Linhas brancas

Michael Cunningham escreve a fábula perfeita de uma época decadente, assombrado pelo fantasma de Hans Christian Andersen

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Michael Cunningham trabalha as histórias de modo a levar o leitor a amar as suas personagens Daniel Rocha

Central Park, o grande espaço verde na parte alta de Manhattan, cenário de acontecimentos que têm dado origem a alguns dos mais bizarros mitos urbanos, é o lugar onde, no início deste pungente romance de Michael Cunningham, vagueia um dos seus protagonistas, Barrett Meeks. Prosaicamente a caminho do dentista, tenta superar a sua decepção por ter sido mais uma vez abandonado por um amante, através de uma lacónica e trivial mensagem no telemóvel. É então que uma “luz celestial” vinda do céu — como uma nave espacial — se derrama sobre ele, deixando-o aturdido e incapaz de “interpretar” um fenómeno tão maravilhoso e ininteligível. Mais tarde, Barrett voltará para casa onde vive com o irmão, Tyler, e com a noiva deste, Beth, que definha com um cancro mortal.

A primeira parte de A Rainha da Neve — título decalcado do conto homónimo de Hans Christian Andersen — decorre num espaço enredado pelo feitiço e possui a ambiguidade perversa dos contos infantis, com os devidos paralelismos claramente delineados: Beth, diáfana e adorável, disponível para ser amada e para receber a dádiva da morte, é majestática na sua imobilidade e fragilidade, jazendo no esquife que é o leito, “envenenada” pelo cancro, rodeada pelos seus guardiões, esses dois irmãos que a amam e cujas vidas se condensam e ganham sentido apenas por, e para, ela. A neve distorce a paisagem, refracta a luz, esbate contornos e enclausura-os no pequeno apartamento, criando uma atmosfera de encantamento, a que não é alheio o consumo dessas linhas brancas e puras — “corredores de gelo” — que Tyler não resiste a inalar, apesar da promessa, repetidamente quebrada, de não voltar a consumir. O pó tão fino — com a sua “clareza gelada e ardente” —, bem como os flocos que se depositam aos seus pés quando abre a janela, formam a caixa de ressonância para a música que ele está a compor para Beth, a peça perfeita que tocará no dia em que celebrarão o seu casamento. Mas Beth, que passa por estranhas metamorfoses — ora se assemelha a um pássaro, como a um rato, etc. — desperta subitamente do “grande sono” (quantos ecos do poema de Sylvia Plath, Lady Lazarus), quebrando o sortilégio e criando uma situação tão inesperada quanto bizarra. (Terá sido a visão de Barrett que operou o milagre? Como podem as pessoas comuns lidar com o inexplicável?)

Michael Cunningham, um virtuoso da escrita, trata as fragilidades físicas e mentais, as doenças terminais e as perplexidades existenciais utilizando os seus próprios “truques de magia” e amparado por fantasmas de eleição: Virginia Woolf, que assombra o romance As Horas (primeiro título de Mrs Dalloway), Walt Whitman, que contamina o trio de novelas interligadas em Specimen Days com a referência “à felicidade da morte” e à selvajaria de Eros e, aqui, o genial contista dinamarquês, a quem vai buscar a aura de “mistério nórdico” numa versão contemporânea nova-iorquina (Central Park é uma espécie de floresta encantada, recheada de perigos). Neste romance, não faltam as habituais obsessões do autor: todas as possíveis combinações nas relações gay e heterossexuais, a introdução de elementos fantásticos, as ambíguas e fortes relações entre irmãos, a convivência com a doença e com a morte (tal como em Flesh and Blood, há uma cena em que as cinzas de um ser amado são lançadas ao rio Hudson), a atracção pelo suicídio, pelas drogas e pelos seus efeitos.

Cunningham é um dos discípulos eleitos da tradição romanesca norte-americana, o que transparece neste romance, atravessado por uma pungente nostalgia “fitzgeraldiana” — o “olho de Deus” avistado por Barrett é uma referência directa ao anúncio dos óculos do doutor T.J. Eckleburg, plantado bem alto no vale de cinzas em O Grande Gatsby —, e é visível na facilidade com que conta uma história, enquanto trabalha elegantemente a linguagem e leva o leitor a amar as personagens, com os seus ardentes desejos, a sua fragilidade muito humana e uma espécie de profunda desorientação vivencial: Barrett, o inseguro menino de oiro da faculdade que se deixa arrastar para a existência banal que potencia o seu fracasso amoroso; Tyler, o artista arrebatado que compõe música acicatado pelas drogas e pela aproximação da morte; Beth, cuja magnificência só irradia enquanto o cancro a corrói (ao recuperar miraculosamente, a existência “comum” torna-se um fardo); e Liz, o contraponto de Beth, cujo bom senso não lhe garante nem o amor nem a felicidade, antes a mantém num estado perpetuamente secundário, crepuscular, com o seu jovem amante desinteressante e o seu erotismo descarnado.

A Rainha da Neve

 é a fábula perfeita de uma época decadente e morosa, insegura e paralisada, em que os aspirantes a “heróis” claudicam sem remissão. Contrariando a opinião de críticos que apontam, nas personagens de Cunningham, uma incessante procura da transcendência num mundo materialista e desencantado, é possível argumentar que aqueles que habitam este seu mundo demonstram, isso sim, uma incapacidade que os remete continuamente para a trivialidade. O efeito da visão miraculosa no início do livro perde-se no resto da narrativa, que acaba por assumir um tom cada vez mais prosaico. Tyler, Barrett, Beth e Liz falham continuamente, seja por falta de visão (o pedaço de gelo que se crava no olho de Tyler e que replica o incidente do vidro do espelho da “princesa da neve” de Andersen é uma excelente imagem), seja por cobardia, ou por uma espécie de entorpecimento. Tyler será o eterno artista inquieto, dividido entre o passado e o futuro, e Barrett desconfiará sempre do amor, embora admita a hipótese de uma mudança com Sam. O único milagre para os dois irmãos, que demonstram verdadeira repulsa pela administração vigente de Bush — a acção passa-se entre 2004 e 2008 —, será (e nunca saberemos como receberão a notícia) a eleição de Barack Obama e a derrota de John McCain, que eles temem ver eleito, ao lado de Sarah Palin.

A perseverança e a mudança, tão apreciadas pelos vencedores da vida, não colhem aqui quaisquer frutos, pesem embora os prodígios que teimam em revelar-se aos relutantes protagonistas desta saga em que, ao contrário do que acontece nos contos maravilhosos, os finais felizes são impossíveis.

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