Por que razão o baptismo é o rito que menos sofre com a crise da fé?
Em 2012 foram celebrados 61.963 baptizados, menos cinco mil do que em 2011. Mas comparando com outros ritos, como o matrimónio, o baptismo é o que menos sofre. Mesmo casais que não são casados pela Igreja o pedem para os filhos. Por que é que é importante ter padrinhos?
No passado, muitas crianças não resistiam aos primeiros tempos de vida (no final dos anos 40 quase 100 em cada mil morriam com menos de um ano, hoje a taxa é inferior a 3 por mil), pelo que havia que pedir o baptismo o quanto antes — as que não recebessem o sacramento ficariam presas no limbo, acreditava-se. Mas mesmo hoje, para muitos, há “qualquer coisa de mágico” associado a este rito: como se protegesse do mal, de vários males, na verdade, nota o padre Amaro Gonçalo Ferreira Lopes, da paróquia da Nossa Senhora da Hora, no Porto. “O meu filho não dorme, só chora, disseram-me que se o baptizar ele fica melhor”, contava-lhe no outro dia uma mãe angustiada. Mas o baptizado “não é uma vacina a tomar quanto antes”, costuma responder o sacerdote, que é também quem recorda o episódio do casal com o bebé e o menino de nove anos.
Em 2012 foram celebrados 61.963 baptizados, menos cinco mil do que em 2011, uma quebra de 7%, segundo dados fornecidos pela Conferência Episcopal Portuguesa. É uma descida significativa, tendo em conta que um ano antes a redução tinha sido de 2,6%. Para 2013 ainda não há dados de todas as dioceses, mas naquelas que os disponibilizam online regista-se, na maior parte, nova diminuição. Acontece nas dioceses de Leiria-Fátima, Coimbra, Setúbal, Vila Real, Lamego, Viseu...
Estes dados confirmam, no essencial, a tendência registada pelo Anuário Católico de Portugal 2014, publicado há dias, com uma análise do período de 2007-2011. Num país onde, segundo a nova estimativa da Conferência Episcopal, 88,4% da população é católica, a perda de relevância dos sacramentos tem sido progressiva. De 2010 para 2011 a quebra dos casamentos católicos, por exemplo, foi superior a 15%; de 2011 para 2012 foi de 8,3% (dados da Pordata).
Mas a questão dos baptizados é diferente. Não só a diminuição da sua prática é menor, como a que existe deve ser lida, também, à luz deste facto: há menos crianças a nascer — menos 4,4% entre 2010 e 2011, menos 7,2% entre 2011 e 2012. “É claro que o actual Inverno demográfico, com uma taxa de natalidade das mais baixas do planeta, tem consequências directas no número de baptismos”, nota o padre Manuel Morujão, ex-porta-voz da Conferência Episcopal.
Jogging ou missa?
É consensual que o baptizado não escapa à “crise de fé e de prática religiosa”, diz Ferreira Lopes. E é assim por diferentes razões, acrescenta Morujão — porque “os ventos do materialismo prático e do relativismo ético têm feito esquecer os valores do espírito”; porque há pais que argumentam que os filhos, quando forem adultos escolherão se querem ou não ser baptizados (e estão a aumentar os baptismos de quem tem mais de sete anos, são quase 10% do total).
“A quebra [no baptismo] não é tão significativa como aquela que se verifica na prática dominical da eucaristia, na prática habitual ou anual da Reconciliação (ou confissão) e na escolha do matrimónio católico”, diz o pároco de Nossa Senhora da Hora. “E mesmo entre casais que não casaram catolicamente, ou que se distanciaram há muito da vida celebrativa da sua comunidade cristã, o baptismo dos filhos parece e aparece como algo de essencial.”
Em suma, são muitos os que, mesmo estando arredados da prática religiosa, escolhem, como pais e padrinhos, responder às perguntas que marcam a cerimónia do baptismo: “Renunciais a Satanás, que é o autor do mal e o pai da mentira?” “Sim, renuncio!”
