“É difícil combater o ébola num país onde umas luvas custam mais do que se ganha num dia”

Português a viver na Serra Leoa deverá deixar o país nesta semana. Descreve falta de meios no terreno e dificuldade em obter apoio das autoridades consulares portuguesas.

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O ébola já matou 826 pessoas Ahmed Jallanzo/UNICEF/Reuters

A partir da sua casa na capital, Freetown, onde se encontra a cumprir o recolher obrigatório declarado pelo Presidente Ernest Bai Koroma, “para as pessoas ficarem a reflectir sobre o vírus e a ouvirem informações na rádio”, Samuel explica por telefone que os esclarecimentos continuam a ser escassos para os quatro portugueses que sabe que vivem neste país assolado pela febre hemorrágica altamente mortal.

No caso do gestor, será a sua empresa a retirá-lo da Serra Leoa, provavelmente ainda nesta semana, à semelhança do que estão a fazer outras multinacionais. A decisão abrange todos os funcionários estrangeiros e Samuel Bonifácio deverá regressar à Europa num dos três voos possíveis, ou seja, via Paris, Bruxelas ou Londres. “Só que nos aeroportos aqui não existe despistagem. Olham para a nossa cara, fazem-nos umas perguntas de sintomas e deixam-nos embarcar. À chegada à Europa é que há um controlo mais apertado, mas é depois da viagem.”

Porém, antes de ter esta informação diz que tentou obter ajuda junto da Secção Consular da Embaixada de Portugal, em Dakar, que tem jurisdição sobre a Serra Leoa, mas não conseguiu resposta. “Há grandes falhas. Tentámos contactos por email e não responderam. Eu não preciso do Estado português, porque a minha empresa já tem tudo em ordem, mas queria expor a situação pois ninguém tem noção do que se passa aqui, de quantos portugueses somos e do que estamos a pensar fazer”, explica Samuel Bonifácio, que assegura que se alguém for infectado não tem condições para ali ser tratado.

Contactado pelo PÚBLICO, o secretário de Estado das Comunidades adianta que já pediu dados no sentido de se averiguar quantos portugueses estão de facto na Serra Leoa e nos restantes países afectados: Libéria, Guiné-Conacri e Nigéria. José Cesário admitiu que serão “poucos”, mas que dadas as viagens recentes pode haver pessoas nestes países que não avisaram as autoridades consulares, que é o primeiro passo que aconselha. Além disso, o responsável reforça que desde Abril que o Governo tem recomendado que os portugueses saiam dos países em risco. Ao todo, a epidemia do pior surto do vírus descoberto na década de 1970 já matou 826 pessoas.

No que diz respeito a apoios para sair como está a acontecer, por exemplo com os Estados Unidos, José Cesário rejeita a hipótese, salvo para casos excepcionais. “Quando há uma situação de emergência absoluta, ou seja, a pessoa está num determinado local e não há forma pelas vias normais, convencionais e comerciais de sair de lá, nessa altura evidentemente, que recorremos aos meios próprios para tentar encontrar forma de os ajudar”, disse, mas explicando que a despesa terá de ser assegurada pelo cidadão, “salvo em casos de insuficiência financeira”.

Sobre eventuais casos de portugueses infectados que queiram regressar, o secretário de Estado disse que o primeiro passo deverá ser sempre procurar cuidados médicos nos países e contactar a emergência consular (estão disponíveis os telefones 707 202 000 e 961 706 472 ou o email gab.emergencia@mne.pt), mas reforçou que o regresso será “por vias comerciais”, admitindo, no entanto, que perante os sintomas “serão poucos os que têm condições para o fazer”. Para quem já regressou a Portugal e apresente sintomas da doença, a Direcção-Geral da Saúde apelou a que seja contactada a Linha Saúde 24  (808 242 424), que encaminhará os casos para os hospitais preparados.

“Quem diz que nos devemos tratar aqui na Serra Leoa não sabe do que fala. As pessoas quase não se protegem. Um par de luvas custa mais do que uma pessoa de cá consegue ganhar num dia. O ordenado de um serra-leonês é de 80 ou 85 euros por mês”, contrapõe Samuel Bonifácio, que descreve a forma precária como funcionam muitos serviços de saúde. “Os hospitais de campanha são tendas de plástico em que quase não há divisões entre os doentes infectados. É quase tudo no meio do mato e basta vir vento para se misturar tudo”, insiste, acrescentando que mesmo as autoridades locais “mascararam as coisas até quinta-feira passada, quando o Governo declarou estado de emergência”.

“Inicialmente via-se que tinham medo de que os expatriados se fossem embora e com eles o investimento e o know-how de que o país precisa, pois ainda passaram poucos anos da guerra civil”, acrescenta. Só agora, pouco a pouco, começam as recomendações para evitar grandes aglomerados: “Mas ainda no fim-de-semana vinha de casa de amigos e via os bares e restaurantes da praia cheios. Aqui em Freetown parece que ainda não acreditam bem, só acordaram mais com a morte do médico.” Samuel Bonifácio referia-se à morte, na semana passada, de Sheik Omar Khan, reconhecido médico e virologista da Serra Leoa, apontado como “herói nacional” na luta contra o ébola e que tratou mais de cem doentes antes de também ser infectado.

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