Uma predisposição genética para coisas horríveis
Aos 56 anos, Nick Cave pode reivindicar pelo menos meia dúzia de vocações: compositor e intérprete, argumentista, romancista, autor de bandas sonoras, conferencista, e em poucas ocasiões (talvez ainda bem) actor.
"Fui a Graceland uma vez”, diz Nick Cave. “O resto da banda entrou, mas eu fiquei lá fora a fumar cigarros com pena de mim próprio. As últimas actuações do Elvis — aquelas para a televisão quando ele já estava doente — devo ter visto esses clips centenas de vezes. São como crucificações.” Faz uma pausa. “Eu não conseguia entrar lá dentro”.
É uma tarde luminosa do início de Fevereiro e Cave está numa boutique de Berlim, no bairro da moda de Friedrichshain, a comprar lembranças para os filhos. “Tem isto em tamanho de criança?”, pergunta, segurando na mão um cinto com a palavra “cleptomaníaco” gravada na fivela. A vendedora faz um enorme esforço para não parecer fascinada pela estrela que está à sua frente, mas a atenção dele está noutro lado. “Estes podem funcionar”, diz com a sua pronúncia australiana já desgastada pelas viagens, olhando para um par de abomináveis homens das neves peludos. “Os meus filhos estão naquela idade maravilhosa em que estão a descobrir o que é a boa música”, diz. “Estão a apanhar coisas, no Spotify e nisso, e de vez em quando descobrem uma coisa que é realmente avassaladora. Mas às vezes oiço o que eles estão a ouvir e dá-me vontade de cortar os pulsos.”
Cave, que é talvez mais conhecido como líder dos seus grupos seminais de pós-punk Birthday Party e Nick Cave & the Bad Seeds, está na Alemanha para promover 20,000 Days on Earth, um filme sobre a sua vida que passou no festival de cinema de Berlim. Aos 56 anos, pode reivindicar pelo menos meia dúzia de vocações: compositor de canções e intérprete com os Bad Seeds e o seu rock de garagem Grinderman; argumentista dos elogiados filmes Proposition e Lawless; romancista; autor de bandas sonoras; conferencista; argumentista; e em poucas ocasiões (talvez ainda bem) até actor. Os seus livros são best-sellers; as suas bandas sonoras receberam prémios; músicos tão distantes de si como os Red Hot Chili Peppers e St. Vincent referem-no como uma das suas influências; e o álbum mais recente do Bad Seeds, Push the Sky Away, foi um dos comercialmente mais bem sucedidos da carreira da banda, chegando ao n.º1 do top de vendas de música independente no Reino Unido.
“No que diz respeito ao trabalho, sou quase megalómano”, diz Cave horas mais tarde. “Mas um megalómano com uma auto-estima extremamente baixa.” Estamos sentados no restaurante do seu hotel em Berlim Mitte, tentando manter uma conversa entre interrupções frequentes por parte do staff do festival, conhecidos e uma série infindável de admiradores. Alto, cadavérico e um bocado desajeitado, com os seus sapatos de pele de cobra, com cachuchos nos dedos e fatos de bom corte, Cave parece um híbrido de corretor de apostas com um nobre inglês. O seu cabelo comprido, penteado para trás, pintado de preto desde os 16 anos, emoldura uma cara que tem sido ao mesmo tempo descrita como “angelical” e “repulsiva aos olhos” — esta última pelo próprio, numa canção. Tem o tipo de visual que só poderia resultar numa estrela, especialmente nesta idade, mas que nele parece tão digno — e inexplicavelmente apropriado — como aqueles fatos cheios de pedras encrustadas que Elvis usava nos seus últimos anos de vida. A persona pública de Cave tem sido considerada “teatral”, mas o termo “cinemático” será mais preciso. Como muitos automitificadores, carismáticos e velhos excêntricos, parece estar sempre a actuar num filme que só ele consegue ver.
O mais perto que todos nós poderemos estar de ver esse filme é através de 20,000 Days on Earth. Cave é co-autor do argumento com os seus realizadores, os artistas Iain Forsyth e Jane Pollard, com quem já colaborou em vários projectos pequenos — vídeos musicais e curtas-metragens. Não é lá muito ortodoxo, para dizer o mínimo, que a personagem de um documentário colabore no argumento, mas muito pouco em 20,000 Days on Earth pode ser considerado ortodoxo.
Tal como o título sugere, o filme é uma investigação à passagem do tempo, à memória e ao envelhecimento e sobrevivência artística, dramatizados num dia imaginário na vida do seu personagem, o músico Nick Cave.
