Um país à procura da morte perfeita
Os EUA têm estado a debater a melhor forma de matar criminosos sem os torturar. Será o regresso à cadeira eléctrica ou ao pelotão de fuzilamento?
"Deus vos perdoe.” As últimas palavras de James Wood foram proferidas às 13h52. Ao mesmo tempo, o pessoal médico do instituto prisional de Florence, no Arizona, procurava as melhores veias para injectar o chamado cocktail letal. “James Wood parecia ter adormecido, apesar de estar amarrado à mesa, e fixou o olhar na parede em frente. Os primeiros dez minutos correram de acordo com o previsto. Então, um arfar profundo.” O primeiro de 660, contabilizados por Mauricio Marin, um jornalista de uma televisão local que assistiu à execução no instituto prisional perto de Phoenix, a 23 de Julho.
Às 15h49, Wood foi declarado morto, uma hora e 57 minutos depois de lhe ter sido administrada a injecção letal. A execução do homem de 55 anos foi tão longa que houve tempo para os seus advogados ligarem a um juiz do Supremo Tribunal do Arizona para pedir a interrupção do procedimento. A resposta tardou e Wood — condenado por um duplo homicídio cometido em 1989 — acabou por sucumbir, duas horas depois. “É este o tempo que é suposto um homem demorar a morrer?”, questionava-se o jornalista presente na execução.
No dia seguinte, o jornal Arizona Republic pedia ao governador do estado que adoptasse uma moratória sobre as próximas execuções. “Ao tentar fingir que estamos a pôr estes condenados a ‘dormir’, caímos num protocolo que garante um horror prolongado”, lia-se no editorial.
Desde o início do ano, esta foi a terceira execução nos EUA que levantou preocupações acerca de crueldade deste tipo de pena. Em Janeiro, um condenado no Ohio levou 25 minutos a morrer, após ter sido injectado com uma combinação de drogas utilizada pela primeira vez. Em Abril, no Oklahoma, uma injecção mal administrada deu azo a um cenário descrito como “carnificina” — a veia de Clayton Lockett que tinha sido injectada com os sedativos “rebentou”, obrigando à interrupção da execução. Lockett estava consciente durante o processo e acabaria por morrer na sequência de um ataque cardíaco.
A sequência de casos de execuções mal conduzidas veio expor as fragilidades do sistema da pena de morte nos Estados Unidos. Ao eterno debate sobre a manutenção ou a abolição da pena capital veio juntar-se uma discussão macabra, sobre os métodos mais adequados para matar dentro da lei. David Waisel, um professor da escola de Medicina de Harvard, disse recentemente ao The Guardian que, para se manter a pena de morte, esta “deve ser efectuada de forma perfeita”. Mas o que é isto de uma “morte perfeita”?
A oitava emenda à Constituição norte-americana proíbe a aplicação de penas “cruéis ou invulgares” e a história da pena de morte tem sido a da procura pelo método mais limpo e eficaz de a aplicar. “A legitimidade da pena capital foi colada a uma certa ideia de progresso científico, segundo a qual iríamos encontrar um método que assegurava que não estaríamos a portar-nos de forma cruel”, diz à Revista 2 Austin Sarat, um professor de Ciência Política no Amherst College, no Massachusets, que se tem debruçado sobre o tema.
A injecção letal começou a ser utilizada nos anos 1980, substituindo gradualmente a cadeira eléctrica. Das mais de três mil execuções realizadas nos EUA desde o reingresso da pena de morte, em 1976, em mais de um terço foi utilizado esse método. A sua vantagem é a de sedar o condenado enquanto as funções vitais são bloqueadas. “Não vejo nada mais humano” do que a injecção letal, disse o seu criador, Jay Chapman, numa rara entrevista concedida em Maio à revista Time.
Era Dostoievsky que dizia que “matar por obrigação legal é imensuravelmente mais terrível do que o homicídio de criminosos”. A dificuldade patente em lidar com a morte obrigou à procura de métodos que ocultassem o acto de matar, preferencialmente sem deixar rastos físicos, e, por outro lado, que não fizessem descer os aplicadores da lei ao nível daqueles que são condenados, reduzindo ao máximo o sofrimento destes.
Efectivamente, a combinação de três compostos químicos no chamado cocktail letal permite uma morte em que a pessoa esteja anestesiada, graças à presença de tiopentato de sódio. Uma segunda droga, o brometo de pancurónio, paralisa o executado e pára a respiração, e a terceira, o cloreto de potássio, faz cessar o batimento cardíaco. Esta foi a receita desenvolvida por Jay Chapman, em 1977, e que rapidamente se tornou no padrão utilizado para as execuções.