Porquê? Há muitas explicações. O antropólogo Alfredo Teixeira, do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da Universidade Católica Portuguesa, coordenou em 2012 um estudo sobre identidades religiosas em Portugal e começa por dizer o seguinte: “O domingo de manhã, outrora preenchido pela reunião cultual, pode agora ser preenchido por uma prática de lazer desportivo. A disponibilidade para a peregrinação a um lugar sagrado pode agora ser orientada para a experiência da viagem.” Já outras práticas são mais difíceis de substituir.
“Os ritos cristãos que acompanham o nascimento e a morte têm mostrado mais resistência”, prossegue, em resposta por email às perguntas do PÚBLICO. “Talvez porque a sua significação social não é tão facilmente transferível. Acolher a vida que chega, celebrá-la de forma mais alargada ou acompanhar os que partem, e organizar simbolicamente essa ‘separação’, são experiências que recorrem mais frequentemente às mediações religiosas.” Fora do matrimónio católico é fácil arranjar formas várias de celebrar o casamento — banquetes, festas que obedecem a um protocolo que por vezes até se apropria de ritos e ritmos da liturgia, observa Ferreira Lopes. “Já quanto ao baptismo, não é fácil a uma família encontrar uma outra forma de ritualizar o maravilhoso acontecimento da vida nova.”
Os números recolhidos na sondagem coordenada por Alfredo Teixeira são claros: 52% dos que se classificavam como não crentes tinham submetido ao baptismo os filhos quando estes eram ainda pequenos; 61% dos que se designavam “crentes sem religião” fizeram o mesmo. Entre os católicos (e a percentagem de portugueses que se consideravam católicos era em 2011, segundo esse estudo, de 79,5%) a taxa sobe, como é de esperar, para 95%.
Isto mostra bem como é transversal a prática do baptismo — ou como o rasto da Igreja católica está presente “na experiência social (e portanto simbólica) de acolhimento dos novos nascidos”, nas palavras do antropólogo da Universidade Católica.
Baptizar sai mais barato
Por vezes, são os avós que pressionam. Não é necessariamente fé, nem a valorização da integração de criança numa comunidade eclesial. É a tradição. Ou a “superstição” de que falava Ferreira Lopes — se não forem baptizados, o perigo pode espreitar.
Por outro lado, lembra Manuel Morujão, “o baptismo de uma criança, de um jovem ou adulto, para além de ser a celebração de um sacramento e de o integrar na vida da Igreja, tem também a sua vertente social: festa e convívio, padrinhos que ficam com uma ligação afectiva e de ajuda ao afilhado”.
Há ainda as questões do dinheiro e do compromisso, acrescenta o sociólogo José Pereira Coutinho, autor de uma tese de doutoramento sobre a religião e os jovens. Explicando melhor: a imagem do casamento católico está associada a uma grande festa, necessariamente dispendiosa, o que pode levar as pessoas a retraírem-se, sobretudo em tempos de menos recursos (“apesar do nosso esforço pastoral, por procurar ajudar a perceber a relação entre o matrimónio católico, a vida cristã dos pais e o baptismo dos filhos, muitos casais não casam pela igreja, ‘porque fica caro’, — dizem eles — mas persistem em pedir o baptismo, que é agora ‘a nossa prioridade’”, confirma o padre do Porto). “O baptismo é mais barato”, diz Pereira Coutinho. Os sacramentos não escapam a uma certa lógica consumista.
Mas, sobretudo, prossegue, “casamento e baptismo implicam níveis diferentes de compromisso”. E “numa sociedade que vive no presente, que pensa pouco no futuro, que não se compromete”, isso pode fazer a diferença. Para as pessoas, o matrimónio católico implica um maior compromisso com “a pertença à igreja” do que baptismo dos filhos.
A “cruz” dos padrinhos
Regresso ao casal que queria baptizar o filho para fazer a vontade à família. Naquele dia, o padre aconselhou-os a irem para casa e a pensarem um pouco melhor sobre se, em coerência com o mal-estar que pareciam revelar em relação à Igreja, faria sentido baptizar a criança. O baptismo pressupõe a fé cristã, no caso dos candidatos adultos e, na criança, a garantia da sua educação nesta fé.
