Europa: o mundo está a entrar-lhe pela casa dentro sem pedir licença
A Europa joga o seu futuro na forma como agir na Ucrânia e no Médio Oriente. Deixou de poder ignorar o mundo. Mas ainda não sabe como pode lidar com ele. A Alemanha, pelo menos, já mudou.
Desde o início da crise, a chanceler tinha decidido coordenar a resposta ao desafio bélico de Vladimir Putin com o Presidente Obama e foi o que fez, mesmo que alguns passos atrás. Manteve um contacto permanente com o Presidente russo. “Ele vive noutro mundo” disse a Obama pouco antes da anexação da Crimeia. Sempre disse que a Rússia teria de pagar um preço. Finalmente, a 29 de Julho, a decisão de passar ao “nível três” das sanções, aquele que verdadeiramente dói à economia da Rússia, foi o primeiro sinal claro dessa mudança.
A chanceler percebeu que era a segurança europeia que estava posta em causa e que a geoeconomia que inspirou a sua política externa (muitas vezes com a fúria dos seus principais parceiros europeus) e que determinou a relação da Alemanha com a Rússia, deu lugar à geopolítica.
A Alemanha é o terceiro maior parceiro comercial da Rússia (a seguir à China e à Holanda) e um dos maiores investidores. Berlim sempre entendeu que as relações com Moscovo eram para tratar ao nível bilateral e não ao nível europeu. Merkel limitou-se a corrigir os excessos do anterior chanceler social-democrata Gerhard Schroeder, o grande amigo de Putin. Percebeu que não podia relacionar-se com Moscovo ignorando pura e simplesmente a Polónia e deu-lhe um lugar a bordo. O chefe da diplomacia polaca, Radeck Sikorski agradeceu a diferença. Elogiou a chanceler com uma frase estranha na boca de um polaco: “Tenho mais receio da falta de liderança alemã do que da sua liderança”. A Polónia e a maioria dos países de Leste que são hoje membros da União e da NATO sempre avisaram que Putin não era de fiar. Foram muitas vezes ignorados. Os líderes dos restantes países europeus encontraram no “unilateralismo” alemão na sua relação com a Rússia a desculpa ideal para prosseguirem com os seus negócios.
A crise na Ucrânia, que a Europa não conseguiu antecipar, pôs em causa este estado de coisas. O papel da Alemanha seria sempre crucial.
“Não estás a entender, George”
“Tu não estás a entender, George, a Ucrânia nem sequer é um Estado, parte do seu território pertence à Europa de Leste mas a parte maior foi uma oferta que lhe fizemos”. A frase é de Vladimir Putin. Foi dita no dia 24 de Abril de 2008, depois da última cimeira da NATO em que George W. Bush participou, em Bucareste. Estava de partida, queria fazer as pazes com os aliados europeus, aceitou a pressão alemã para deixar cair a promessa de alargamento da Aliança à Geórgia e à Ucrânia. Três meses depois, a Rússia invadia a Geórgia a pretexto das minorias russas que viviam nos enclaves da Abekhazia e da Ossétia do Sul.
Nicolas Sarkozy partiu para Moscovo e para Tbilissi forçando um acordo que tinha duas versões diferentes, conforme a capital onde foi negociado. A Europa enterrou o problema e seguiu em frente. Alguns meses depois da ocupação, Varsóvia propôs a Berlim uma nova parceria de vizinhança virada para Leste, incluindo os países de fronteira entre a Rússia e a Europa. Frank-Walter Steinmeier, então e hoje o chefe da diplomacia alemã dos governos de coligação, rejeitou a proposta. O ministro estava a negociar na mesma altura uma “Parceria para a Modernização” com a Rússia. Sikorski uniu-se à Suécia onde o seu homólogo Carl Bildt percebia o que estava em causa. Hoje, a parceria já uma política europeia. Seguiram-se os acordos de associação que Bruxelas tratou de negociar, incluindo com a Ucrânia. Percebeu que qualquer coisa se passava quando, na véspera da cimeira em que o acordo devia ser assinado (Novembro de 2013), Kiev não compareceu. O que ninguém previu foi que os jovens que queriam ligar o destino do seu país à Europa, fossem para a rua defender a sua causa. Em seis meses, tudo mudou.
Angela Merkel resolveu garantir essa mudança com actos que nunca imaginaríamos como possíveis. Na semana passada foi a Riga dizer aos letões: “Quero insistir em que o Artigo 5.º da NATO – o dever de garantir apoio mútuo – não é uma coisa que apenas exista no papel, tem de ter uma tradução concreta”. Anunciou que jactos alemães vão participar numa missão da NATO de policiamento aéreo das fronteiras e que a Aliança está a acelerar a constituição de uma força de reacção rápida, “se a Rússia tentar desestabilizar a vizinhança dos Bálticos como fez na Ucrânia”. A Letónia e a Estónia, membros da União e da NATO, têm vastas minorias russas. Qualquer sinal de fraqueza em Kiev iria colocá-los na linha de mira de Putin.