Nos últimos anos, contudo, começaram a aparecer vários obstáculos para os estados norte-americanos que adquiriam estes produtos, sobretudo o tiopentato de sódio, responsável pela acção anestesiante que conferia a tal característica “humana” à execução. Este químico foi ultrapassado por outros anestesiantes mais sofisticados e a sua finalidade clínica praticamente deixou de existir. A última empresa norte-americana que o fabricava, em Itália, foi obrigada a cessar a produção em 2011, devido a pressões das autoridades italianas. Seguiu-se a posição concertada a nível europeu, firmada numa posição contra a pena de morte. Inicialmente, os países da União Europeia começaram de forma individual por restringir o fornecimento desse composto. Em Junho de 2011, as reservas de tiopentato de sódio atingiram valores mínimos e o secretário de Estado do Comércio, Gary Locke, teve mesmo de fazer pressão directa junto do ministro alemão da Economia, Philipp Rösler, que se negou a levantar as restrições. No final do mesmo ano, a Comissão Europeia alargou a proibição de venda de “produtos que possam ser utilizados para a execução de seres humanos através da injecção letal”, passando a incluir o tiopentato de sódio.
A mistura padrão para as injecções passou a ser cada vez mais difícil de alcançar, levando as administrações estatais a utilizar novas combinações. Tanto Wood como Lockett foram sujeitos a uma injecção que continha midazolam, um sedativo cuja combinação com hidromorfona poderá ter causado as perturbações que foram noticiadas.
De método mais “humano” de matar, a injecção letal passou a ser vista como um acto equiparado à tortura. A comparação veio do senador republicano do Arizona e ex-candidato presidencial, John McCain, que não a terá feito de ânimo leve — quando combateu na Guerra do Vietname, ele próprio foi torturado. Austin Sarat estudou todas as execuções nos EUA entre 1890 e 2010 e concluiu que há uma taxa de 3% de procedimentos mal efectuados. “A tecnologia menos fiável, a mais problemática e a que tem maior margem de erro é a injecção letal: 7% das execuções foram defeituosas”, estima o professor.
Na sequência da execução de duas horas de Joseph Wood, o juiz do Tribunal de Recursos dos EUA, Alex Kozinski, colocou o dedo na ferida e fez uma sugestão pouco ortodoxa: o retorno ao pelotão de fuzilamento. “Oito ou dez balas de espingarda a pouca distância conseguem infligir danos consideráveis, causando sempre morte instantânea”, justificou, não sem algum cinismo. “Se nós, como sociedade, não conseguimos suportar o choque de uma execução levada a cabo por um pelotão de fuzilamento, então não deveríamos ter execuções de forma nenhuma”, disse Kozinski numa entrevista ao Washington Examiner. Para o jurista, a utilização da injecção letal não passa de “um esforço extraviado para mascarar a brutalidade das execuções, fazendo-as parecer serenas e pacíficas”.
O debate está lançado. Os EUA estão, de facto, a discutir como se deve matar um condenado à pena capital. A professora de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Maria Fernanda Bernardo, entende que no debate sobre a “morte perfeita” continua a ser “o argumento da crueldade da execução que sobressai”. É “como se, no tocante a esta questão, estivesse menos em causa o próprio princípio da pena de morte do que a crueldade da sua aplicação”, acrescenta, numa resposta enviada à Revista 2 por email. Esta professora de Ética nota ainda “a pretensão do sábio ou do cientista — na figura do médico neste caso — para reduzir a morte, o instante da morte, a um acontecimento calculável e, portanto, dominável”. “Nunca um tal saber (…) se revelou tão problemático, frágil, insuficiente e contestável como hoje”, acrescenta.
Rick Halperin, um professor da Universidade Metodista de Dallas que fez da luta pela abolição da pena de morte a missão de uma vida, classifica a expressão “morte perfeita” de “oximoro”. “Não existe algo como uma pena de morte ‘perfeita’, o sistema em si está recheado de enganos e preconceitos detestáveis”, comenta à 2. O activista, que também pertence à Amnistia Internacional, alerta para a “banalização da discussão sobre a morte de pessoas”.
