Um corpo preto para combater o medo do outro
O brasileiro Marcelo Evelin regressa a Portugal com De repente fica tudo preto de gente, coreografia para cinco bailarinos e muitos espectadores que fará escala no Festival Materiais Diversos, em Lisboa e no Porto.
As primeiras imagens de De repente fica tudo preto de gente surgiram em 2012 em Quioto, onde Marcelo foi apresentar Matadouro (que vimos um ano antes em Lisboa, também no Teatro Maria Matos). “Olhava para aquelas massas de 500 pessoas, uma afluência incrível. Ninguém se tocava, ninguém tropeçava em ninguém." Para o coreógrafo estava encontrada uma metáfora para compreender o sentido de reserva e de pudor que conforma, ainda hoje, a secular sociedade japonesa. “Há sempre uma distância entre um corpo e outro, mesmo que as distâncias sejam curtas”, diz. Assim, o trabalho começou por tentar perceber como podia um corpo estar junto a outro e não se relacionar com ele.
Da leitura do livro do Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti Massa e Poder (1960) apareceram outras imagens que lhe permitiram criar reflexões (e movimentos) sobre as questões do poder, do corpo, da massa, do mal, da hierarquia, do abandono da identidade.
“Como é que as pessoas ficam juntas? Como é que se pode conseguir uma densidade, uma massa que crie o menor espaço possível entre as pessoas?” Estas são perguntas que atravessaram os vários meses de trabalho de Marcelo Evelin. Até já não ser preciso esperar pelas respostas. “O movimento de massas pode dar-se de diferentes formas, mas a única possibilidade de lá chegarmos é [disponibilizar] o corpo para estar com o outro, completamente ligado, no menor espaço possível. É preciso desfazer esse medo que faz com que se criem relações individualistas com o nosso próprio corpo. Este meu corpo também é o teu corpo.”
Cercados pelos espectadores, sem se saber se são presas ou caçadores, se são meros observadores de outros observadores, os bailarinos de De repente fica tudo preto de gente, nus e pintados de preto, vão reduzindo a pó as hierarquias de espaço, de tempo e de presença que costumam construir as coreografias em cima de um palco. “Queria tirar as pessoas dos seus lugares”, diz ao Ípsilon Marcelo, para quem o movimento desta peça é, em si mesmo, uma “coisa indefinida”, que experimenta o encontro através do toque.
Semanas antes da estreia em Quioto, a preocupação tomou conta do coreógrafo. Uma das bailarinas que havia sido escolhida na audição japonesa resumiu aquilo que o espectáculo era: “Gente nua, gente suja e gente que se toca, tudo coisas de que os japoneses têm medo." A reacção foi o oposto daquilo que Marcelo Evelin poderia temer. Houve beijos na boca dos intérpretes, houve abraços, houve aquilo que o coreógrafo chama de “verdadeiro encontro” que é, afinal, a entrega do corpo ao outro.
Se Elias Canetti descrevia a massa como “fenómeno enigmático e universal”, os corpos que constituem a massa de De repente fica tudo preto de gente são o acumular das tentativas de resposta ao vazio que, por vezes, a presença do outro pode criar. Marcelo chama-lhe “pretume”, como se a cor no corpo criasse um enorme buraco negro no qual se entra. No programa escreve-se que “o espectáculo investiga a massa como o pressuposto do comum numa multidão de singularidades. Uma massa que quer crescer e investe na descarga como modo temporário de indistinção, num corpo-a-corpo sem violência e sem trégua”. O que isto significa é que os corpos constroem, a partir de um desejo de abandono, uma nova ordem social que já não é nem hierárquica nem finita, como se a coreografia se recusasse a impor-se.
"O preto permite a invisibilidade e é essa invisibilidade que determina o tempo e o modo da coreografia”, explica Marcelo Evelin. Pintados, os intérpretes são despojados da sua identidade e forçam a recusa de um discurso sobre o multiculturalismo. Mas não são só as diferenças entre os bailarinos que são apagadas, uma vez que os espectadores são também eles convidados a abandonar a sua posição de observadores. Em cima do palco, bailarinos e espectadores definem em conjunto o tempo da coreografia, quando não mesmo a própria coreografia – Marcelo Evelin propõe assim, como já havíamos visto em Ai, Ai, Ai, de 1995 (apresentado pela Fundação de Serralves no início deste ano), e Matadouro, uma relação de cumplicidade entre o corpo do bailarino e o corpo do espectador. Mas agora, e porque é um espectáculo onde praticamente não se vê nada, o perigo – que é também aquilo que De repente fica tudo preto de gente tem de mais fascinante – está no modo como nos deixamos levar para um estado de transe colectivo.
O corpo de quem faz, o corpo de quem vê
São apenas cinco os corpos nus que provocam – ou promovem – alterações nos cem corpos que podem estar em palco. Ao longo dos ensaios, Marcelo Evelin e os seus bailarinos foram descrevendo esses cinco corpos como “os primeiros primitivos expulsos do ventre da terra” que, numa dança tribal, fazem com que os espectadores mergulhem no desconhecido e enfrentem o medo que terão do outro. São movimentos de impulso, gritados, rasgados, confundindo os corpos, definindo o espaço, perguntando se é diferente, percebendo que é igual.
“As vezes parece irresponsável pensar nas possibilidade de intimidade e de movimento dos corpos sem prever a reacção do público”, começa por reflectir Marcelo. “Esta massa heterogénea, que não se conhece, que está a negociar a sua presença apesar de estar no mesmo espaço, demora o seu tempo a encontrar o seu espaço." Aquilo que comove o coreógrafo a cada apresentação é “a paisagem que se vai criando com o público”, que vai percebendo a autonomia que pode ter relativamente ao movimento criado pelos bailarinos.
Num processo semelhante à terceira parte de Piracema, de Lia Rodrigues (que passou pelo Alkantara Festival e pelo Serralves em Festa em Junho), De repente fica tudo preto de gente experimenta outros modos de pensar o corpo em colectivo num mundo saturado de imagens, ao colocar espectadores e bailarinos frente a frente. Marcelo queria fazer um “cut-off”, uma ruptura que sujeitasse o corpo de quem faz ao corpo de quem vê, como se procurasse perceber se existem, efectivamente, diferenças entre um corpo e outro.
O resultado é uma obra que revela a sua singularidade a partir do modo como vai convocando modos de percepção que são mais intuitivos e primários do que nos damos conta. Durante os ensaios, por exemplo, os vários bailarinos não falavam a mesma língua e, recorda Marcelo Evelin, “o dia era passado nessa ideia de massa e de corpo como um só”. Agora que se mostram a uma massa de indivíduos, o desejo é começar outra vez.
Ao longo dos dois anos que a peça já tem de circulação, as reações têm sido as mais diversas. Da delicadeza dos ingleses à estranheza dos polacos, o que Marcelo tem aprendido é a deixar de pensar esse encontro como um fim em si mesmo. “Não é sobre ver, é sobre estar ali."