Enquanto estava a trabalhar numa música, começou a brincar com a ideia de medir a sua vida em dias em vez de anos, e Forsyth e Pollard, que estavam a fazer um documentário sobre a banda enquanto ela gravava Push the Sky Away, viram aí o potencial para um filme. Quando perguntei a Cave o que o tinha levado para a noção do 20.000.º dia, ele olhou para mim secamente. “Cinquenta e quatro Anos e Nove Meses na Terra não soava da mesma forma.”
Vários documentários recentes exploraram os limites nublosos entre reportagem e ficção, mas em 20,000 Days..., Pollard e Forsyth tentaram simplesmente verem-se livres dessa fronteira. Do primeiro ao último frame, o filme obedeceu a um guião, com guarda-roupa e iluminação profissional e tem todo o brilho de um filme de grande orçamento; mas, se uma série de locuções de Cave foram preparadas, toda a interacção que aparece no ecrã — de uma visita ao psicanalista a uma viagem no seu Jaguar com Kylie Minogue — foi espontânea e não ensaiada. No caso de figuras do seu passado com quem perdeu o contacto (como o guitarrista fundador dos Bad Seeds Blixa Bargeld, que deixou o grupo abruptamente há mais de dez anos), os co-editores foram ainda mais longe: não era permitida qualquer conversa sobre a cena até a câmara estar ligada.
“O Nick nunca aceitaria um documentário-rock puro e simples”, diz-me Forsyth em Berlim. “Decidimos ir numa direcção que junta realidade e fantasia o mais próximo possível — o que, se pensarmos bem, não está muito longe da troca que existe entre uma estrela de rock e os seus fãs. As pessoas querem desesperadamente entrar no mundo que o Nick cria nas suas canções. Quando os Bad Seeds estão a tocar, olhamos à volta e vemos com precisão qual das versões de Nick — o junkie, o fora da lei, o amante — cada pessoa do público deseja ser.”
O filme foi estreado em Sundance, em Janeiro (recebeu os prémios de documentário internacional nas categorias de melhor realização e melhor edição) e em Setembro será exibido nos EUA, com visionamentos durante o Verão que coincidirão com a tournée de Cave na América do Norte. Que um filme idiossincrático como este consiga conquistar não só o público do festival como um distribuidor americano é a prova, que nem o mais fervoroso dos fãs dos seus dias gloriosos de punk de sarjeta poderia antever, da atracção incrivelmente abrangente que a sua persona elegante, lasciva, culta, romântica e que não pede desculpas acabou por ter nas últimas décadas.
Talvez mais do que qualquer outro dos seus contemporâneos – muitos dos quais acabaram por sair aos poucos de cena (Bauhaus, o Pop Group) ou foram relegados para o purgatório das digressões de última escolha (as Sisters of Mercy ou os Cure) —, Cave conseguiu criar um mundo ficcional coerente e contido, onde tanto ele como os seus seguidores podem entrar sempre que lhes apetece; um tipo de exercício conjunto na criação do mito que parece aprofundar-se a cada variação do tema. “Se Nick Cave decidisse começar um culto, eu seria a primeira a aderir”, ouvi uma mulher dizer depois da exibição de Berlim.
“Não aconteceu nada na minha infância — nenhum trauma, nada”, diz quando lhe pergunto sobre as origens da sua sensibilidade. “Simplesmente tinha uma predisposição genética para coisas horríveis.”
Nicholas Edward Cave nasceu a 22 de Setembro de 1957 em Warracknabeal, Victoria (que agora tem 2745 habitantes), a noroeste de Melbourne. Os seus pais, Dawn e Colin Cave — o bibliotecário e a professora de Inglês da escola que ele frequentou — incutiram muito cedo aos filhos uma veneração pelas artes. “O meu pai leu-me o primeiro capítulo de Lolita quando fiz 12 anos”, diz. “Acontecia-lhe qualquer coisa quando lia aquilo em voz alta. Tornava-se um homem diferente. Elevava-se. Eu sentia-me a ser iniciado no seu mundo secreto: o mundo do sexo, da idade adulta e da arte. Mas, ao mesmo tempo, eu não passava de um miúdo e nem sempre estava à altura das suas expectativas. Ele apanhava-me a ler um daqueles thrillers péssimos, tirava-mo das mãos e dizia: ‘Queres uma contagem de corpos sangrenta? Então lê Titus Andronicus!’”
