Afungi vai trocar as palhotas e as machambas por gigantescas fábricas de gás
Numa área onde se vive sem luz, entre pequenas machambas de mandioca e de feijão, vai nascer um complexo industrial tão grande que toda a riqueza produzida pelo país num ano não chega para o pagar.
Ali, pouco mais tempo lhes resta para alimentarem o hábito. Em breve, todo o espaço a perder de vista desde o campo de futebol improvisado será ocupado por quatro gigantescas fábricas de liquefacção de gás. Toda a população de Quitupo e das outras aldeias situadas na península de Afungi serão deslocadas para fora dos lugares onde sempre cultivaram as suas machambas, onde criaram os seus filhos, enterraram os seus mortos e onde ainda jogaram as suas partidas de futebol. Sem que percebam ainda muito bem o que está a acontecer, tornaram-se protagonistas de uma das maiores transformações que a face da terra vai conhecer nos próximos cinco anos: numa zona das mais pobres de África, onde se vive em palhotas sem água canalizada, nem luz, nem esgotos vai nascer um complexo industrial
Os sinais dessa transformação são hoje bem visíveis na paisagem e nas fisionomias. Um frenético vaivém de camiões nas estradas de terra batida levanta ondas densas de pó. A cada passo homens ou mulheres com máscaras e óculos de protecção orientam o tráfego. Nas estradas remotas de Afungi vêem-se mais sinais de limite de velocidade ou cartazes com apelos ao respeito pelos peões do que em qualquer cidade moçambicana. Na aldeia, grupos de pessoas com fardas da multinacional norte-americana Anadarko circulam em busca de dados para um censo que antecipa o reassentamento dos habitantes.
Com tão grande transformação à vista há muito para dizer, mas ninguém quer falar. Nem sequer o chefe de posto administrativo. As feridas abertas pela contestação das comunidades à mudança radical que o gás lhes impõe estão ainda por sarar. Hoje, porém, todos sabem que não há memórias familiares, nem machambas, nem cultos funerários capazes de resistir à energia do gás. Em breve, ali, numa área equivalente a sete mil campos de futebol, serão construídas quatro gigantescas fábricas de liquefacção de gás natural que custarão mais do que toda a riqueza que Moçambique produz num ano inteiro – o PIB em 2013 rondou os 15 mil milhões de euros. As estimativas apontam para a existência de recursos na bacia do rio Rovuma, cuja foz fica a 50 km de Quitupo, capazes de abastecer a China durante as próximas três décadas.
Primeiro o carvão, depois as pedras preciosas, agora o petróleo e o gás. Moçambique, desde sempre visto como um país sem grandes recursos minerais, tornou-se a nova estrela das ambições das multinacionais da energia. A prospecção dura há décadas, mas só há menos de dez anos se fizeram investimentos a sério para explorar o potencial do subsolo ou o fundo do mar. “Acontece o mesmo com uma macieira, primeiro apanham-se as maçãs mais à mão e só mais tarde é que se colhem as que ficam no cume da árvore”, exemplifica Paulo Mendonça, administrador da Galp Rovuma, a empresa portuguesa que participa num dos consórcios do gás na província do Cabo Delgado. Desta vez, porém, o que era supostamente o fruto mais remoto acabou em descobertas que ficaram muito para lá de todas as expectativas: na província de Tete haverá reservas de 23 mil milhões de toneladas de carvão, o suficiente para garantir a procura dos cinco maiores importadores durante cerca de 30 anos; e ao largo da foz do rio Rovuma, que faz a fronteira entre Moçambique e a Tanzânia, as reservas de gás natural descobertas pelos consórcios da Anadarko e da italiana ENI, no qual a Galp tem uma participação de 10%, ascendem 56 triliões de metros cúbicos, uma quantidade que daria para satisfazer a procura portuguesa durante o próximo milénio.
O admirável mundo do gás
A descoberta de tantas riquezas num dos países mais pobres do mundo teve o impacto de um furacão na economia. Entre 2007 e 2013 o investimento estrangeiro em Moçambique aumentou 17 vezes. No ano passado, apenas, cresceu 36% e já representa 46% de toda a riqueza produzida pelo país (PIB) durante um ano. Os principais eixos desta transformação que levará equipamentos e técnicas do século XXI a áreas rurais que vivem praticamente ao ritmo de há um século são o corredor de Nacala, uma linha ferroviária de 912 quilómetros que ligará Tete a Nacala, onde existe um porto natural de águas profundas e, principalmente, a zona do litoral entre Mocímboa da Praia e Quionga, já na margem do Rovuma. É aqui que as gigantescas reservas de gás extraído a distâncias entre 40 e 55 quilómetros da costa, a profundidades entre os 1000 e os 2500 metros vão ser processadas.
