A doceira que recebia o salário de Cervantes
Documentos inéditos revelam aspectos ignorados da vida do autor de D. Quixote: recolhia cereais para os galeões de Filipe II e terá tido uma relação com uma pasteleira sevilhana.
O futuro autor de D. Quixote (a primeira parte da obra só sairia em 1605) desempenhou cargos públicos bastante bem remunerados, pouco compatíveis com o mito da sua permanente pobreza, e terá tido uma quarta mulher na sua vida, além das três que já se conheciam: uma fabricante de biscoitos sevilhana, chamada Magdalena Enríquez, na qual Cervantes confiava o suficiente para a encarregar de receber o seu salário quando estava ausente.
O criador daquele que é considerado o primeiro romance da literatura ocidental teria vivido em aflições financeiras mais ou menos constantes, pelo menos no retrato romantizado que dele deixaram os seus biógrafos oitocentistas.
José Cabello Núñez, arquivista em La Pubela de Cazalla, um município de pouco mais de dez mil habitantes, a 60 quilómetros de Sevilha, veio agora demonstrar que, pelo menos nos anos de 1592 e 1593, Cervantes terá, afinal, vivido com relativo desafogo.
A demanda de Cabello iniciou-se há três anos, quando o investigador se deparou, por acaso, com um manuscrito datado de 5 de Março de 1593 que atestava a acreditação de Miguel de Cervantes junto da autarquia de La Puebla enquanto comissário da Fazenda Real, encarregado do abastecimento de trigo e cevada à armada de Filipe II. O documento, um dos milhares de papéis relativos a La Puebla que estão depositados no Arquivo do Distrito Notarial de Morón de la Frontera, esclarece ainda que Cervantes desempenhava estas funções por indicação de Cristóbal de Barros y Peralta, então provedor-geral da Casa de Contratación de Sevilha, a instituição que controlava e geria a carreira das Índias.
Figura influente na corte de Filipe II (Filipe I de Portugal), Cristóbal de Barros era também um prestigiado construtor de navios de guerra, armador dos galeões que participaram, em 1571, na batalha de Lepanto - na qual Cervantes lutou e foi ferido.
Em 1593, ano a que respeita este documento encontrado por José Cabello, pensava-se que Miguel de Cervantes viveria em Sevilha sem exercer nenhuma ocupação remunerada. “O documento é importante”, comentou o investigador à agência EFE, “porque confirma que Cervantes esteve em La Puebla, algo que era desconhecido até agora, e o relaciona pela primeira vez com Cristóbal de Barros”.
O jornal El Pais transcreve parte do documento: “Por ordem e mandato de Cristóbal de Barros, fornecedor dos galeões da armada das Índias, veio para esta vila Miguel de Cervantes Sayabedra para tributar os vassalos desta vila para o fornecimento dos ditos galeões (...) combinámos e acertámos com o dito comissário que lhe daremos cento e trinta fanegas [unidade de medida correspondente a cerca de 55 litros] de trigo e vinte ‘fanegas’ de cevada (...)”.
À procura dos ossos
Entusiasmado com a descoberta, José Cabello seguiu a pista que lhe era sugerida por esta relação profissional entre o escritor e Cristóbal de Barros, e acabou por encontrar, no Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, que centraliza a documentação relativa às antigas colónias espanholas, uma autorização de Barros para que fosse pago a Cervantes um salário de 19.200 maravedis. “Uma quantia bastante digna para a época”, observa Cabello, que ficou a saber por outro documento conservado no mesmo arquivo que esta verba dizia respeito a 48 dias de serviço – de 21 de Fevereiro a 28 de Abril de 1593 – como comissário da Fazenda Real em vários municípios da região de Sevilha.
Durante estes últimos anos, o investigador correu todos os arquivos onde pudesse encontrar outros documentos relativos à permanência de Cervantes em La Puebla e acabou por ter sorte no Arquivo de Protocolos Notariais de Sevilha, onde lhe apareceu aquele que considera ser o seu “achado mais interessante”: uma procuração passada por Cervantes a Magdalena Enríquez para que esta pudesse receber o seu salário de comissário de abastecimentos.
Cabello observa que até agora só se sabia da existência de três mulheres com as quais Cervantes tinha tido ligações relevantes: Ana Franca de Rojas, de quem teve uma filha, Catalina de Salazar y Palacios, com quem se casou em 1584, e Jerónima Alarcón, a quem o romancista serviu de fiador em 1589. De Magdalena Enríquez sabe-se apenas que era natural de Sevilha e que confeccionava uns biscoitos especialmente duráveis que eram usados para abastecer os navios que zarpavam para a América.
Como as mulheres não estavam autorizadas, na época, a realizar transacções, a menos que fossem viúvas, Cabello está convencido de que era este o estado civil de Magdalena, e que a doceira manteria alguma relação com Cervantes, já que doutro modo não se compreenderia que o escritor confiasse à sua guarda os dinheiros que tinha a receber.
Ao mesmo tempo que estes achados documentais vêm lançar nova luz sobre a atribulada vida de Cervantes – além de ter lutado na batalha de Lepanto, foi capturado por turcos em 1575 e sofreu cinco anos de cativeiro, como escravo, até ser resgatado em 1580 –, uma equipa de cientistas, equipada com tecnologia de ponta e usando técnicas como a termografia infravermelha, está há meses a vasculhar o interior do antigo convento das Trinitárias Descalças, em Madrid, procurando os restos mortais do escritor, que ali foi sepultado em 1616.
Para facilitar uma eventual identificação, os investigadores dispõem de dados importantes: sabem que o esterno de Cervantes deve apresentar lesões resultantes de tiros de arcabuz – foi atingido no peito durante a batalha de Lepanto –, e que os ossos da sua mão esquerda apresentavam deformações graves.