Apesar da (ou devido à) presença dos pais em casa e na escola, passou apenas um ano em Wangaratta High antes de ser expulso (“por distúrbios variados”, como me descreveu). A mãe insiste que ele foi transferido antes que fosse expulso, mas seja como for a sua partida trouxe-lhe consequências. Decidiu que iria ser pintor. “Tinha uma gigantesca ambição artística quando era miúdo”, diz-me. “Adorava aquelas coisas tortuosas, góticas, religiosas — Matthias Grünewald e Stefan Lochner e os espanhóis — e queria fazer quadros com esse tipo de força. Havia algo no facto de estar sozinho num quarto a fazer arte que me entusiasmava. Ainda me entusiasma, este meio esquisito de aplicar tinta numa tela e as restrições de uma moldura quadrada e bidimensional.” Faz uma pausa. “De certa forma, não é muito diferente das restrições de uma canção.”
Acabou por ir parar a uma escola interna em Melbourne, onde se enturmou com um grupo de degenerados que tinha mais ou menos tomado conta do departamento artístico da escola, e rapidamente formaram uma banda, os Boys Next Door. As canções que Cave escreveu com Mick Harvey, o guitarrista estóico e bonitinho da banda, formam o início de uma colaboração que iria de 1974 até bem depois do novo milénio. Os Boys Next Door rapidamente conseguiram um grupo de seguidores, em parte por levaram o seu público a extremos que nem as suas referências — os Stooges e os New York Dolls — tentaram explorar. “Os únicos sítios que nos aceitavam eram as tascas de cerveja e os clubes de ligas [militares]”, diz sorrindo nostalgicamente. Um espectáculo típico poderia incluir combates com o público, instrumentos tocados fora de tempo e membros da banda já passados, isto para não falar das letras, que um crítico descreveu como “uma mistura de paranóia, autoparódia demente e uma inebriada paixão neurótica”. Quando a banda mudou de nome para Birthday Party, em 1978, o número de bares que os baniam era superior aos que os aceitavam, e o seu estatuto de banda de culto na Austrália estava assegurado.
A vida de Cave começou a incorporar a degradação e o excesso que os Birthday Party celebravam nas suas canções. O seu consumo ocasional de heroína e de speeds cresceu até se tornar uma dependência total e coleccionou uma série de detenções. A 11 de Outubro de 1978, quando esteve preso numa esquadra policial de Melbourne acusado de vandalismo e roubo, a polícia informou Cave e a mãe, que veio pagar a caução, que o pai acabava de morrer num acidente de carro. Ainda lhe é difícil falar sobre esta junção de acontecimentos. Uma das cenas mais reveladoras de 20,000 Days... é durante uma sessão de terapia matinal, na qual o terapeuta, dr. Darian Leader, tenta explorar o tema da morte de Colin Cave. “Eu tinha 19 anos”, começa Cave, fazendo um esforço óbvio, “e aquilo apareceu do nada. Foi uma coisa que abalou toda a família”. Depois remete-se para um silêncio tenso e petrificado. Finalmente, Leader diz: “Devemos parar por aqui?”
No Inverno de 1980, os Birthday Party mudaram-se para Londres, onde editaram dois álbuns brilhantes, Prayers on Fire e Junkyard. Cave, que no início não gostava muito de Londres — talvez por ter passado a maior parte do tempo num edifício abandonado de Maida Vale, indo periodicamente fazer curas de heroína — e sentiu-se atraído por Berlim, onde as rendas eram baratas, as anfetaminas proliferavam e a banda tocara alguns shows memoráveis. “Encontrámos uma comunidade verdadeiramente artística em Berlim”, diz-me. “Realizadores, músicos, pintores... Havia um tipo de inclusão que nunca tivemos em Londres.”
Em Berlim, tornou-se presença regular num bar de Kreuzberg chamado Risiko, cujo empregado, Blixa Bargeld, era o rosto dos pioneiros da música industrial Einstürzende Neubauten (Novos Prédios em Colapso), cujo anticomercialismo militante admirava.
Bargeld ofereceu a sua sensibilidade radical às últimas sessões de estúdio dos Birthday Party (“Ele sempre abordou a guitarra com renitência e ódio”, diz-me Cave em tom apreciativo) e ficou ao lado dele quando a banda se dissolveu, tal como Mick Harvey.
