Maria Bethânia revisita os “quintais” da infância num disco de íntima melancolia
Meus Quintais, que é lançado esta quinta-feira em Portugal, fala de memórias de infância mas também do “dono da terra”: o índio brasileiro
Mas no intervalo de um show (como ela explica numa entrevista colectiva que deu no Rio de Janeiro, na sede da sua editora, a Biscoito Fino), sentiu “uma vontade, um desejo de cantar o homem no Brasil, o caboclo, o dono da terra, ou seja, o índio. É uma ideia muito pequena mas foi isso que me impulsionou.” Telefonou para Chico César, cantor e compositor paraíbano que também tem composto para ela, e ele disse-lhe que queria “pensar junto”. E assim começou tudo. Quando Bethânia falou a Adriana Calcanhotto na ideia e no trabalho conjunto já iniciado, esta terá respondido, por mail: “Ciúme de Chico César”. E, claro, juntou-se ao grupo. Que foi crescendo, até gravar o disco.
Meus Quintais, que chega esta quinta-feira às lojas nacionais com a chancela da portuguesa JBJ & Viceversa, tem doze temas (mais um extra) que nos remetem não apenas para as memórias pessoais da cantora (a casa, a família, a criação, a liberdade conquistada nos seus “quintais”) mas também para a presença do índio na cultura brasileira. “O índio não sai da minha cabeça”, disse ela na já citada entrevista. “Sabemos que temos uma hereditariedade com os pataxós. Eu acho o índio o dono da terra. Eu sou parda, sou misturada. Mas eles são aqui, inteirinhos. Eles são o chão, são o Brasil.” Chico César, ao compor, também pensou nele assim. “O Arco da velha índia, que ele fez para mim, é um dos poemas mais bonitos que eu já recebi, em canção. Depois ele fez o Xavante, que aí é um pensamento dele, como autor, lindo, que tem a ver com o meu projecto.”
Nesse projecto cabem vários temas de Roque Ferreira, sozinho ou em parceria (Casa de caboclo, Candieiro velho, Imbelezô eu / Vento de lá, Folha de reis), Chico César (Arco da velha índia e Xavante), Adriana Calcanhotto (Uma Yara, a que se juntou o poema A perigosa Yara, de Clarice Lispector), Leandro Fregonesi, sambista carioca da nova geração que Bethânia gravou pela primeira vez (com Povos do Brasil) e ainda temas clássicos como Mãe Maria, que Custódio Mesquita compôs com David Nasser em 1943 e fez parte do repertório de Ângela Maria, ou Lua bonita, de Zé Martins e Zé do Norte, que Bethânia conhece desde a infância. “A minha mãe cantava lindamente Lua bonita.” E há ainda uma velha canção folclórica brasileira, Moda da onça, recolhida por Paulo Vanzolini, que ela só conheceu agora. “Quem ma apresentou foi um grupo de professores e alunos de história”.
Abrindo e fechando com piano, primeiro o de André Mehmari depois o de Wagner Tiso, Meus Quintais tem uma sonoridade construída em colectivo, diz Bethânia. “Neste disco os músicos são autores. Eu jogava uma ideia de uma canção, um verso ou um pensamento meu, sonoro, e eles iam criando. Eles assinam comigo o disco.” A dada altura ouve-se soar um prato tocado com faca, e a cantora confirma que se trata de uma referência precisa a Dona Edith do Prato, compositora popular baiana, que se fosse viva completaria 100 anos em 2015. “O prato será sempre uma homenagem a Edith, à nossa região, o recôncavo baiano, e à sua música, que é o samba de roda”.
O “quintal” a que alude o título do disco tem uma referência directa ao quintal da sua infância, lugar de liberdade e descoberta, por oposição à casa, o lugar seguro. “Acho o quintal o melhor lugar do mundo, é onde se aprende tudo”, diz Bethânia na entrevista. “Ter um irmão como Caetano para brincar no quintal é um show. A gente gostava das brincadeiras loucas que inventávamos ou então do silêncio, da observação. O quintal, pra mim, é onde aprendi a água, a folha, o vento, o silêncio, a cantar, a errar, acertar, namorar… O quintal pra mim é família, agasalho, sexo, tudo começa ali.”
O disco encerra ainda referências a duas perdas na sua vida: a da mãe, Dona Canô, aos 105 anos, no dia de Natal de 2012; e a do dramaturgo Fauzi Arap (1938-2013), figura essencial à alma de muitos dos seus espectáculos. No livreto do disco há uma fotografia de Maria Bethânia com a mãe, ambas de costas, as cabeças encostadas, e ao lado esta legenda tirada da letra de Dindi, de Aloysio de Oliveira com música de Tom Jobim (é o tema extra do disco): “O vento que fala nas folhas/ Contando as histórias que são de ninguém/ mas que são minhas e de você também.” É Bethânia a falar de si mesma e da mãe, mas também de todos quantos quiserem partilhar este disco, hoje ou no futuro.