Para o Podemos, “mais importante que a República é a mudança social”
O director de campanha da força que surpreendeu nas últimas eleições europeias acusa os partidos de serem refúgio de uma oligarquia.
“A discussão da forma de Estado não é neutra, a monarquia está sempre associada ao poder de uma minoria”, afirma. “Num novo processo constituinte, a monarquia, coisa do passado, não será fundamental”, prossegue. “A abdicação do rei foi a manifestação da pressa de uma parte da elite, pois não sabia se no futuro contava com dois terços do Parlamento (necessária para a mudança constitucional) e queria, assim, tentar uma imagem de regeneração”, analisa.
O Podemos, pela experiência de assessoria política do seu grupo dirigente junto do venezuelano Hugo Chávez, adjectivará sempre uma República. Do outro lado do Atlântico, era bolivariana. A sul dos Pirenéus, procura-se uma designação que evite recordações de má memória, como a das repúblicas populares e democráticas.
É nesta encruzilhada de conceitos e temores que o movimento nascido três anos após o acampamento de 15 de Maio de 2011 (15M) nas madrilenas Portas do Sol, procura a sua via. Os 1,24 milhões de votantes, 7,97% de um corpo eleitoral de 36,5 milhões, e os cinco eurodeputados eleitos pelo Podemos surpreenderam a classe política que, também em Espanha, se perde nas guerras dos aparelhos e esquece a rua.
Às calles espanholas, o Podemos foi buscar o cansaço somado à desconfiança. Captou um estado de alma e não propôs um programa. A solução é uma obra em curso, quando os que nele confiaram o voto queriam a urgência de uma resposta. Já foi assim há três anos, quando o 15M definhou entre intermináveis plenários, tão genuínos como inoperantes. Uma parte do movimento fechou as tendas e foi para os bairros, preferiu a escala da proximidade dos problemas, dos contactos e da vizinhança, ao anonimato da multidão que desembocava nas Portas do Sol em busca de debates.
“O 15M revelou que eram intoleráveis algumas situações, mas não teve repercussão eleitoral”, recorda Iñigo Errejón. O realismo desta constatação morreu na noite do escrutínio eleitoral de 25 de Maio último: “Agora já teve repercussão, temos de nos organizar sem recorrer aos velhos utensílios em detrimento da unidade popular, com as decisões abertas para toda a cidadania.”
Neste salto para a frente, o programa continua difuso. Ou escondido. O momento é de pôr andaimes aos votos com o paradoxo de não querer estruturar um partido. “O futuro do Podemos é ser um utensílio para a mudança política, que a maioria social se transforme em maioria política”, antevê o chefe da campanha de êxito. A origem de Iñigo, e das outras duas principais figuras do Podemos, Pablo Iglésias, de 36 anos, e Juan Carlos Monedero, de 51, é a mesma: vêm dos cursos de Ciência Política e são professores universitários na Complutense, de Madrid.
Há algo de redutor no essencial. O fundamental não é o programa, que implica análise da situação e propostas de solução. A redenção, acredita o núcleo dirigente do Podemos e os que a ele se associaram, é a votação pela Internet, em detrimento do cartão de militante. “A lista para as europeias foi eleita por 33 mil internautas e o congresso constitutivo de Setembro foi votado por 55 mil”, congratula-se Iñigo Errejón.
Mas este invento funcionou. Sondagens recentes, a cavalgar a onda dos bons resultados eleitorais, detectaram uma intenção de voto que colocaria entre 32 e 56 deputados do Podemos no Parlamento espanhol. “Nas eleições Europeias, o PP e o PSOE não somaram juntos 50% do eleitorado, o que nunca acontecera; abriu-se o cenário político”, pondera o chefe daquela campanha.
“O PSOE não representa a mudança pela política que fez e o PP não tem política para apresentar”, acentua. Nada de novo. A frase é engenhosa. Soa a trocadilho publicitário. Aliás, as manifestações do 15M de há três anos acabavam sempre em duas colunas: uma em direcção à calle Génova, a sede dos “populares” de Mariano Rajoy, outra rumo à calle Ferraz, onde moram os socialistas de Alfredo Pérez Rubalcaba.
Já a conclusão é ousada. “O consenso de 1978 (a Constituição aprovada, o Estado das autonomias) tem brechas importantes, mas não se vai desfazer”, admite Iñigo. Reconhece que a crise do consenso fundacional da transição democrática não é mortal, mas classifica-a como crónica: “A continuidade não vai ser possível.” A ruptura não é para já, mas virá.
“Na esquerda, há uma pressão enorme sobre o sistema de partidos”, refere, ao PÚBLICO, Fernando Vallespin, catedrático de Ciência Política. “Se os socialistas não recuperarem e não mantiverem, ainda que artificialmente, o bipartidarismo, haverá um processo de deslegitimação face ao populismo de esquerda do Podemos, que chama casta aos grandes partidos”, sublinha o professor com aulas em Harvard e Heidelberg. “É a típica reacção de uma matriz conservadora, segundo a qual incorporar no discurso exigências populares é demagogia, como se estivéssemos a excitar as massas”, ataca Iñigo. “Uma pequena minoria está a sequestrar o sistema político através de uma oligarquia”, concluiu.