Futuro do Reino Unido na mão de quatro milhões de escoceses
Escócia decide nesta quinta-feira se quer voltar a ser independente. Sondagens apontam vantagem mínima para o "não". Seja qual for o desfecho, há mudanças políticas que se anunciam inevitáveis.
Esta foi uma campanha feita de incertezas. Os eleitores são chamados a decidir com base em cenários vagos sobre o impacto da independência, uma vez que os dois lados se empenharam em inundar a opinião pública com análises contraditórias, sabendo ambos que o resultado final será decidido nas negociações que, no caso de uma vitória do “sim”, vão começar de imediato e demorarão um ano e meio a estar concluídas. E, depois de uma campanha que só no último mês ganhou verdadeiro fôlego, dezenas de sondagens concluíram que a corrida está demasiado cerrada para que seja possível prever quem vencerá.
O último dia de campanha, disputado até ao centímetro nas ruas, na imprensa e nas redes sociais, foi o clímax de uma campanha que termina em ritmo frenético. Apoiantes da independência encheram o centro de Glasgow, a maior cidade da Escócia e um dos terrenos decisivos para o desfecho da consulta. Num cenário pintado de azul (as cores da Saltire, a bandeira escocesa), activistas, celebridades e políticos ergueram cartazes com a última das palavras de ordem de uma campanha que soube mobilizar os eleitores: Let’s do this (Vamos a isto).
O mote foi lançado por Alex Salmond, primeiro-ministro do governo autónomo escocês e líder dos nacionalistas, numa carta aberta publicada pela manhã. “Este é o momento de maior poder que alguma vez teremos. O futuro da Escócia, o nosso país, está nas nossas mãos”. Salmond afirma que não se sentirá menos mandatado para negociar a cisão com Londres se o “sim” vencer nem que seja por um voto, mas assegura também que não vai insistir na independência se for derrotado pela mesma margem mínima. “Não deixem escapar esta oportunidade entre os dedos. Não os deixem dizer que não podemos”, escreveu o líder nacionalista.
Desfecho na mão de indecisos
As sondagens divulgadas nas últimas 24 horas da campanha colocam todas o “não” à frente nas intenções de voto, mas com uma vantagem que permite aos nacionalistas manter as esperanças intactas – a maioria aponta para uma distância de quatro pontos percentuais entre os dois campos (52%–48%), mas a última calcula que a diferença seja de apenas dois pontos. Números que deixam nervosos não só os políticos como os responsáveis pelas sondagens, tanto mais que, a horas da abertura das urnas, há um número elevado de eleitores que se dizem indecisos.
Foi sobretudo para eles que falou Gordon Brown, o ex-primeiro-ministro britânico que nos últimos dias se assumiu como verdadeiro líder da campanha contra a independência. Num discurso que foi comparado pelos jornalistas aos melhores que proferiu desde os tempos em que, com Tony Blair, erguia as bases do New Labour, Brown atacou o pressuposto nacionalista de que uma Escócia independente será mais próspera e mais justa. O projecto de Salmond arrastará os escoceses para “um alçapão económico do qual poderão nunca mais sair”, avisou, ao apontar várias “ameaças reais” e imediatas à economia da região. “Se têm dúvidas, se estão a pensar no futuro da Escócia, se ainda não decidiram, a vossa resposta tem de ser não”, disse Brown, recusando a ideia de que só um voto no “sim” é um voto patriótico.
Quem se opõe à independência “também tem orgulho na sua identidade escocesa, nas suas instituições, no seu Parlamento” e concorda que a permanência no Reino Unido “é a maneira mais rápida, segura e melhor” de aumentar os poderes que lhe estão atribuídos.
Na recta final da campanha, o Governo britânico voltou a devolver o protagonismo aos escoceses, depois de o primeiro-ministro, David Cameron, ter atravessado por duas vezes a fronteira (para já virtual) para fazer emocionados apelos a favor da união.
Mas, tal como negociou à pressa com os trabalhistas e liberais-democratas um plano para reforçar os poderes do governo autónomo escocês que até agora recusara revelar antes do referendo, Downing Street elaborou planos detalhados sobre a forma como reagirá a uma eventual vitória do “sim”. Segundo informações recolhidas pelo jornal Guardian, o primeiro gesto previsto é um telefonema para Salmond, sexta-feira de manhã, a garantir que Londres não pretende adoptar uma atitude hostil nas negociações, mas em que reafirmará que não pretende partilhar a libra com Edimburgo. São esperadas também intervenções do ministro das Finanças, George Osborne, e do governador do Banco de Inglaterra, Mark Carney, para acalmar os mercados, e Cameron poderá convocar de emergência o Parlamento – uma sessão para delinear os planos para as negociações com o governo escocês, mas em que arrisca ser confrontado com a pressão para se demitir.
A partir daí, o cenário será de incerteza quase total – uma perspectiva que pode não assustar a maioria dos 4,2 milhões de eleitores inscritos para votar, mas que deixa em pânico Londres e o sector financeiro e, por arrasto, angustia a União Europeia, os Estados Unidos, a NATO. No prazo de um ano e meio, a teia apertada de ligações tecida desde 1707 entre Londres e Edimburgo terá de ser desfeita, separando economias e exércitos, decidindo o futuro da libra, das armas nucleares e do petróleo, a segurança das fronteiras e a nacionalidade de quem nasceu de um lado e vive agora do outro. Uma negociação que transformará o Reino Unido de forma sísmica, quase um século depois de a Irlanda se ter tornado independente.
Face a este cenário, haverá um suspiro colectivo de alívio se, como as sondagens indicam, o “não” vencer o referendo. Mas, no que diz respeito a Londres, a pausa pode ser curta. Os novos poderes prometidos à Escócia estão a gerar cobiça não só na Irlanda do Norte e no País de Gales, como na própria Inglaterra, a única das quatro nações que não tem governo ou parlamento próprios. E cidades como Manchester ou condados como o de Yorkshire (o maior de Inglaterra, com uma população idêntica à da Escócia) exigem poderes que lhes permitam escapar a um dos Estados mais centralizados da Europa, recordou a Reuters. A federalização do Reino Unido, admitem vários analistas, é um cenário cada vez mais provável a médio prazo.
A participação no referendo de hoje promete ser histórica – acima dos 80%, talvez mesmo dos 90 – mas, como lembrou Nick Robinson, editor de política da BBC, bastarão pouco mais de dois milhões de votos para decidir o resultado. “São 4% dos eleitores britânicos. O que quer que aconteça vai mudar não só a vida de todos os que aqui vivem, como dos 96% que estão a olhar para cá”.