O círculo (psicadélico) completa-se
Nos anos 1970, os ingleses Hawkwind inventaram o space-rock, sintonizados com o seu tempo mas iguais a nenhuns outros. Os americanos Black Angels procuraram na versão mais negra do psicadelismo uma reacção ao seu tempo (que é hoje). Estreiam-se ambos em Portugal no Reverence.
O guitarrista Christian Bland, tal como o vocalista Alex Maas, cresceu a ouvir Doors e Velvet Underground nos anos 1990 e, sendo de Austin, oásis liberal no Texas conservador de mão no coldre, tinha Roky Erickson e os seus 13th Floor Elevators num altar. “Aquilo em que caímos naturalmente é a versão mais negra do som psicadélico. Sentimo-nos atraídos por isso. Todas as canções dos Black Angels vêm desse espaço mental”, diz-nos a caminho de um ensaio.
“Doença, insanidade e morte são os anjos negros que guardaram o meu berço e me acompanharam toda a vida”. A frase é do pintor norueguês Edvard Munch e os Black Angels incluíram-na na arte gráfica do seu primeiro álbum, Passover. Três álbuns depois, “talvez essa imagem não surja tão presente, mas está definitivamente lá”, afirma Christian Bland. “Adoro os Love e o álbum Forever Changes. Soa alegre, mas se ouvirmos as letras não o é de todo. O mesmo acontece com as nossas canções”.
Os históricos Hawkwind, banda inglesa de percurso mítico na história do rock, são um dos grandes destaques do Reverence Festival Valada, onde actuam às 22h de sábado, dia 13 – será a estreia em palcos portugueses. Os Black Angels são um dos precursores da nova vaga psicadélica que, borbulhando no underground, se tornou hoje uma realidade à vista de todos. Actuam às 00h50 de sábado, 13, e são um dos nomes mais aguardados do festival (é também a sua estreia em Portugal). Hawkwind e Black Angels têm isso a uni-los. Quanto a resto, representam duas manifestações de um mesmo desejo. Os primeiros são o início, contracultura em movimento, transformando o mundo à sua passagem. Os segundos são classicistas tardios e convictos, determinados a manter a chama viva.
Escapar a este mundo
Os Hawkwind estavam totalmente sintonizados com o seu tempo. Dave Brock descreve-o: “O final dos anos 1960 e as maravilhosas capas de álbuns, todas aquelas cores que as pessoas vestiam e um movimento artístico muito interessante no underground." Ao mesmo tempo, os Hawkwind eram e mantiveram-se um caso à parte – uma máquina sensorial que reunia paisagens de ficção científica ao puro prazer sónico. Ouvimos álbuns como Doremi Fasol Latido (1972) ou esse ao vivo Space Ritual (1973) e pasmamos: eis a ponte entre o rock’n’roll pintalgado de LSD, um conto de Isaac Asimov e o experimentalismo tingido a negro do kraut-rock (saxofone do lado do bem, sintetizadores, geradores de áudio, flautas, secção rítmica feroz e guitarras cobertas de pó cósmico). “Trabalhei num estúdio de animação durante quatro anos e estava muito interessado em música concreta. Costumava fazer loops de fita para criar aqueles sons bizarros para anúncios publicitários. Depois pegava na guitarra e fazia o mesmo, em busca de novos sons”, recorda o guitarrista.
Os Hawkwind nasceram quando Brock ainda andava de guitarra pelas estações de metro de Londres. “Mas havia um plano!”, exclamará enquanto nos explica o que são os Hawkwind e o space-rock que definiram. “Um velho amigo, Dik Mik [da formação original da banda], fazia uns sons que nunca se usavam na altura com um gerador áudio. Depois tínhamos os sintetizadores e, por cima disso, os acordes pesados sintonizados com esses sons. Pegamos nisso, em música avant-garde, em música concreta, misturamos tudo e aí está, eis o space-rock.” Já o escritor inglês de ficção científica Michael Moorcock definia-os noutros termos: “Um bando de bárbaros com instrumentos electrónicos."