De súbito, o que era uma província esquecida tornou-se na estrela do país. Palma, a capital do distrito do gás, deixou de ser o lugarejo que, no tempo do administrador distrital Fernando Natal, era frequentemente atacada por leões para se tornar numa cidade inundada por jipes topo de gama tripulados por estrangeiros de todas as proveniências. A estrada que vai de Pemba - a Porto Amélia dos tempos coloniais que permanece como a capital de Cabo Delgado - até Palma deixou de exigir viagens por etapas, que poderiam demorar dias. Agora, para se vencer os seus cerca de 350 quilómetros bastam umas horas. Entre Palma e Mocímboa da Praia, onde os aviões da Anadarko aterram a cada passo no aeródromo outrora uma base aérea do exército colonial português, a estrada feita pelo consórcio luso-brasileiro Andrade Gutierrez e a Zagope é novíssima. Em Mocímboa e em Palma o preço dos terrenos atingiu números estratosféricos. “Um terreno de 20 por 20 metros pode custar 125 mil euros”, diz José, um negociante de materiais para a construção civil que viu a sua empresa disparar com a procura da Anadarko. Para se ter ideia do que está em causa, note-se que a maioria da população do Norte de Moçambique (cerca de 56% do total) vive numa economia de subsistência, com menos de dois euros por dia.
Atraídos pela riqueza que se anuncia lá para 2018 ou 2019, uma vaga de estrangeiros dirige-se em números crescentes para Pemba, para Mocímboa ou para Palma. Uma estimativa oficial admite que a capital da província possa registar um aumento de população de 30% até 2020. “Estamos a assistir a uma avalanche de estrangeiros. E não só. Também há muitos moçambicanos a virem para cá. O problema é que nós não temos infra-estruturas para receber tanta gente”, nota D. Luís Fernando, um carioca que é bispo de Pemba. Hoje, a cidade regista frequentes quebras de fornecimento de electricidade e o sistema de abastecimento de água atingiu o seu limite. Ainda assim, Pemba só agora começa a dar os primeiros passos para se assumir como a capital logística do gás. O novo porto foi adjudicado em Agosto. Vai custar 112 milhões de euros. Por arrasto, italianos, portugueses ou sul-africanos disputam arduamente terrenos, apartamentos, frentes de mar para investir em lojas, hotéis ou residências para uma classe de consumidores que não existia até agora.
Um universo paralelo
Mocímboa e, principalmente, Palma são hoje os pólos onde o frenesim do gás mais se faz sentir. Os trabalhadores da Anadarko ou da ENI concentram-se em autênticos fortes, protegidos por arame farpado. Às seis da tarde há recolher obrigatório. Os contactos com a população são desincentivados, quando não informalmente proibidos. Sobre o que estão a fazer, paira um véu de silêncio. Gerson Correia, um moçambicano que trabalha na Anadarko em Palma remete explicações para Maputo, mas para se entrar em detalhes as autorizações têm de vir de Houston, no Texas, onde a companhia tem a sua sede. Os alimentos que comem ou as máquinas que usam são importadas. Em Palma é difícil encontrar bens de primeira necessidade como álcool etílico. Multinacionais especializadas em operações logísticas, como a Bolloré, conseguem fornecer com o retalho do primeiro mundo esta ilha isolada num recanto remoto da África negra.
Para os moçambicanos, a vida é mais difícil. A complexidade técnica das operações de extracção ou de transformação de gás remete a maioria esmagadora dos habitantes de Cabo Delgado para a margem do processo. Lucas Saimoni Chimuachi, 32 anos, desempregado e pai de sete filhos vive na Aldeia da Paz, a pouco mais de 150 quilómetros de Palma, ouviu falar de empregos lá para a zona do gás, mas os seus parcos recursos nem sequer chegam para que os possa disputar. “Não tenho dinheiro para a viagem nem para dormir lá”, diz. Sem qualificação nem hábitos de trabalho assalariado, os habitantes da província são não só ultrapassados pelos ocidentais e pelos moçambicanos do sul, mas também pelos tanzanianos, que se encontram com frequência nos cafés, nas lojas ou nos escassos hotéis da região. Alguns moradores conseguiram empregos, mas os menos qualificados e mais mal pagos entre todos. Como os das mulheres e homens que, com ar de enfado, levantam uma placa verde sempre que um camião cruza uma estrada poeirenta na península de Afungi.
