“O Teatro Nacional São João fez-se fundamentado no pilar definido por Ricardo Pais”
Foi há cinco anos que Francisca Carneiro Fernandes assumiu a presidência da administração do Teatro São João. Mas a advogada e gestora está no teatro nacional portuense há já mais de uma década. E continua a ter em Ricardo Pais a principal referência da missão desta casa onde o projecto artístico é sempre prioritário.
É advogada e passou pelo Banco de Portugal. Como veio parar ao TNSJ?
Quando acabei o curso de Direito, entrei num escritório de advogados. A meio, fiz um estágio, não-remunerado, no Banco de Portugal, mas não quis ficar, e voltei à advocacia…
Não quis ficar por causa do trabalho, ou da instituição?
Não era a instituição. Eu tinha, e tenho, muita energia e muita vontade de fazer muita coisa ao mesmo tempo, e achava que aquele não era o ritmo que desejava. No escritório – de Lobo Xavier e outros –, eu era a única advogada e aprendia coisas a um ritmo alucinante. Isso fascinou-me muito mais, apesar de me chamarem "kamikaze", quando decidi trocar o certo pelo incerto – no escritório não me podiam garantir nada, enquanto no Banco de Portugal era um emprego garantido. Mas, com 23 anos, eu achava que devia ir atrás daquilo que me dava prazer, que era aprender.
Como lhe chegou o convite para o TNSJ?
Eu tinha um gosto e uma aptidão natural para as artes, e um especial gosto em acompanhar os clientes mais artísticos. Um dos clientes do escritório era o Teatro São João, de que era subdirector, na altura, Luís Vaz, que admirava (e admiro) imenso. Ele ia sair e pôs-me a hipótese de eu ir ocupar o seu lugar. Mas, entretanto, houve uma hecatombe: Ricardo Pais saiu, no tempo do ministro José Sasportes, e não se confirmou a minha vinda. Depois, Ricardo Pais voltou e fui de novo convidada. Então deixei o escritório para vir agarrar este desafio. Vim para subdirectora, já com o pelouro administrativo e financeiro. Na altura, o TNSJ era um instituto público, depois perdeu autonomia financeira. Foi uma adaptação complicada. Logo a seguir, num espaço de três meses, soubemos da hipótese de ser transformado em sociedade anónima ou em entidade pública empresarial e, de repente, em 15 dias, isso aconteceu. Era preciso adaptarmo-nos, reformular o sistema contabilístico todo. Aproveitei – e foi um dos maiores desafios que a casa teve – para reformular completamente o sistema de gestão e controle interno.
O São João mantém-se hoje uma EPE. A situação está estabilizada? É que, entretanto, surgiu a possibilidade de ficar na dependência do Opart (Organismo de Produção Artística), ao lado do D. Maria II, São Carlos, etc…
Penso que essa ideia está abandonada. Estou plenamente convencida de que isso não iria trazer poupanças nenhumas e ia trazer muitas dores de cabeça. Principalmente para o Porto, porque estamos a falar de uma entidade que se iria juntar a outras quatro que estão a 300 quilómetros de distância, estando o Teatro São João, em vários aspectos, em situação mais favorável do que elas.
Acha que o figurino actual é o mais adequado?
Acho. É verdade que a situação nunca está estabilizada, porque, há dois anos, por causa dos acordos com a troika, passámos a EPE reclassificada, e fomos apanhados por cativações e outras restrições dos IP. Há é na nossa equipa uma capacidade de adaptação e de trabalho fora do vulgar, e que faz a diferença desta casa.
Quantas pessoas formam o quadro actual do TNSJ? E qual é o orçamento?
Neste momento, somos 83 pessoas. Em 2014, a indemnização compensatória, que tem vindo a diminuir de forma considerável, não chega a cinco milhões de euros. Temos alertado a tutela de que estamos no limiar mínimo. Desde 2008, os custos fixos da estrutura condensaram-se e reduziram-se em 44%. Esta diminuição de orçamento, forçada pela crise, impõe também uma forma nova de programar a actividade.
