O magnífico travestismo rock de Marc Ribot no Jazz em Agosto

Dois impressionantes concertos do trio de Marc Ribot e do duo Matthew Shipp & Evan Parker abrem da melhor forma a 31.ª edição do Jazz em Agosto na Fundação Calouste Gulbenkian.

Foto
FCG/Márcia Lessa

Essa deformação é evidente em palco, mais do que em disco. Partindo de padrões de guitarra com ADN que dispensa análises laboratoriais para se atribuir ao universo rock, via blues, a associação a Shahzad Ismaily e Ches Smith não poderia ser mais adequada. Enquanto Smith constrói muralhas na bateria que sustentam todo e qualquer desvario de Ribot, Ismaily é a peça volante que tudo permite: ora assegura as linhas mestras numa circularidade perfeita no baixo, ora surpreende pelos motivos melódicos que oferece para que a guitarra entre em diálogos menos ácidos, ora se vira para o teclado Moog em busca de melodias picarescas, ora se serve de um pequeno kit de bateria para estimular pequenos sobressaltos rítmicos que tornam a música dos Ceramic Dog uma matéria incandescente.

A prova do carácter inspirado e único de Ribot está precisamente na edificação de uma música cheia de nervo a partir de uma colecção de riffs de guitarra que assumem a filiação no rock sem reclamar novidade. E não o faz, igualmente, a partir de um ângulo irónico ou caricatural. Mas a sua natural propensão para a falta de ortodoxia traz um repetido atropelo desses padrões, por mais rock que Ribot queira ser, autorizado por um balanço arrevesado de funk, por memórias difusas da música africana, por deflagrações punk (magnificamente arábicas em Masters of the Internet), tudo isto resultando em magníficas manobras evasivas em relação à normalidade. Ao ver Ribot em palco, é fácil perceber o fascínio gerado em Elvis Costello, Alain Bashung ou Tom Waits, fundamental nessa acção de permitir que a canção clássica assim pode continuar a sê-lo sem cair na mera repetição. E ele próprio, em oposição ao divertimento sobre a vida downtown nova-iorquina nos anos 1980 de Girlfriend em canção de guitarra sacudida, assume esse classicismo cançonetista numa versão de Serge Gainsbourg, La Noyeé, que o coloca ao lado de Mark Linkous no lado de uma fragilidade tocante. Só que todo este exercício rock é, na verdade, um espectáculo de travestismo, em que Ribot joga com as certezas e as ilusões.

O frémito permanente do concerto de Marc Ribot é de tal ordem que a atenção nunca se perde, assim como o potencial de revelação do que acontece em palco, fazendo da guitarra um instrumento sem limites e em que não é preciso desmontar o seu papel para esbugalhar os olhos de quem ouve – tudo o que é inacreditável nas suas mãos, é porque Ribot faz da guitarra um brinquedo. Uma aparente ligeireza que permite também provocações correspondentes nos seus companheiros de palco, como o accionamento de uma sequenciação rítmica que é disparada simplesmente para matar o tema passados dez segundos.

Este frémito não esteve presente no outro concerto liderado por um guitarrista (a aposta desta edição do Jazz em Agosto) e que se afastou igualmente da matriz vanguardista habitual do festival nestes primeiros dias. James “Blood” Ulmer e a sua trupe, com particular relevo para o segundo guitarrista Vernon Reid (conhecido do grupo funk-metal Living Colour, cujo pico de popularidade se deu na década de 1990), só de relance evocou seu o passado entrincheirado entre Jimi Hendrix e Bobby Womack (dos tempos do colossal There’s a Riot Going On, com Sly Stone).

O que quer dizer que a passagem do histórico guitarrista adorado por Ornette Coleman se fez pelo lado dos blues mais convencionais, um passo à frente de John Lee Hooker. Ou seja, aquilo que lhe ouvimos foi uma eficaz demonstração clássica de blues eléctricos – ligeiramente corrompida aqui e ali, em solos ou temas excepcionalmente mais incendiários –, descarnada, no entanto, dos elementos funk, free ou psicadélicos que ajudaram a fazer de Black Rock (1982) um disco obrigatório. Em linha, portanto, com o mergulho acentuado que Ulmer tem descrito nas duas últimas décadas, aproximando-se das raízes e dispensando tudo o que sejam movimentos expansivos. Aclamado perante um anfiteatro ao ar livre esgotado, talvez o guitarrista não tivesse perdido em levar mais à letra temas como The Blues Had a Baby and Called it Rock’n’Roll.

Sem guitarras

Na notável excepção ao domínio da guitarra nesta edição do Jazz em Agosto, Matthew Shipp e Evan Parker, dois músicos com uma longa e profícua relação com o festival da Gulbenkian, facilmente provaram que a sua presença jamais será redundante. Ultrapassados os minutos iniciais em que era óbvia a procura por um encaixe entre o piano de Shipp e o saxofone de Parker, aquilo que se seguiu foi uma sessão de marcar a brasa na memória. A riqueza discursiva de Shipp, cujas mãos parecem estar sistematicamente a roubar sons ao piano, é algo de estarrecedor: tanto assegurando uma forte toada rítmica, percussiva, exigindo a Parker travões nas suas torrenciais e inebriantes sequências (em que o saxofone parece fixar um arpejo inicial e em seguida entrar num modo de remoinho que vai sugando novas frases para o interior sem largar o motivo base), como metamorfoseando-se no espaço de segundos, saltando de resquícios de Beethoven a trote para lirismos que, sem darmos conta, descambam em picos de tensão.

E, de facto, toda a abordagem ao piano de Shipp, ainda que fragmentária na linha da descendência de Cecil Taylor, parece uma sessão de prestidigitação: a constante transformação da linguagem utilizada parece um fio contínuo que liga pontos inconciliáveis sem que disso resulte um espectáculo artificioso. A gestão de dinâmicas cabe-lhe por inteiro, mas a forma como Parker responde a estas guinadas sucessivas sem falhar a integração de cada uma num sopro que, na verdade, parece impassível é coisa de espanto.

Nos próximos dias, o Jazz em Agosto entrega-se por completo ao reino das guitarras.

Sugerir correcção
Comentar