Muitos proprietários de terrenos, entre os quais os que moram em Quitupo e nas aldeias que serão soterradas pelas fábricas de gás, vão receber elevados montantes. Mas para comunidades para as quais a economia monetária é uma realidade distante, o dinheiro que está a entrar em Cabo Delgado pode ser um problema. “Há pessoas que nunca viram dinheiro grande. Por vezes elas vendem as suas casas e como não o sabem gerir, compram carros ou motas e depressa ficam sem nada”, sublinha D. Luis Fernando. Os riscos de abuso no consumo de álcool são outra das preocupações que levam as autoridades e actores sociais a recomendarem um acompanhamento cuidado de comunidades sujeitas a uma brutal transformação nos seus hábitos de vida.
O segredo como negócio
O gás tornou-se uma entidade reverencial e para as autoridades locais a sua exploração é a última fronteira entre a persistência da pobreza e um futuro que se imagina com as torres de vidro e aço do Dubai ou de outros paraísos dos hidrocarbonetos. Para as elites políticas locais, esse caminho dispensa perguntas. Quanto menos ruído, melhor. É por isso que o chefe do distrito de Palma, Pedro Jemusse, recusa entrevistas e ordena ao seu chefe de Posto de Quionga que não fale aos jornalistas. A mesma cadeia de silêncio que se fez ouvir em Quitupo repete-se por todo o lado.
Esta hostilidade pode em parte explicar-se pelas dificuldades que permanecem em negociar a recolocação dos cerca de 3000 habitantes da península de Afungi, onde fica Quitupo. Hoje, parece evidente que a maioria está disposta a negociar uma indemnização e deixar as suas machambas de mandioca ou os seus frágeis barcos de pesca para a memória. Depois de episódios de violência e de sistemáticas denúncias de intimidação, a participação do Governo central nas negociações foi capaz de abrandar a obstinação dos cidadãos. Como a ministra Esperança Bias (ver entrevista), o governador de Cabo Delgado, Abdul Razak, um médico com uma longa carreira política, diz ser “fundamental haver diálogo e explicação às pessoas do que está a acontecer. Estes investimentos vão-lhes trazer benefícios”, diz. “Reassentar pessoas é sempre um processo difícil”, reconhece Fernando Mendonça, da Galp. “As pessoas vivem lá, têm lá os seus cemitérios, as suas casas, os seus pequenos portos de pesca”. São “dores de crescimento”, acrescenta.
Os apelos à transparência e ao envolvimento das populações, certamente influenciados pela pressão nacional e internacional sobre o novo ‘el dorado’ da energia, parecem fazer pouco sentido para Pedro Jemusse – a reportagem do PÚBLICO só pôde decorrer com normalidade depois de chegarem ordens de Maputo e de Pemba. No mês passado, numa reunião com moradores na zona onde se vão construir as fábricas de gás liquefeito, os representantes do Centro Terra Viva, uma ONG com sede no Maputo que representa as comunidades locais, foi alvo de ameaças e insultos por parte do administrador de Palma. “As comunidades das aldeias abrangidas pelo projecto da fábrica de gás natural liquefeito foram, em todas as consultas, praticamente impedidas de se expressarem de forma livre e aberta, e as Organizações da Sociedade Civil foram verbalmente ameaçadas e agredidas”, queixa-se o Centro. “Há muita gente que não foi ouvida. Ou se foi as suas preocupações não foram levadas em conta”, confirma D. Luis Fernando.
Saber que impactos vai ter este projecto na vida concreta das pessoas é, de resto, a maior incógnita do momento. A Fundação Friederich Ebert, ligada ao Partido Social Democrata da Alemanha, avisa que os desafios de futuro em Moçambique quanto à transparência no uso dos recursos e na sua redistribuição são enormes. À sua frente, o país tem o caminho do Botswana, que canalizou grande parte dos ganhos com a exploração de recursos naturais para a segurança social e para a educação, ou do de Angola e da Nigéria, “que servem como exemplos negativos no contexto africano”. O Governo garante ter a preocupação de privilegiar “infra-estruturas de transporte e o desenvolvimento da agricultura e da indústria agro-alimentar”. E avança com uma estratégia para a formação no sector dos recursos minerais que prevê qualificar nos próximos anos 4120 moçambicanos em geociências, engenharia de processamento de petróleo ou sísmica.
Entre tantas expectativas, sabe-se ao certo que para as comunidades esquecidas dos distritos de Palma e Mocímboa, o remanso quotidiano dos últimos séculos está condenado. Para uma comunidade pobre, que exaspera pela falta de água a cada estação seca, que se alimenta de mandioca, peixe, milho e feijão cafreal, que não dispõe de cuidados de saúde nem escolas é difícil acreditar que a vida vai piorar. O que não se sabe é se poderão beneficiar das novas riquezas como muitos esperam. África não é propriamente um lugar onde abundem bons exemplos sobre a redistribuição. Moçambique tem em Palma uma boa oportunidade para mostrar que quer ser uma África diferente.