Em Março, aquando do anúncio da programação, alertou os responsáveis de que o teatro corria o risco de deixar de poder cumprir a sua missão. Esse limiar já foi atingido?
É onde estamos, neste momento. Tenho falado com o sr. secretário de Estado, e ele sabe disso. Todos sabemos que esta redução tem sido gradual, e geral, imposta por força das circunstâncias. Mas o TNSJ está já no seu limiar mínimo. E este ano, relativamente a cativações, tem havido todo o empenho em lutar e em defender este limiar. A minha “guerra”, estando em funções nos próximos anos, é tentar lutar para que este patamar se possa expandir.
Sente alguma discriminação para com o TNSJ, por se tratar de uma instituição do Porto?
Há circunstâncias em que já me aconteceu sentir que há desvalorização. Porque se está longe, é mais difícil saber qual é a importância do edifício do TNSJ para quem não conhece a Praça da Batalha, e o Porto, do que para quem está aqui e sabe que é uma zona central e fulcral. E que é um edifício de uma beleza fora do normal, que estava entaipado há oito anos, o que era lamentável, não só do ponto de vista do teatro, como da própria cidadania e do usufruto dos edifícios emblemáticos da cidade. Pontualmente há situações em que há uma menor capacidade de percepção da relevância dos problemas. E também a nível dos mecenas, porque as grandes empresas concentram-se em Lisboa, e é muito mais difícil conseguir que uma empresa de Lisboa esteja aberta a ser mecenas de uma instituição do Porto...
Depois do fim do contrato com a ANA, no ano passado, o TNSJ não conseguiu ainda um novo mecenas.
É verdade. Não tem havido falta de esforços. E estivemos quase a fechar o mecenato para a obra e o projecto de iluminação do edifício. Mas gorou-se à última hora, e foi uma desilusão para nós. Lá está: acho que a desistência tem a ver com o facto de ser uma empresa com sede em Lisboa, que não frequenta o Porto…
De que empresa se trata?
Não vou dizer. Se calhar, mereciam, mas não vou fazê-lo… As empresas preferem ser mecenas de uma fundação.
Nesse aspecto, o São João está em situação de desvantagem relativamente a Serralves e à Casa da Música?
Em relação ao mecenato, sim. Serralves e a Casa da Música são dois casos raros, onde os mecenas têm uma visibilidade e uma capacidade de participação na vida das duas instituições que não pode facilmente reproduzir-se numa EPE, por limitações legais.
Disse no início do seu mandato que a sua preocupação era continuar o projecto de Ricardo Pais. O encenador e antigo director artístico é ainda a referência principal do TNSJ?
Essa marca é o cerne daquilo que tanto o Nuno Carinhas como eu dissemos ser a nossa missão, que é continuar o legado de Ricardo Pais. A casa fez-se fundamentada nesse pilar: o de que a organização existe para dar corpo ao projecto do director artístico. Depois da saída de Ricardo Pais, houve uma divisão entre a presidência da administração e a direcção artística. Mas o que aprendi com ele mantém-se: se tiver de haver uma hierarquia, uma subjugação de um cargo a outro, então sou eu, na minha função, que tento encontrar os meios para que o projecto artístico possa ser levado a cabo.
Mas isso não significa que a actual direcção artística pode ficar algo “ensombrada” pela figura tutelar do ex-director?
Quando dizemos continuidade, não nos referimos a continuidade estética. Até porque podemos identificar facilmente as diferenças estéticas entre Ricardo Pais e o Nuno Carinhas. O que há é uma proximidade muito grande nas duas funções: nem o director artístico está desligado de questões que, noutras casas, poderiam ser pensadas como meramente administrativas ou de gestão, nem nós procuramos estar desligados daquilo que o director artístico pretende fazer.
