O Homem da Máquina de Filmar é o melhor documentário de todos os tempos na lista provisória da Sight & Sound
Shoah (1985), o monumental esforço de Claude Lanzmann para filmar o infilmável Holocausto nazi, é o segundo na lista da revista britânica.
Primeiras impressões, para começarmos a trocar umas ideias sobre o assunto enquanto dura a contagem decrescente até dia 14: com cem redondíssimos votos, Dziga Vertov é rei, impondo a gramática a seu tempo revolucionária (estávamos em 1929...) de O Homem da Máquina de Filmar, que Eisenstein considerou "cine-vandalismo", como a linguagem fundadora do cinema documental. Muitos lugares à frente, aliás, do filme que para muitos inventou o próprio cinema: La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (1895), o primeiro que os irmãos Lumière produziram com o seu cinematógrafo, ficou na 47.ª posição, ex-aequo, entre outros, com As Estações (1975), de Artavazd Pelechian, O Triunfo da Vontade (1935), de Leni Riefenstahl, e Valsa com Bashir (2008), de Ari Folman, todos com oito votos. A consagração de Vertov parece, mas não é assim tão evidente: Brian Winston, que assina o ensaio sobre O Homem da Máquina de Filmar a publicar na edição de Setembro da Sight & Sound, recorda a reiterada incompreensão que penalizou o filme durante várias décadas, tanto na Rússia do realismo socialista como na Europa ocidental.
Dos nove filmes que se seguem, apenas outro – Nanook, o Esquimó (1922), de Robert Flaherty, que ficou em sétimo lugar – foi produzido na primeira metade do século XX. Shoah (1985), o monumental esforço de Claude Lanzmann para filmar o infilmável Holocausto nazi, é o segundo documentário na lista da revista britânica. Seguem-se-lhe, por esta ordem, o inclassificável Sans Soleil (1982), de Chris Marker; outro incontornável documento sobre o Holocausto (Noite e Nevoeiro, que Alain Resnais realizou em 1955, assinalando o décimo aniversário da libertação de Auschwitz); o inquérito para-judicial A Verdade Contra Tudo (1989), de Errol Morris; e Crónica de Um Verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin. Depois há Nanook – e toda uma discussão a ter sobre verdade e mentira no cinema documental, sublinha Pamela Hutchinson no seu texto sobre o filme que Flaherty rodou com um homem que não se chamava Nanook e numa altura em que os esquimós já caçavam com armas... – e os três últimos filmes do top ten: Os Respigadores e a Respigadora (2000), testamento antecipado de Agnès Varda, Don't Look Back (1967), em que D.A. Pennebaker seguia um Bob Dylan em digressão por Inglaterra, e Grey Gardens (1975), retrato de duas excêntricas parentes de Jackie Onassis por Albert e David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer.
A lista provisória, que inclui apenas os 50 documentários mais votados, viaja entre a década de 1930 (a de As Hurdes: Terra sem Pão, de Luis Buñuel, e de O Homem e o Mar, também de Robert Flaherty) e os anos 2000 (Leviathan, o filme de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel que ganhou o IndieLisboa no ano passado, é a entrada mais recente), passando por cineastas como Werner Herzog, Frederick Wiseman, Patricio Guzmán, Jean-Luc Godard, Wang Bing e Abbas Kiarostami. Até onde o ranking vai, não há nenhum filme português – mas há filmes de realizadores que já filmaram em Portugal, como Victor Erice (em 31.º lugar com O Sol do Marmeleiro, de 1992) e Thom Andersen (em 37.º lugar com Los Angeles Plays Itself, de 2003), assim como vários cineastas portugueses na lista de votantes (Gonçalo Tocha, João Rui Guerra da Mata, Salomé Lamas e Susana Sousa Dias).
Como "primeira visão global do cânone documental", é uma "visão fresca", conclui o editorial da Sight & Sound: "Um em cada cinco dos filmes escolhidos foi feito já depois da viragem do milénio, e ter um filme mudo de 1929 no topo da lista é uma alegria absoluta. E que haja tantos filmes de ensaio demonstra que o cinema de não-ficção não é uma disciplina estreita, antes um país amplo e aberto cheio de exploradores."