Estado Islâmico: uma vocação totalitária
Os analistas atribuíram inicialmente o seu sucesso a três factores: uma extraordinária mobilidade com elevado poder de fogo, a brutalidade dos ataques e uma refinada propaganda de actos de barbárie para desmoralizar quem lhe resiste. Chuck Hagel, secretário da Defesa americano, declarou depois do vídeo da decapitação do jornalista James Foley: “É um grupo mais bem organizado do que qualquer outro de que tenhamos conhecimento. Eles não são um simples grupo terrorista. Aliam ideologia e sofisticação militar. Dispõem de fundos financeiros incríveis.”
2. Hoje, os analistas procuram um modelo explicativo geral para lá da descrição ou da denúncia do terror. Constatam que o novo combate não se pode equacionar na clássica figura de “guerra assimétrica” entre Estados e entidades não estatais. A analogia entre o território ocupado pelo EI e as “zonas libertadas” das antigas guerrilhas é ilusória.
Após a invasão americana do Iraque e o fiasco da política de “construção de nações” (nation building) da era Bush, o Médio Oriente tornou-se palco de uma luta pela hegemonia entre sunitas e xiitas — ou, mais rigorosamente, entre sauditas e iranianos. O EI insere-se neste campo, mas excedendo o anterior quadro, declarando “apóstatas” os sunitas que se lhe não submetem. Ameaça também a Arábia Saudita, declarando ilegítimo o regime da Casa de Saud.
Há um factor importante. Escreve o diplomata americano Christopher Hill: “No Médio Oriente, os Estados estão a tornar--se cada vez mais fracos, enquanto as autoridades tradicionais, sejam velhos monarcas ou presidentes seculares, parecem incapazes de tomar conta dos seus agitados povos. Enquanto a autoridade estatal declina, as lealdades tribais ou sectárias [religiosas] fortalecem-se.” O que é hoje um iraquiano, um sírio, um libanês? É alguém que se define primeiro como xiita, sunita, alauita ou cristão. As “primaveras árabes” foram um revelador da falência da generalidade dos Estados e são agora submergidas pela vaga salafista.
Abu Bakr al-Baghdadi, líder do EI, propõe um modelo alternativo de Estado — o “califado”. A ideologia que o sustenta é a utopia do regresso ao tempo do Profeta e a reunificação dos sunitas em torno da sua bandeira negra. Contra o Ocidente e — antes disso — contra os “hereges” xiitas ou os “infiéis” cristãos. É um projecto político de substituição dos Estados nascidos do fim do Império Otomano e da descolonização, muitos deles artificiais e com fronteiras desenhadas pelas potências europeias.
Montou nos territórios conquistados estruturas para-estatais e impôs uma versão extrema da sharia. Os habitantes de Mossul foram despojados da documentação pessoal, recebendo um B.I. do “califado”. A ideia de “Estado islâmico” visa dar um novo mito mobilizador às massas sunitas. Preenche um vazio. Longe vai o tempo dos reformadores árabes do século XIX e dos nacionalistas seculares do século XX.
O rigorismo religioso do EI não o impede de fazer alianças tácticas, na Síria ou no Iraque. Aqui, aliou-se a tribos revoltadas contra o Governo xiita de Bagdad e a antigos generais de Saddam Hussein, que nunca passaram por piedosos. São alianças precárias mas eficazes.
O EI tem uma vantagem sobre os movimentos congéneres: já não depende do financiamento de Estados estrangeiros, como a Arábia Saudita ou o Qatar. “Nacionaliza” os fundos dos bancos nas cidades que conquista. Cobra resgates. Recebe donativos de milionários do Golfo. Organiza colectas de fundos. Toma centrais eléctricas a Damasco e depois vende a electricidade ao Governo sírio. Exporta o petróleo das jazidas que ocupou. Assim, paga bem aos jovens desempregados que recruta e fanatiza. E dá-lhes uma bandeira.
O EI recorre exaustivamente à Internet e às redes sociais. Para lá dos sofisticados vídeos com massacres e decapitações reais, fabrica cenas fictícias de horror, difundidas nos países árabes. “Para recrutar seguidores e aterrorizar os inimigos até à rendição”, escreve o jornalista árabe Ali Hashem. E para provocar “efeitos de imitação”. Comparados com eles, os taliban do Afeganistão eram “homens das cavernas”, observou um militar americano.
3. É largamente conhecida a perseguição de cristãos e yazidis. Em Mossul deram-lhes uma alternativa: a conversão ou a fuga. O EI alardeou o massacre de soldados xiitas em Tikrit — alegadamente 1700. Mostrou execuções em massa.
Se os xiitas são “hereges”, os sunitas que lhe resistem tornam-se “apóstatas” e, por isso, também destinados à morte. Na Síria, massacraram recentemente 700 membros de uma tribo sunita. No Iraque, muitos sunitas estão a refugiar-se em cidades xiitas, informa o diário digital Al-Monitor.
O EI não se limita a matar ou a impor o seu credo. O “califado” está também a destruir o património da antiga Mesopotâmia, berço de civilizações. Dinamitou inclusive a histórica mesquita sunita que se erguia sobre o “túmulo de Jonas” — profeta para judeus, cristãos e muçulmanos. “Reza-se a Deus e não a um homem, ainda que profeta.”
Em suma: trata-se de “erradicar uma civilização” escreve o Daily Star, de Beirute. O Médio Oriente é um mosaico de povos, culturas e religiões. O EI quer fazer tábua rasa desta civilização. “Se deixarmos os fanáticos continuar a atacar a diversidade do mundo árabe, a cultura, o património e a identidade, eles fá-lo-ão impunemente, o que é ainda pior do que assassinar pessoas. Aniquilarão séculos de civilização.”
4. O totalitarismo, anotou Hannah Arendt, não é tanto um regime político como uma “dinâmica autodestrutiva”, que visa eliminar tudo o que lhe resiste, anular a autonomia do indivíduo e dissolver as estruturas sociais. Não me refiro à tese do “fascismo verde”, que foi moda há uma ou duas décadas.
Não se deve confundir o EI com o despotismo saudita ou com a teocracia iraniana. Abu Bakr al-Baghdadi vai muito além do fundamentalismo.Elaborou o projecto político do “califado” e está a conquistar um território cuja fronteira se ignora se acaba no Líbano ou no Norte de África.
Elaborou a utopia ideológica de uma comunidade de crentes emigrando para a era do Profeta. Tem uma vocação expansionista e recruta jovens na própria Europa. Transformou a religião numa ideologia da morte. “Hereges”, “apóstatas” e “infiéis” tornam-se seres sub-humanos passíveis de extermínio.
É esta dinâmica que o aproxima dos totalitarismos. Falar apenas em barbárie é uma ilusão.