Esse efeito de banalização da morte existe, mesmo quando não há pena capital, observa Maria Fernanda Bernardo. “Não abolimos ainda de todo o registo sacrificial da nossa cultura”. Regressar a métodos como o fuzilamento “representaria, pura e simplesmente, a ostentação de um retrocesso civilizacional pelo que significaria de capacidade de convívio a olhos nus com a brutalidade da crueldade”, defende a docente.
Se o fuzilamento é um retrocesso, por outro lado, a administração da injecção letal esconde uma “perversidade hipócrita”, diz Maria Fernanda Bernardo. O objectivo é transformar o “assassínio legal” num acto “quase natural (…) que pode talvez assemelhar-se ao tratamento paliativo do fim de uma vida”, entende esta professora, que se define como uma abolicionista incondicional.
Halperin recusa o rótulo de morte “limpa”, associada à injecção letal. “A pena de morte deve ser vista como aquilo que de facto é: um processo de terror físico e psicológico que culmina no extermínio humano”, argumenta. A passagem a métodos mais antigos, diz, seria “mais uma descida à barbárie”.
Desde a reintrodução da pena de morte em 1976, para além da injecção letal, foram utilizados outros quatro métodos: o fuzilamento, o enforcamento, a câmara de gás e a cadeira eléctrica. Porém, foram raras as vezes em que estas opções foram usadas. Tanto o fuzilamento como o enforcamento — muito utilizados no final do século XIX e início do século XX — só por seis vezes foram aplicados, enquanto a câmara de gás foi utilizada em onze condenações. A cadeira eléctrica foi bastante recorrida ao longo do século passado (158 execuções), mas foi através da administração de químicos que a maioria dos condenados foi executada (1210).
A injecção letal é, de resto, prevista pela legislação em todos os 32 estados que mantêm a pena de morte, mas em alguns permanecem outros métodos alternativos. No Oklahoma, por exemplo, o juiz Kozinski poderia ver a sua sugestão realizada — o pelotão de fuzilamento pode ser aplicado para execuções, caso a injecção letal seja considerada inconstitucional, ou seja, se um juiz decidir que não respeita a oitava emenda.
Os anos que leva a estudar a história da pena capital nos EUA e dos métodos utilizados permitiram a Austin Sarat tirar uma conclusão: “Nenhum desses métodos está à prova de falhas, é perfeito ou absoluto.” “Quando as pessoas pensam em voltar a pelotões de fuzilamento ou à cadeira eléctrica, isso mostra o seu desespero”, observa o professor, para quem esta discussão está a funcionar como uma “distracção da questão mais abrangente de se os EUA devem usar a pena capital”.
Com efeito, os dados estatísticos revelam uma tendência de declínio desta prática nos Estados Unidos. O ano de 1999 fixou um recorde de 98 execuções, mas desde então esse número tem reduzido substancialmente. Em 2013 foram executadas 39 pessoas, o que representa uma queda para metade. Da mesma forma, o número de condenações também aponta para essa tendência. No ano passado foram sentenciadas 80 pessoas, quando em 1994 e 1996 se atingiram números superiores a 300. Ainda assim, no infame corredor da morte permanecem 3070 condenados, menos 55 do que em 2013, segundo dados de Janeiro do Centro de Informação da Pena de Morte.
Geograficamente, as execuções parecem nos dias de hoje um fenómeno altamente localizado. As 39 mortes judiciais do ano passado ocorreram em nove estados e dois deles, o Texas e a Flórida, foram responsáveis por 59%. “Há 18 estados que não têm pena de morte e dos 32 estados que a têm, muitos não a usam”, nota Sarat, especificando que “oito não executam ninguém há mais de uma década”. Em termos mundiais, os EUA têm a companhia de países como a China, a Arábia Saudita, o Irão, a Somália, o Vietname ou o Iraque, entre os que mais executam os seus prisioneiros. De acordo com a Amnistia Internacional, em 2013 foram executadas 778 pessoas em todo o mundo, um número que ainda assim esconde os dados das execuções na China, que não são conhecidos.
Apesar de continuar a ser maioritário, o apoio à pena capital também tem decrescido junto dos norte-americanos. Uma sondagem publicada em Março pelo Instituto Pew, referente a 2013, mostra que 55% da população concorda com a aplicação da pena de morte, uma queda em relação ao estudo anterior, de 2011, que apontava para um apoio de 62%. Simultaneamente vão crescendo aqueles que se opõem. Em 1996 apenas 18% se mostrava contra a pena de morte, enquanto em 2013 são já 37% os opositores.