No sábado, a chanceler foi a Kiev mostrar de que lado está, mesmo que também para encontrar com o Presidente ucraniano uma solução política que salva a face ao Presidente russo. Escreve Quentin Peel, o correspondente do Financial Times em Berlim: “Putin esperava que a Alemanha resistisse a qualquer medida que afectasse as suas exportações”. Enganou-se. “Cometeu um enorme erro de cálculo sobre a chanceler”. A crise na Ucrânia apenas acelerou uma revisão da política externa que já vinha de trás. Ulrick Speck escreve no site do Carnegie Europe: “Putin está a aprender que não colhe grande simpatia no seu estrangeiro próximo e, ao contrário do que ele pensava, quando confrontada com um desafio vital, a UE pode ser um opositor muito duro”. Os europeus perceberam, depois da anexação da Crimeia, que Putin “tornou claro que rejeita totalmente a ordem pós-Guerra Fria na Europa”, diz Stefan Meister do European Council on Foreign Relations.
A NATO não escondeu os perigos que a situação envolve, reafirmando por palavras e alguns actos que o artigo 5.º é para cumprir. A 17 de Agosto, uma opinião assinada pelo secretário-geral da NATO Anders Fogh Rasmussen e pelo comandante supremo aliado, Philip Breedlove, notava que, “pela primeira vez desde o fim da II Guerra um país europeu anexou parte de outro pela força”. “A nossa missão é garantir que a NATO quer defender todos os aliados contra qualquer ameaça”. Americanos, franceses, ingleses deslocaram para os Bálticos e para a Polónia aviões e soldados. Cada vez mais, mesmo que a contragosto, a Europa começa a perceber que o seu mundo “pós-moderno” e a sua visão normativa das relações internacionais, à imagem e semelhança da sua própria integração, já saiu de moda e que a espera lá fora um mundo cada vez mais vestefaliano, onde imperam as relações de poder. Não ligou grande coisa ao mundo mas o mundo, como se esperava, entrou-lhe pela casa dentro, sem se fazer convidado.
Estamos, porventura, perante um ponto de viragem que é o fim de um longo caminho que os europeus prosseguiram nos últimos 25 anos para tentarem adaptar-se ao mundo pós-Guerra Fria. Com o Tratado de Maastrich, em Dezembro de 1991, ficou garantido o compromisso da Alemanha unificada com a integração europeia (através do euro). Em 1992, durante a primeira presidência portuguesa, a Europa considerou que podia gerir os riscos de desagregação violenta da Jugoslávia, sem ter de recorrer aos EUA. A ilusão durou três anos e duas centenas de milhares de mortos. Sucederam-se os enviados especiais e os capacetes azuis.
Os fantasmas do passado regressaram quando Bona reconheceu a independência da Croácia sem sequer informar os seus parceiros, enquanto Mitterrand se mantinha fiel à Sérvia. Em 1995, apenas restou à Europa ir à Casa Branca com uma corda ao pescoço pedir ajuda a Bill Clinton para forçar uma negociação e garantir uma força militar suficientemente grande para fazer cumprir os seus resultados. No Kosovo a história repetiu-se. Tony Blair apresentou a sua doutrina da intervenção humanitária. A ONU integrou-a sob a forma do novo princípio da “responsabilidade de proteger”. Cansados da humilhação que sofreram nos Balcãs, com a sua incapacidade política e militar, Tony Blair e Jaques Chirac reuniram-se em St. Malo em 1999 para lançar as bases de uma defesa europeia. Depois veio o 11 de Setembro, o Afeganistão e o Iraque, que quebrou a meio a NATO e a União Europeia. Foi preciso a chegada de Nicolas Sarkozy ao Eliseu para que a França abandonasse a ideia de uma defesa europeia fora da NATO, que Londres recusava aceitar. O anterior Presidente integrou a França de novo na estrutura militar da Aliança (De Gaulle retirara-a de lá em 1966) e aproximou-se dos Estados Unidos, abrindo as portas a um novo entendimento com Londres. François Hollande não pôs essa reorientação em causa. Faltava a Alemanha definir o seu lugar.
A decepção do Tratado de Lisboa
Há precisamente cinco anos a União dedicava-se pela primeira vez à escolha dos novos cargos que o Tratado de Lisboa criava para garantir um perfil mais forte da Europa na cena internacional: o presidente do Conselho Europeu e o Alto representante para a política externa e de segurança. Os líderes europeus, a começar pela chanceler, ainda olhavam de cima para a crise financeira como um problema americano. Os sinais de bancarrota eminente na Grécia já eram visíveis mas Merkel acreditava piamente na célebre cláusula do “no bail-out”.
