.

A única e “grata excepção” à regra de não incluir autores vivos, acrescenta Secchin, é justamente o segundo volume da colecção, a Dialética da Colonização, do historiador e crítico Alfredo Bosi, que esteve também na sessão da Gulbenkian, a falar deste seu livro originalmente publicado em 1992. A edição tem prefácio da ensaísta portuguesa Graça Capinha, autora que já desde meados dos anos 90 vem chamando a atenção para a importância das abordagens interdisciplinares de Bosi ao discurso literário. Num conjunto que será dominado pela criação literária em sentido mais estrito, a escolha de Dialética da Colonização é também um modo de mostrar que a colecção pretende ter um âmbito mais latamente cultural e não exclui o ensaísmo.

Um dos quatro volumes já lançados é, de resto, uma das mais inclassificáveis obras da literatura de língua portuguesa de todos os tempos: o extraordinário Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, que é uma emocionante história da Guerra de Canudos e uma epopeia da vida sertaneja no final do século XIX, mas que também pertence de pleno direito à literatura científica, com a sua detalhada informação geográfica, histórica e sociológica.

Todos os livros da colecção têm prefácio de um especialista na obra e no autor – no caso de Os Sertões, Leopoldo M. Bernucci – e uma breve nota biográfica no final. Esta edição da obra-prima de Euclides da Cunha inclui ainda fotografias e, tal como o livro de Bosi, um índice onomástico.

Queremos dar “chaves de acesso aos leitores”, justifica Secchin, e foi justamente isso o que fez no volume que ele próprio organizou, a edição da obra poética completa de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), igualmente lançada na sessão da Gulbenkian.

Partindo da edição que ele próprio organizara em 2008 para a Nova Aguilar, Secchin acrescentou-lhe o livro póstumo Ilustrações para Fotografias de Dandara, com poemas que João Cabral de Melo Neto (que foi cônsul-geral do Brasil no Porto na década de 80) escreveu quando estava colocado, como diplomata, no Senegal.

“Fiz também questão de incluir notas explicativas”, diz, porque o cosmopolita poeta pernambucano era, ao mesmo tempo, alguém “muito vinculado à cultura do Nordeste”, cujos textos incluem “referências geográficas e linguísticas que são difíceis mesmo para leitores brasileiros”. Jorge Reis-Sá acrescenta que decidiram acrescentar a esta edição da obra poética dois ensaios do autor, nos quais este “fala da sua poesia e da dos outros”: Poesia e Composição e Sobre a Função Moderna da Poesia. Com perto de mil páginas, o livro inclui ainda uma cronologia do autor redigida por Antônio Carlos Secchin e reproduz uma entrevista que este fez nos anos 80 ao autor de Morte e Vida Severina (1955) ou Educação pela Pedra (1966). Secchin resume: “É a melhor edição disponível, em Portugal ou no Brasil, da obra poética de João Cabral de Melo Neto."

Não se sabe quem serão os próximos autores a publicar, mas há alguns autores brasileiros já desaparecidos e de qualidade mais do que reconhecida que ficam excluídos à partida: aqueles que, por vontade própria ou alheia, nunca chegaram a entrar na Academia Brasileira de Letras, como Carlos Drummond de Andrade.

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