Mas em termos de divulgação pública, por exemplo, a encenação de Ricardo Pais Al Mada Nada parece ter tido mais atenção e visibilidade do que a restante programação da presente temporada…
Não. O que pode notar é que a visibilidade das produções próprias da casa – o Al Mada Nada, como Ah, os Dias Felizes [encenação de Nuno Carinhas] – é superior às restantes, mas, do ponto de vista interno, a filosofia é absolutamente a mesma. Faz-se um esforço redobrado de promoção quando estamos a falar de produções próprias da casa, e o investimento é superior, quer a nível da criação como da promoção do espectáculo. Até porque uma produção própria vai ficar mais tempo em cena, e tem uma capacidade de sair, tanto a nível nacional como internacional, superior às co-produções. Mas é natural que Ricardo Pais, fazendo agora poucos espectáculos, tenha uma atenção redobrada, às vezes, por parte da imprensa.
Qual é a taxa de ocupação do teatro, este ano? A crise tem tido reflexo nos números?
Quando assumimos o mandato, o nosso objectivo era uma subida da taxa de ocupação da sala de 70 para 80%. Em 2009/10, superámos e passámos logo para 82%. Baixou em 2011 e 2012, para cerca de 73%, e em 2013 voltou a subir, para os 81%. Isto reflecte a crise e a conjuntura económica na população.
Qual é o peso da bilheteira no orçamento do teatro?
Não chega aos 20%. É muito inferior àquilo que deveria ser. Mas isto não é só no nosso país. Não conheço nenhum caso europeu em que a bilheteira sustente um teatro nacional. Isso é um mito. Nem sequer nos musicais. E em Portugal existe ainda pouco apetite do público, mesmo o mais cultural, para o consumo de teatro. Há pouca tradição nesse sentido, comparado com outros países.
A programação do TNSJ, nos últimos anos, não tem contado com produções internacionais. É mais um reflexo da crise?
Naturalmente, quando estamos com uma redução de orçamento assim acentuada… Só em 2012 foram menos 20%...
O festival Odisseia, em 2011, foi a última manifestação com teatro vindo de fora.
Esse foi o último ano em que tivemos uma capacidade superior ao normal, para os padrões actuais, para trazer espectáculos internacionais. Mas esse é um objectivo que não desapareceu da nossa agenda.
O edifício é procurado para visitas?
Sim, e cada vez mais. Há visitas organizadas por marcação, dois ou três dias por semana. Tencionamos apostar nisso, agora que deixamos de ter a casa entaipada. Um dos nossos grandes objectivos futuros é promover o TNSJ junto da população de turistas que ao longo de todo o ano está na cidade, através da legendagem dos espectáculos, por exemplo.
As mudanças anunciadas para o Teatro Rivoli, na sequência da nova gestão autárquica, poderão trazer novas possibilidades para o TNSJ, pensando, por exemplo, na experiência de parceria realizada aquando da Capital Europeia da Cultura?
Isso vai depender do director artístico que for escolhido para o Rivoli. É claro que temos alguma proximidade com a câmara municipal...
Mais do que no tempo de Rui Rio?
Mais, sem dúvida. Apesar de não nos podermos esquecer que Rui Rio, na "hora H", quando foi preciso dizer que sim à integração do TNSJ na candidatura da reabilitação urbana, disse que sim. A obra realizou-se só porque ele foi sensível à pressão que outras entidades foram fazendo.
Como avalia a gestão cultural dos mandatos do ex-presidente da câmara?
É indiscutível que a sensibilidade para o sector cultural de Rui Moreira é muito superior à que Rui Rio foi demostrando nos seus mandatos. Portanto, é natural que a abertura, ou o funcionamento regular do Rivoli, possa trazer vantagens e mais-valias à cidade no seu todo. Se isso significará sinergias em termos de programação, depois os directores é que irão decidir.
Quando terminar o seu mandato no TNSJ, para onde espera ir?
Não sei. Isso é uma incógnita. Estou focada aqui. Quando sair daqui, é um caso a pensar.
O que é que gostaria de realizar aqui que ainda não tenha feito?
Orgulho-me muito dos mecanismos inovadores internos que têm sido desenvolvidos na organização do teatro. Falta desenvolver o sistema de avaliação de desempenho, mas que tem que ser pensado transversalmente. Mas também só faz sentido fazê-lo quando se puder premiar, também financeiramente, o empenho das pessoas. Gostaria de não sair sem resolver isso.