Em Setembro de 1983, foi aos Garden Studios, em Londres, para pela primeira vez gravar em seu próprio nome. O álbum que daí saiu, From Her to Eternity, era ainda menos catalogável do que a música que fazia com os Birthday Boys ou os Boys Next Door: uma colecção reverberante e flexível de sete preces ameaçadoras, marciais e serpenteantes, capazes de canalizar toda a fúria e repulsa do punk, enquanto evitava a maioria dos clichés de um género já esgotado. O disco consagrou Cave e os Bad Seeds, como agora se chamava a sua equipa de colaboradores, praticamente de um dia para o outro. A New Musical Express, provavelmente a mais influente revista de música do Reino Unido, começou a sua crítica assim: “From Her to Eternity de Nick Cave é um dos maiores discos de rock de sempre.”
Cave vive agora em Brighton, em Inglaterra, com a sua mulher e os filhos gémeos de 14 anos, numa casa que teria parecido, por várias razões, inconcebível para o punk de crista assustadora que foi em Berlim. Quando me encontrei com ele no Inverno, alugava um escritório modesto a uma distância curta de sua casa, mantendo horas de trabalho regulares como um assalariado honesto. (“Costumava ir seis dias por semana, até não aguentar mais”, diz com um sorriso. “Agora vou também aos domingos.”)
Para além de um pequeno piano vertical a um canto, um microfone de pé e uma colecção aparentemente aleatória de fotografias e páginas arrancadas de revistas presas na parede, a própria sala poderia muito bem passar pelo escritório de um funcionário determinadamente anacrónico: uma secretária com um tamanho razoável, uma máquina de escrever manual e um frasco de corrector já gasto. Há muito que a sua ética de trabalho é lendária. Enquanto escrevia uma das suas canções mais conhecidas, Red Right Hand, do álbum Let Love In, de 1994, preencheu um bloco de notas com descrições da cidade imaginária onde a canção se passava, incluindo mapas e desenhos dos edifícios mais importantes, que acabaram por não fazer parte da letra. “É bom ter um sítio onde ir e depois escrever”, disse-me em Brighton. “Nem sempre tive esse luxo.”
Foi em Berlim que fez a primeira das suas incursões extramusicais que acabariam por o definir como um homem renascentista da geração “pós-punk”: um romance grotesco e cheio de sangue, cheio de influências de Faulkner e intitulado And the Ass Saw the Angel. Passado no vale imaginário de Ukulore, num ambiente de alucinações ao estilo sul-americano, o romance conta o sofrimento e os apetites angustiantes de Euchrid Eucrow, um doente mental mudo com uma fixação na prostituta local, Cosey Mo, e em Beth, a sua santa e etérea filha. O mínimo que se pode dizer é que a história não acaba bem. Cave ficou totalmente obcecado pelo romance, sacrificando muitas vezes trabalho mais lucrativo, e foram precisos três anos de um trabalho quase diário para o terminar.
“Não tenho dúvidas de que aquele livro tinha que ver com o meu pai”, disse-me em Berlim. “Ele próprio quando era jovem queria ser escritor e a literatura era para ele uma questão de vida ou morte. Há pouco tempo a minha mãe mostrou-me uma carta que ele lhe escreveu sobre a peça de teatro que estava a encenar, e era escrita com uma intensidade — as suas frustrações com os actores e o orçamento e por aí fora. Há uma paranóia e um entusiasmo com o trabalho que acho lindo. Depois, no fim, descobrimos que ele está a falar de uma peça da escola. Por isso, sim, o livro pode parecer a certo nível uma coisa incompleta. Mas tomou conta da minha vida de uma forma que não era saudável, para mim ou para as pessoas à minha volta. E assim que o terminei deixei Berlim.”
Passou os três anos seguintes em São Paulo, para onde se mudou depois de conhecer a estilista de moda Viviane Carneiro. Pouco depois do nascimento do filho, Luke, voltou para Londres com a família e começou a trabalhar num novo álbum, com canções sobre mortes violentas. O álbum — que apropriadamente se chama Murder Ballads — seria fundamental na sua carreira, dando-lhe o primeiro hit de rádio mainstream (Where the Wild Roses Grow, com Kylie Minogue). Também o lançou para um duo com a estrela britânica do rock P.J. Harvey, a quem ainda hoje o associamos, mais não seja porque resultou, em 1997, naquilo que muitos consideram a sua obra-prima: The Boatman’s Call.
“As pessoas comparam muitas vezes The Boatman’s Call com Blood on the Tracks”, diz-me durante uma das nossas conversas em Brighton, referindo-se ao magnum opus do fim das relações composto por Bob Dylan. “Demasiado para o meu gosto, devo dizer. Não faço ideia do que levou Dylan a fazer aquele disco, mas no meu caso deu-se uma conjugação de vários acontecimentos infelizes — momentos de rupturas, mas também epifanias — que me abalaram totalmente e que se tornaram no tema do álbum.” Sorri. “Não foi uma altura particularmente feliz. Mas ao menos saíram daí umas canções.”
