O bosão de Higgs, que não tem nada a ver com Deus, é uma partícula muito importante

A procura – durante quase 50 anos, até ser detectada em 2012 – da partícula que confere massa às outras partículas é contada no que foi considerado o melhor livro de divulgação de ciência pela Royal Society de Londres em 2013. Escrito por um físico do Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos EUA, esta é a pré-publicação de um excerto do livro que, a partir desta quarta-feira, começa a chegar às livrarias portuguesas.

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Detector do acelerador de partículas LHC na fronteira franco-suíça CERN

Estamos a falar, obviamente, da “partícula de Deus”. Não da partícula em si, que não é mais do que o bosão de Higgs. Mas do “nome” “partícula de Deus”, pelo qual Lederman é responsável.

Lederman, um dos grandes físicos experimentais do mundo, ganhou o Prémio Nobel da Física em 1988, por descobrir que existe mais de um tipo de neutrinos. Se não o ganhasse por causa disso, havia outras conquistas suas dignas do prémio, incluindo a descoberta de um novo género de quark. Existem apenas três neutrinos e seis quarks conhecidos e, portanto, estas descobertas não nascem exactamente das árvores. No seu tempo livre, foi director do Fermilab e fundou a Academia de Matemática e Ciência de Illinois. Lederman também é uma pessoa carismática, famosa entre os colegas pelo seu humor e pela sua capacidade de contar histórias. Uma das suas histórias favoritas refere-se ao tempo quando, estudante de doutoramento, arranjou maneira de interpelar Albert Einstein enquanto ele caminhava nos jardins do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. O grande homem ouviu pacientemente enquanto o ansioso jovem explicava a investigação em física de partículas que andava a fazer em Columbia, e depois disse com um sorriso: “Isso não é interessante.”

Mas, para o público em geral, Lederman é mais conhecido por algo menos feliz: a criação da expressão “partícula de Deus” para se referir ao bosão de Higgs. De facto, é o título de um livro cativante sobre física de partículas e a busca do bosão de Higgs que escreveu em conjunto com Dick Teresi. Como explicam logo no primeiro capítulo do livro, os autores escolheram a expressão em parte porque “o editor não nos deixou chamar-lhe a Partícula Maldita [Goddamn Particle, no original], apesar de poder ser um título mais apropriado, dada a sua natureza vil e os gastos que implica.

Os físicos de todo o mundo, um bando notoriamente rebelde, concordam alegremente numa coisa: odeiam o nome “partícula de Deus”. Peter Higgs, de quem provém o nome mais tradicional, diz com uma gargalhada: “Fiquei realmente irritado com aquele livro. E penso que não fui o único.”

Entretanto, os jornalistas de todo o mundo, que também podem ser bastante contenciosos, encontram unanimidade num único ponto: adoram o nome “partícula de Deus”.

Uma das apostas mais seguras no mundo é que, se encontrar um artigo na imprensa popular sobre o bosão de Higgs, o artigo vai chamar-lhe a certa altura “partícula de Deus”.

É difícil culpar os jornalistas. Se pensarmos bem, “partícula de Deus” é um grande achado, enquanto “bosão de Higgs” é um pouco incompreensível. Mas também não podemos culpar os físicos. O Higgs não tem nada a ver com Deus. É apenas uma partícula muito importante, uma partícula com a qual vale a pena ficar entusiasmado, ainda que esse entusiasmo não esteja ao mesmo nível que o êxtase religioso. Vale a pena compreender por que razão os físicos se sentem tentados a conceder um estatuto divino a esta humilde partícula, ainda que ela esteja na realidade livre de qualquer implicação teológica. (Alguém pensará mesmo que Deus tem partículas favoritas?) 

A mente de Deus


Os físicos têm uma relação longa e complicada com Deus. Não apenas com o hipotético ser omnipotente que criou o Universo, mas com a própria palavra “Deus”.


Quando falam do Universo, tendem a usar a ideia de “Deus” para expressar coisas sobre o mundo físico. Einstein era famoso por isto. Entre as citações mais vezes repetidas deste cientista eminentemente citável estão: “Só quero conhecer os pensamentos de Deus, o resto são pormenores” e, claro, “estou convencido de que Deus não joga aos dados com o Universo”.

Muitos de nós têm caído na tentação de seguir as pegadas de Einstein. Em 1992, um satélite da NASA chamado Cobe (Cosmic Background Explorer — Satélite de Exploração do Fundo Cósmico) deu-nos imagens fantásticas de pequenas ondulações na radiação de fundo deixada pelo Big Bang. A importância do acontecimento levou George Smoot, um dos investigadores do Cobe, a dizer: “Se forem religiosos, é como ver Deus.” (…)

Historicamente, alguns dos físicos mais influentes do mundo têm sido bastante religiosos. Isaac Newton, indiscutivelmente o maior cientista de sempre, era um cristão devoto, embora algo heterodoxo, que passou tanto tempo a estudar e a interpretar a Bíblia quanto passou à volta da física.