Ferreira Lopes tenta manter uma postura aberta: “Quando alguém pede o baptismo, mesmo com motivações cristãs pouco claras, eu sempre tenho para mim que não posso baptizar apenas como quem ‘passa por água’, mas também não devo descartar a possibilidade de abrir a porta a um caminho de fé. Fico a pensar: ‘Outros casais não pediram o baptismo. Se estes o pediram, então há alguma coisa que os distingue’. É preciso ir atrás disso, escutar, propor, dialogar, esclarecer, aprofundar, mas não negar o baptismo, mesmo se possa ser legítimo, em alguns casos adiá-lo, por não haver qualquer expectativa ou a mínima garantia de acompanhamento da fé da criança por parte dos pais, dos padrinhos, da família mais próxima.”
Os pais do rapaz de nove anos acabaram por desistir. Os avós não gostaram e foram ter com o padre, protestar. As discussões não são assim tão pouco frequentes e surgem, sobretudo, por causa dos padrinhos. “A questão dos padrinhos é uma verdadeira ‘cruz’ para os párocos, com tantos desgostos e dissabores, e para nada. Na brincadeira, mas a sério, eu costumo dizer que ia a Fátima a pé, se acabassem os padrinhos”, diz o sacerdote.
Mandam as regras que os padrinhos devem ser pessoas que vivam seriamente a fé cristã e, por isso, que já tenham recebido os três sacramentos da iniciação cristã (baptismo, confirmação ou crisma e eucaristia). Se viverem maritalmente com alguém, devem ser casados pela Igreja. Em suma, têm de ser, nas palavras de Manuel Morujão, um “modelo para o crescimento na vida de fé do afilhado e por isso se requer que vivam, no essencial, segundo os preceitos da Igreja”. Ferreira Lopes admite que há muito boas razões para exigir dos padrinhos o que o Código de Direito Canónico prescreve. “Não discuto isso, do ponto de vista ideal e normativo. Mas o papel cristão, isto é, o múnus pastoral, exercido, de facto, hoje, pelos padrinhos, no nosso contexto social e eclesial, é praticamente irrelevante.”
Padrinhos e compadres
Na prática, muitos pais procuram mais “compadres para si” do que “padrinhos para os filhos”, lamenta. “Não há, por assim dizer, uma correspondência entre o papel que os pais querem atribuir aos padrinhos e a missão que a Igreja lhes quer confiar. E neste choque de expectativas acontecem tantas guerrilhas desagradáveis entre párocos, pais e padrinhos.”
Alfredo Teixeira fala do baptismo como “um lugar de encontro, mas também uma zona de desencontro, que exprime nessa divergência as expectativas de algumas famílias e as exigências próprias da instituição eclesial”. Há pais que explicam que este ou aquele amigo tem mesmo de ser o padrinho do filho, porque “era uma coisa que estava combinada há muito tempo”, ou porque tinha sido “uma promessa que a mãe fez quando estava grávida”, e “seria uma desfeita”... Se os padres questionam as escolhas chegam a ouvir: “Se não der para baptizar aqui, pago noutra paróquia.”
É sabido que diferentes sacerdotes fazem juízos distintos das regras. Ferreira Lopes admite que tem de haver sempre uma avaliação caso a caso — por exemplo, se a criança está inserida numa família com prática religiosa, pode não se justificar exigir tanto dos padrinhos —, mas acha que a excessiva divergência de interpretações alimenta os conflitos.
A Igreja devia assim repensar a figura do padrinho e da madrinha de baptismo, “tendo em conta que os verdadeiros ‘padrinhos’, os que apresentam e garantem o acompanhamento na fé das crianças são, em muitos casos, os avós, os catequistas, seus verdadeiros referenciais e modelos de fé”. Diz que espera que um dia, numa daquelas tiradas de uma homilia, na missa da manhã, ou em alguma celebração do baptismo, o Papa Francisco resolva isto. Como? “Reduzindo os padrinhos à figura de ‘testemunhas’ como já acontece no casamento e a quem, curiosamente, os noivos chamam ‘padrinhos’.”