As 12 pistas de The Boatman’s Call falam ao mesmo tempo do fim da sua relação com Viviane Carneiro e da sua breve mas apaixonada relação amorosa com Harvey, que foi bastante exposta em público: o primeiro beijo do casal foi à frente de uma câmara, durante as filmagens do seu dueto em Murder Ballads, Henry Lee.
As canções contidas e cândidas do disco deram aos ouvintes, talvez pela primeira vez, uma pista sobre o ser humano por trás da extravagante persona de Cave e libertaram-no das restrições do estilo “Antigo Testamento pelo género Southern Gótico” que ele inventou com uma bela ajuda de Mick Harvey, Bargeld e os restantes Bad Seeds.
Desde essa marca de água, editou sete álbuns de estúdio, apareceu em três filmes, escreveu dois argumentos e publicou um segundo romance, The Death of Bunny Munro. Mas talvez os dois acontecimentos mais importantes dessa altura estejam à margem da sua vida criativa. Pouco depois da edição de The Boatman’s Call, conheceu a modelo britânica Susie Bick, com quem está casado há mais de uma década e meia, e pouco depois largou a heroína de vez, ao fim de mais de 20 anos de dependência. Tal como ele diz, já perto do fim de 20,000 Days: “A primeira vez que vi a Susie foi no Victoria and Albert Museum em Londres. E quando ela entrou, todas as coisas que me deixaram obcecado durante anos, fotografias de estrelas de cinema, a Jenny Agutter no lago, a Anita Ekberg na fonte . . . os concursos de miss Universo, Marilyn Monroe e Jennifer Jones e Bo Derek . . . as bailarinas do Bolshoi e as ginastas russas… as miúdas da piscina de Wangaratta deitadas no betão a escaldar… toda a cascata interminável de informação erótica… se juntou naquele momento, num big bang avassalador, e eu fiquei rendido a ela. Foi assim.”
A vida de Cave em Brighton é a de um homem de família convencional, com algumas excepções notáveis. Numa tarde recente, estávamos a almoçar num bar chamado Ginger Dog com Warren Ellis — o multi-instrumentista barbudo dos Bad Seeds e um dos colaboradores mais próximos de Cave desde há mais de uma década — quando um homem de tweed com os seus 60 anos se aproxima. “Desculpe, mas é o Nick Cave?”, pergunta timidamente. “É que acabei de me mudar para Brighton e faço cabeças de bronze.” “Cabeças?”, questiona Cave naturalmente, como se este tipo de coisas acontecessem regularmente. “Ando a querer fazer um retrato de corpo inteiro, montado num cavalo. Não pode fazer isso?” O homem gagueja um bocado, mas acaba por dizer que sim. “Em ouro, não é?”, acrescenta Ellis. “Isso mesmo”, disse Cave, aceitando educadamente o cartão de visita do homem. “Uma imagem equestre, em ouro. Faz esse tipo de coisas?”
Depois de garantir ao artista, que parecia satisfeito ainda que intrigado, de que iria espreitar o seu site, retoma a conversa no mesmo ponto onde a deixámos. Eu perguntara-lhe porque é que a sua música, que pode ser tão gráfica como um death metal ou um gangsta rap, sempre teve, ao contrário do death metal, por exemplo, uma adesão alargada e apaixonada entre as mulheres.
“Tenho um público feminino na cabeça quando escrevo”, diz ele. “Dito isto” — sorri perversamente para Elvis — “sou muitas vezes surpreendido pelo que as mulheres vêem de sexy na minha música”.
“Em muito daquilo que Nick escreve há uma voz de mulher”, diz Ellis. “O Nick é um escritor, sabe? Leva a narração e o ponto de vista muito a sério.”
“Nem todas as mulheres gostam”, acrescenta Cave. “Têm-me chamado todo o tipo de coisas. Mas mesmo o material que é mais…” Fica à procura da palavra. “… mais forçadamente sexual, tem sempre a ansiedade por trás. Se as minhas canções saíssem assim como uma coisa masculina, não me interessariam minimamente”.