No século XX temos o exemplo de Georges Lemaître, um cosmólogo que desenvolveu a teoria do “Átomo Primordial” — que é hoje conhecida por “modelo do Big Bang”. Lemaître era sacerdote, bem como professor da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. No modelo do Big Bang, o nosso Universo observável começou num momento singular de densidade infinita há cerca de 13,7 mil milhões de anos; na perspectiva cristã, o nosso Universo foi criado por Deus num dado instante do tempo. Existem paralelos óbvios entre as duas histórias, mas Lemaître foi sempre extremamente cuidadoso em não misturar a sua religião com ciência. A dada altura, o Papa Pio XII tentou sugerir que o Átomo Primordial poderia ser identificado com o “faça-se a luz” do Génesis, mas o próprio Lemaître o persuadiu a abandonar essa linha de pensamento.

Hoje, no entanto, a maioria dos físicos no activo é muito menos propensa a acreditar em Deus do que o público em geral. Quando se estuda o funcionamento do mundo natural como profissão, tende-se a ficar impressionado com o modo como o Universo se orienta sozinho, sem qualquer auxílio sobrenatural. Existem certamente exemplos preeminentes de físicos religiosos, mas, com a mesma certeza, o trabalho dos físicos avança sem que se permita nas equações nada que vá além do mundo natural.

Conversa divina

Então se os físicos não são grandes crentes em Deus, por que é que continuam a falar sobre Ele? Há duas razões, na realidade: uma boa, outra nem tanto.

A boa razão é simplesmente que Deus proporciona uma metáfora muito conveniente para falar sobre o Universo. Quando diz “só quero conhecer os pensamentos de Deus”, Einstein não está a pensar no ser sobrenatural que o Papa imagina. Está a expressar um desejo interior de compreender os mecanismos fundamentais da realidade. Existe um facto espantoso sobre o Universo: faz sentido. Podemos estudar o que acontece à matéria em várias circunstâncias, e encontramos regularidades surpreendentes que nunca parecem ser violadas. Quando essas regularidades são estabelecidas como reais para lá de qualquer dúvida razoável, chamamos-lhes “leis da Natureza”.

As leis reais da Natureza são muito interessantes, mas também é interessante que existam sequer leis. As leis que descobrimos até à data têm a forma de enunciados matemáticos precisos e elegantes. O físico Eugene Wigner ficou tão comovido com esta característica da realidade, que falou da “eficácia irracional da matemática na física”. O nosso Universo não é apenas uma miscelânea de coisas a fazer coisas aleatórias: é uma evolução altamente ordenada e previsível de constantes constituintes da matéria, e uma dança intricadamente coreografada de partículas e forças.

Quando falam metaforicamente de Deus, os físicos estão simplesmente a ceder à natural tendência humana de antropomorfizar o mundo físico — dar-lhe uma face humana. “Pensamentos de Deus” é um código para designar “as leis fundamentais da Natureza”. Queremos saber que leis são essas. De forma mais ambiciosa, queremos saber se essas leis poderiam ter sido diferentes – as leis da Natureza são apenas um conjunto entre muitas possíveis, ou são algo único e especial do nosso mundo? Podemos ser capazes ou não de responder a essa grande questão, mas ela é o tipo de coisa que estimula a imaginação dos cientistas.

A outra razão pela qual os cientistas sucumbem à conversa divina é um pouco menos nobre: relações públicas. Chamar ao bosão de Higgs “partícula de Deus” pode ser descontroladamente impreciso, mas é “marketing” de génio. Os físicos reagem ao rótulo de “partícula de Deus” com horror e desdém. Mas ele faz arregalar os olhos, e é por isso que continuará a ser usado, apesar de os jornalistas de ciência saberem exactamente o que os físicos pensam da expressão.

O nome “partícula de Deus” leva as pessoas a prestarem atenção. Uma vez que toda a gente conhece a expressão, não há maneira de não ser usada por todos os que tentam explicar este conceito esotérico a um público com outras exigências de atenção. Diga que está à procura do bosão de Higgs e muitas pessoas mudarão de canal — quem sabe se os Kardashians não fizeram algo pouco conveniente? Diga que está à procura da partícula de Deus e as pessoas vão pelo menos prestar atenção enquanto explica o que quer dizer. Os Kardashians vão continuar lá amanhã. (…)

A peça final

Lederman e Teresi não chamaram ao bosão de Higgs partícula de Deus apenas porque sabiam que o nome atrairia atenção (apesar de essa perspectiva provavelmente lhes ter passado pela cabeça). Afinal, a nomenclatura extravagante atraiu tanto má atenção quanto boa. Como disseram no prefácio de uma edição revista do livro: “O título acabou por ofender dois grupos: 1) os que acreditam em Deus e 2) os que não acreditam. Fomos calorosamente recebidos pelas pessoas que estão entre os dois.”