Reconhecendo uma maioria de pessoas que apoiam a manutenção da pena capital, Austin Sarat considera, todavia, que “o apoio é alargado mas não é profundo”. “Eu não sobrestimaria que o apoio à pena de morte nos EUA seja muito importante ou saliente. Há vinte anos, a pena de morte era uma importante questão nacional e nenhum político queria ser visto como meigo em relação ao crime. Hoje, a situação mudou”, diz-nos.
Do ponto de vista do poder judicial há também a consciência das fragilidades do sistema da pena de morte, muitas vezes manchado por erros judiciários e pela demora dos processos. “A percepção de que podem ser cometidos erros, a libertação de pessoas inocentes que poderiam ter sido executadas leva os jurados a hesitar. Os procuradores sabem que é mais difícil conseguir uma sentença de morte” disse à Reuters no ano passado o director-executivo do Centro de Informação da Pena de Morte, Richard Dieter. “Há uma história emergente na consciência popular, que é a de que o sistema da pena de morte é pouco fiável”, reforça Austin Sarat.
Tudo isto não significa, no entanto, que o fim da pena de morte possa estar iminente. “Há uma tensão entre querer a pena de morte e querer que ela seja ‘limpa’ e sem erros”, diz à Revista 2 Chad Flanders, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Saint Louis. No seio desta tensão, “alguém tem de ceder”, defende: “Ou aprendemos a viver com as imperfeições do processo ou, como parece mais provável, iremos usar a pena de morte cada vez menos.”
Maria Fernanda Bernardo nota uma dupla contradição quanto à manutenção da pena de morte nos EUA, tanto em relação ao carácter democrático do seu sistema político como no que respeita à tradição de religiosidade, que contraria o “não matarás” bíblico. Mas a professora de Filosofia alerta para a complexidade da sociedade norte-americana, a fim de “não cairmos em generalizações homogeneizantes e injustas”. “Apesar da cifra brutal de 55% de apoiantes da pena capital, os EUA, pátria da civil desobedience, não deixam também de lúcida e vigilantemente pugnar por uma incondicionalidade para além da soberania”, diz a docente, lembrando que é lá “que se encontram os movimentos de protesto mais veementes, vigilantes e informados contra a pena de morte”.
Pessoas que, como Rick Halperin, vão continuar a lutar contra a continuação em vigor da pena capital. “Penso que uma questão como esta pode de facto definir uma sociedade”, diz-nos o professor de Dallas, para quem “a pena de morte não é só mais uma questão de direitos humanos, mas sim a questão principal à volta da qual todas as outras revolvem”.
As duas horas que James Wood passou a contorcer-se enquanto tentava respirar chocaram a sociedade, os juristas e os governantes dos EUA. Uma voz apenas não alinhava nas críticas à sua execução: Jeanne Brown, a irmã de Debbie Dietz e filha de Eugene Dietz, as vítimas de Wood. Em Agosto de 1989, o homem foi visitar a ex-namorada, Debbie, na loja da sua família em Tucson. Wood matou o pai de Debbie e quando esta tentava impedi-lo, agarrou-a e disse-lhe “vou ter de te matar, puta”. Jeanne assistiu a tudo.
“Não sabem o que é tortura”, disse a familiar das vítimas, confrontada com o sofrimento do assassino. “Tortura é ver o teu pai caído numa poça de sangue, ver a tua irmã numa poça de sangue. Isso é que é tortura. Este homem mereceu o que teve.”
Por que não devem sofrer então as pessoas que cometeram crimes tão horríveis? Chad Flanders, num artigo de opinião de 2012, dá dois tipos de resposta: uma de ordem legal, relacionada com a oitava emenda, e outra de âmbito moral. “As pessoas na prisão ou no corredor da morte estão a ser punidas pelo que fizeram, estão a ser privadas da sua liberdade e, no limite, das suas vidas. Isto deveria ser punição suficiente para nós”, escreve o professor de Direito. O seu argumento vai buscar uma famosa citação de Friedrich Nietzsche: “Cuidado para que, quando lutas contra monstros, não te tornes num monstro tu próprio.” “É claro que devemos punir aqueles que matam, mas não nos podemos tornar como aqueles que punimos”, conclui.
Tudo aponta para que a pena capital entre numa morte tão lenta quanto aquela que James Wood e outros sofreram. As condenações e as execuções estão em declínio, os juízes vêem-na cada vez menos como uma punição válida e os seus críticos vão ganhando mais argumentos a favor da abolição. Mas, como diz Maria Fernanda Bernardo, não bastará abolir a pena de morte para acabar com o desejo de que a morte seja um castigo.