Cave e Ellis têm ficado até altas horas num estúdio próximo, testando ideias para o próximo disco dos Bad Seeds, e a conversa vira-se para um novo método de composição que a banda desenvolveu ao longo das últimas gravações. O assunto fá-los parecer, naquele momento, dois rapazinhos que acabaram de estrear a sua nova banda.
“O que fazemos é gravar sem parar”, diz Cave, com uma animação súbita que me surpreendeu. “Começamos de manhã e ficamos ali sete ou oito horas com auscultadores postos a tocar qualquer coisa, por mais horrível que seja. Quando começamos as músicas, são totalmente abstractas, ninguém sabe sequer em que acorde estamos…” — “Bom, eu sei”, diz Ellis amavelmente — “… e vão-se passando coisas entre os músicos, vão-se descobrindo coisas, que são impossíveis de repetir. Não poderia ser mais diferente da forma como escrevi os meus primeiros álbuns, como o The Boatman’s Call ou No More Shall We Part. É mais como fizemos logo no começo, quando gravámos o primeiro disco dos Bad Seeds com o Blixa [Bargeld, guitarra e voz] e o Barry [Adamson, o baixista do grupo] e o Mick”.
“De certa forma, o Push the Sky Away parece um álbum de estreia”, afirma Ellis. “Sentíamos isso quando o fizemos.”
“Agora vem o terrível follow-up”, acrescenta Cave, não parecendo de todo aterrorizado.
Precisamente 24 horas depois do nosso almoço no Ginger Dog, Cave está sentado numa cadeira rotativa numa sala de som luminosa forrada a painéis de madeira do AIR Studios, no bairro discretamente chique de Hampstead, a ouvir as piadas sempre prontas de Ellis e a convencer uma orquestra de 18 elementos a dar um pouco mais de ataque ao que está na partitura que os dois escreveram para o filme Loin des Hommes (uma produção francesa com Viggo Mortensen). “Adoro o que os celli [violoncelos] estão a fazer!”, diz Ellis a certa altura, levando Cave a franzir uma das sobrancelhas. “É assim que dizes?”, murmurou. “Sempre pensei que era cellos [expressão correcta].” E foi só isto que disseram durante uma hora.
Uma e outra vez, nos dois monitores suspensos do tecto, Mortensen e a estrela que contracena com ele, o actor franco-argelino Reda Kateb, sobem ao cume de uma montanha, trocam algumas palavras, depois descem por um caminho de pedras, com o acompanhamento vigoroso dos músicos do outro lado do vidro. Enquanto Ellis fala a grande velocidade, Cave mantém-se calado. Trouxe consigo um livro cheio de anotações: uma cópia do romance que está a considerar adaptar ao cinema para Forsyth e Pollard. Ao seu lado numa mesa, sem qualquer ordem aparente, está uma grossa cópia da partitura (Loin des Hommes, by Nick Cave and Warren Ellis), um CD The Boatman’s Call e uma página com anotações misteriosas que ousei espreitar. A letra era pequenina e encriptada e tanto poderia ser sobre a adaptação do filme, como ideias para o próximo álbum, ou a escrita de um argumento que está actualmente a dirigir ou ainda uma exegese do Inferno de Dante. Daquilo que conheço dele, facilmente seria isto tudo.
Perto do fim de 20,000 Days On Earth, Cave está refastelado no sofá à frente da televisão, com um filho de cada lado, a ver um filme. O espectador não vê o que o clã Cave está a ver — a julgar pelo diálogo, pode ser o Scarface de Brian De Palma, mas não é difícil imaginá-lo a ver The Proposition ou Lawless só por causa dos rapazes. (“Costumávamos ter uma coisa que chamávamos a noite de filmes inapropriados”, tinha dito antes. “Sento-me com os meus filhos e vemos alguma coisa que nenhum pai são alguma vez mostraria aos seus filhos pequenos — Dawn of the Dead ou alguma coisa que os assustasse de morte — e era um fantástico momento de ligação entre nós. Agora, não há nenhuma noite de filmes de nenhum género.”)
A cena é estranhamente forte e ao observá-la não consigo deixar de pensar no que Cave me disse no nosso primeiro encontro, ao descrever as suas emoções quando o pai lhe lia o Lolita: “Eu tinha 12 anos e não entendia metade do que ouvia. ‘Um fogo nos testículos?’ Mas que raio queria aquilo dizer? E algumas partes deixavam-me muito desconfortável. Mas, mais do que tudo, as palavras que ele me lia entusiasmavam-me. Eu sabia que nada voltaria a ser igual.”
John Wray é autor do recente romance Lowboy
Exclusivo PÚBLICO/ The New York Times