O que tentaram fazer foi expressar a importância do bosão de Higgs. O livro que está a ler agora tem um título um pouco mais modesto... mas apenas um pouco. Para ser honesto, os físicos não reagiram com uma aprovação desmedida quando lhes falei sobre A Partícula no Fim do Universo. Tanto quanto sabemos, o Universo não tem fim, seja ele uma localização no espaço ou um momento futuro no tempo. E, mesmo que existisse uma localização a que se pudesse chamar o fim do Universo, não havia razão para pensar que encontraríamos uma partícula lá. E, se a encontrássemos, não haveria razão para pensar que ela seria o bosão de Higgs.

Mas, mais uma vez, trata-se de uma metáfora. O Higgs não está localizado no “fim do Universo” espacial ou temporal — está localizado no fim explicativo do Universo. É a peça final do puzzle de como a matéria comum que constitui o nosso quotidiano funciona a um nível profundo.

É melhor fazer rapidamente umas ressalvas, antes que os meus colegas físicos se chateiem outra vez. O Higgs não é a peça que falta ao puzzle de absolutamente tudo. Descobrir o Higgs e medir as suas propriedades não significa que não reste muita física por compreender. Para começar, existe a gravidade: é uma força da Natureza que não conseguimos conciliar bem com as exigências da mecânica quântica, e não esperamos que o Higgs dê alguma ajuda nisso. Existem também a matéria negra e a energia escura, substâncias misteriosas que impregnam o Universo e ainda assim resistiram a detecção directa aqui na Terra. Existem também outras hipotéticas partículas exóticas, do género das que os físicos teóricos adoram inventar, mas para as quais ainda não temos nenhuma prova experimental. E, depois, nem seria preciso dizê-lo, existem as partes da ciência que apresentam os seus próprios desafios, que não dependem fundamentalmente da física de partículas — desde a física atómica e molecular, passando pela química e pela biologia e geologia, até à sociologia e à psicologia e economia. O desejo humano de compreender o mundo não vai atingir uma conclusão triunfante apenas porque descobrimos o bosão de Higgs.

Agora que tratámos destes assuntos, voltemos a enfatizar o papel singular do Higgs: é a parte final do Modelo-Padrão da física de partículas [que descreve todas as partículas de que já ouvimos falar]. O Modelo-Padrão explica tudo o que vivemos no nosso dia-a-dia (excepto a gravidade, que é bastante fácil de juntar). Quarks, neutrinos e fotões; calor, luz e radioactividade; mesas, elevadores e aviões; televisores, computadores e telemóveis; bactérias, elefantes e pessoas; asteróides, planetas e estrelas — todos aplicações do Modelo-Padrão a circunstâncias diferentes. Temos uma teoria completa da realidade imediatamente discernível. E tudo se encaixa lindamente, passando uma desconcertante variedade de testes experimentais, se o bosão de Higgs existir. Sem o Higgs, ou algo ainda mais bizarro no seu lugar, o Modelo-Padrão não passaria os testes. (…)

Durante muito tempo não o vimos [bosão de Higgs do Modelo-Padrão] directamente, mas vimos os seus efeitos. Ou, ainda melhor, vimos as características do mundo que fazem sentido se ele existir, e não fazem sentido se ele não existir. Sem o bosão de Higgs, partículas como o electrão teriam massa zero e deslocar-se-iam à velocidade da luz; mas, em vez disso, têm massa e deslocam-se mais devagar. Sem o bosão de Higgs, muitas partículas elementares pareceriam idênticas, mas, em vez disso, são manifestamente diferentes, tendo uma variedade de massas e tempos de vida. Com o Higgs, todas essas características da física de partículas fazem sentido.

Em circunstâncias como estas (…), existem duas opções: a nossa teoria está certa, ou uma teoria ainda mais interessante e elaborada está certa. Os efeitos estão lá — (...) as partículas têm massa. Tem de haver uma explicação. Se for a mais simples, congratulamo-nos pela nossa inteligência; se for outra mais complicada, teremos aprendido algo muito interessante. Talvez a partícula que descobrimos no LHC [grande acelerador de partículas na fronteira entre a França e a Suíça, onde foi detectado o bosão de Higgs em 2012] faça parte do que julgamos que o Higgs faça, mas não tudo; ou talvez o papel do Higgs seja desempenhado por várias partículas, das quais apenas observámos uma. Ganhamos de qualquer das maneiras, desde que consigamos descobrir o que se passa. (…)

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