O Tratado de Lisboa dava muito maior importância à política externa e de segurança europeia. Criava uma nova estrutura diplomática (o Serviço Europeu de Acção Externa) chefiada por um Alto representante que presidiria também ao Conselho dos Negócios Estrangeiros e ocuparia uma das vice-presidências da Comissão. Não foi preciso muito tempo para perceber que os grandes países não tencionavam abdicar um milímetro do controlo da política externa e, ainda mais, das decisões militares. A nova chefe da Diplomacia europeia era uma ilustre desconhecida britânica sem qualquer experiência diplomática. Catherine Ashton compreendeu que pouco mais se esperava dela a não ser montar o Serviço Europeu de Acção Externa e produzir declarações suficientemente vazias para não incomodar ninguém. Só na parte final do seu mandato conseguiu apresentar trabalho. A discreta negociação entre o Kosovo e a Sérvia, que levou a bom fim, provou até que ponto a perspectiva de aderir à União ainda é suficientemente forte para enterrar os ódios nacionalistas do passado. Hillary Clinton estabeleceu uma boa relação com ela. Mas ninguém pode dizer que a Europa tenha hoje uma política externa e de segurança mais forte e mais coerente. Tem as estruturas institucionais e militares. Não tem a vontade política.
Nem tudo correu mal desde Maastricht. A Europa conseguiu levar a cabo a sua missão estratégica mais importante a seguir ao euro: unificar o continente europeu através da democracia e dos mercados. Na primeira década do novo século ainda se escreveram longos ensaios sobre a eficácia do seu poder de atracção, que se estendia para além das fronteiras europeias e que se revelava uma arma muito mais poderosa de “regime change” do que as guerras de Bush. As potências emergentes ainda não tinham emergido e o modelo europeu chegou a ser tentado em várias latitudes. A crise do euro gastou-lhe energias e uma boa parte do seu soft-power. Ninguém compreendeu, em Brasília, em Nova Deli ou Pequim, como é que o bloco económico maior e mais rico do mundo não conseguia vencer uma crise que começou por atingir um país que representava 2% da sua riqueza, ao ponto de ir mendigar apoio ao FMI e ao G20. Não ignorou apenas o seu flanco Leste. Ignorou a Turquia, deixando Erdogan à vontade para a sua deriva em direcção ao autoritarismo.
Quem vão escolher os líderes europeus no próximo dia 30 de Agosto para substituir Lady Ashton? Já ninguém acredita em milagres. Mas Putin fez à Europa um grande favor de mostrar ao obrigá-la a encarar o mundo tal como ele é. A Síria e o Iraque mostraram-lhe até que ponto um Médio Oriente mergulhado em violência é, como disse Laurent Fabius, um problema de segurança europeia. As imagens da decapitação de um jornalista americano fizeram-na acordar para uma realidade demencial da qual não pode fugir. A França teve de ir quase sozinha ao Mali para impedir a tomada do poder por um grupo jiahdista radical. Merkel ainda não estava disponível para “pagar as guerras dos outros”. Antes disso, quando o Conselho de Segurança decidiu sobre a operação na Líbia, resolveu abster-se ao lado da China, da Rússia e do Brasil. Desde aí tentou corrigir o tiro.
Até às imagens insuportáveis do jornalista americano degolado por alguém de forte acento britânico, europeus e americanos queriam ver o Iraque como um problema humanitário. Na sexta-feira, François Hollande disse o mesmo que o secretário da Defesa americano Chuck Hagel: “Creio que a situação internacional é a pior que vimos desde o 11 de Setembro”. Diz o editor europeu da BBC, Gavin Hewitt, que o Presidente francês foi ao cerne da questão: “Já não podemos manter o debate tradicional sobre intervenção ou não intervenção.” David Cameron não resistiu à tentação de recorrer ao tom churchiliano a que nenhum primeiro-ministro britânico resiste para proclamar o combate a esta nova era do terror. A imprensa diz que foi apenas o tom. O primeiro-ministro conservador tem sido um desastre em matéria de política externa, levando o seu país para uma marginalidade europeia e transatlântica, incluindo militar, onde nunca esteve. Desta vez, a própria Alemanha não precisou de tempo para se juntar à decisão francesa de envio de armamento para os curdos iraquianos. Paris quer uma conferência para uma estratégia internacional em Setembro.
Para além da importância crescente da relação transatlântica, o futuro da Europa num mundo que lhe é cada vez mais hostil vai depender da forma como resolver a crise ucraniana e enfrentar a nova ameaça da barbárie jihadista. Vivem na Europa mais de 20 milhões de muçulmanos. Não é uma coisa que possa ficar lá fora. O problema é que a segurança tem um custo que os europeus podem não estar dispostos a pagar, habituados que estão a não ter de escolher entre a manteiga e a espingarda, graças à garantia americana. Na próxima cimeira da NATO, no início de Setembro, os EUA vão insistir novamente em que a Europa não pode continuar a reduzir os seus orçamentos de defesa. No clima de austeridade criado pela crise, vai ser muito difícil aos governos explicarem isso aos seus eleitores. Mas alguma coisa vai ter de mudar na economia e na política externa, se a Europa não quer mergulhar na instabilidade e na irrelevância.
Noticia corrigida às 12h03: palavra Bálticos alterada para Balcãs, no 12º parágrafo