Mas eram bárbaros certos do queriam ser. Cada concerto era (e é) uma extravagância em que, além dos músicos, participavam mimos e dançarinas e projeccionistas de paisagens psicadélicas. “Queríamos que as pessoas entrassem num outro mundo. Escapismo, mas reflexo de tudo o que se passava à nossa volta. E a verdade é que tocamos hoje as velhas canções e nada mudou. Pensamos na crise dos misséis em Cuba, quando todos achavam que estava a chegar a terceira guerra mundial, lembramo-nos como, durante a Guerra dos Balcãs, nos anos 1990, voltámos a ver campos de concentração no centro da Europa, olhamos para o que acontece hoje no Médio Oriente, na Rússia e na Ucrânia e percebemos que isto não tem fim." Pausa. “E é por isso que me sinto feliz por fazer as pessoas escaparem a este mundo através da música."
Quando os Hawkwind percorriam Inglaterra e os Estados Unidos nos anos 1960 e 1970, nenhum dos membros dos Black Angels tinha ainda nascido. Cresceram, porém, sintonizados com aquela atitude criativa. Para eles, há uma razão para o protagonismo actual do rock dito psicadélico. “Essa música nasceu como reacção a um período de muitos tumultos. Está baseada na ideia de abrir a mente e deixar que tudo a atravesse." Esta última frase é quase homenagem, típica de uma banda totalmente imersa na mitologia rock’n’roll: “You gotta open up your mind and let everything come through” é o verso central de Roller Coaster, canção-manifesto dos 13th Floor Elevators.
Christian Bland, que se apresentará em Valada em dose dupla (actuará igualmente no domingo com os seus Christian Bland & The Revelators), acredita que a turbulência actual, fruto da incerteza política, do desespero geracional, do caos financeiro, foi instigadora deste ressurgimento psicadélico. “Quando começámos [em 2005], eu e o Alex tínhamos como únicas bandas que queríamos ver os Black Rebel Motorcycle Club, The Warlocks, Brian Jonestown Massacre e os Clinic." Hoje, o pequeno festival que começaram a organizar em 2008 na sua cidade texana, o Austin Psych Fest, agrupa dezenas de bandas (e eles querem vê-las todas) e atrai milhares de pessoas de todo o mundo.
Entretanto, o som da banda, violentamente hipnótico e com textura de pesadelo, tornou-se menos denso, mais próximo do formato de canção, como ouvimos em Indigo Meadow, editado em 2013. “Cresci a ouvir rádios de oldies de Houston e sempre adorei as pequenas canções pop dos Kinks, dos Beatles ou dos Troggs. A progressão natural foi passar das longas canções em drone do início [quando a banda partilhava uma casa, qual comuna, e passava horas e horas a ensaiar num dos quartos] para a descoberta de como estruturar essas influências em canção. Mas não sei se isso pode ser visto como progresso”, realça. “No próximo álbum podemos voltar às longas canções de sete minutos. Gostamos dos dois formatos."
Fiéis à ideia original
Os Hawkwind, por sua vez, podem ser muita coisa. Assim o dita um percurso de quatro décadas em que, mantendo-se fiéis à ideia original, a música se foi transformando ao sabor das muitas mudanças de formação e da evolução tecnológica. O que se mantém inalterável é esta imagem da banda enquanto contraponto quase punk, pela atitude, das ambições conceptuais do rock progressivo, e a sua história, verdadeiro maná para biografias rock’n’roll, com zangas, droga a rodos, digressões tumultuosas, processos judiciais.
Recordemos as diversas mudanças de formação com Lemmy Kilminster, baixista entre 1972 e 1975 e futuro fundador dos Motörhead, como exemplo mais célebre: diz o mito que foi expulso por usar drogas diferentes dos restantes membros da banda; contou várias vezes Brock que foram os atrasos constantes nas digressões (devido ao uso desregrado de anfetaminas) que ditaram o seu afastamento. O guitarrista afirma que o vai-e-vem de músicos se explica pela própria natureza da banda. “Sempre a vivemos de forma muito descontraída. Há pessoas que entram e saem da banda porque se aborrecem. Depois sentem falta mas, nessa altura, já arranjámos outra pessoa para o seu lugar. E alguns já passaram pelos Hawkwind várias vezes. Só não podem pensar que são maiores do que a banda. Porque não são.”
Como poderiam sê-lo? Os Hawkwind são hoje uma instituição, a banda que atravessou os tempos sem que a historiografia oficial lhes reservasse o lugar que merecem pelo carácter vanguardista da sua música, pela influência que exercem em tantas bandas contemporâneas, pela obra que construíram.
Dia 13 vamos finalmente vê-los em Portugal. Ocasião histórica. Com os Hawkwind, o passado tornado futuro. Com os Black Angels, o presente que se anuncia para que o passado não morra. Completa-se o círculo (psicadélico).