Torna-se claro logo à segunda canção, Gone. Tigerman pregando a fuga como salvação (“I gotta go away / a thousand miles away”), Tigerman como one man band que é aqui banda completa: ritmo primitivo nos timbalões, negro Cramps assinalado nas guitarras e os metais a tornar mais vigorosa, mais urgente, essa fuga enunciada. Metais zumbindo com o sax na dianteira, a guitarra que persiste, o ritmo que não serena e a voz que continua - “I gotta go away”. À segunda canção, percebemos que algo mudou. Já o intuíramos a início, com essa doce Do come home que é lamento folk de uma alma mais serena que angustiada na sua dor – e nunca tínhamos ouvido esta serenidade em Tigerman.
Paulo Furtado anunciou o Legendary Tigerman em Naked Blues, o primeiro álbum, editado em 2002. Doze anos e quatro álbuns de estúdio depois, chega a True. Será, intuímos pelo título, outra forma de se despir. Mas esta verdade não é um regresso às origens em regime lo-fi, pé no bombo e mãos na guitarra. Pelo contrário. Em True, Legendary Tigerman abre a sua música como nunca antes – mesmo Femina, com a companhia de tantas intérpretes diferentes, o que conferia personalidades diferentes às canções, não tinha esta dimensão. Talvez este seja o momento em que Paulo Furtado e a sua criação se fundem por fim e definitivamente, sem hipótese de recuo.
Como sempre, este é um álbum em tom negro (negro noite, negro dos demónios interiores que o habitam). Mas é, também, um álbum de uma riqueza expressiva que o faz destacar-se imediatamente: todas as bases foram gravadas ao vivo no estúdio, mas há todo um trabalho, quer na definição do ambiente sonoro, quer nos elementos sonoros acrescentados (orquestrações, metais, piano), que faz deste disco a obra-prima do homem-tigre.
Em True cabe a celebração dos clássicos com que um músico se constrói: o rock’n’roll fundador no Twenty flight rock de Eddie Cochran, que se cobre do pó nova-iorquino dos Suicide; o rhythm’n’blues insuperável de Green onions, de Booker T & MGs, espaço para cristalizar em estúdio o incendiário duelo Tigerman/Filipe Costa (teclista de Sean Riley & The Slowriders e ex-Bunnyranch) que já víramos em palco (e, com estas duas canções, o Tigerman que se foi construindo nos concertos, traz também essa história para disco). Em True cabe uma Dance craze que é rock’n’roll de marca registada Tigerman (guitarra e bateria em ritmo minimal) até se erguer um coro festivo, sem preocupações com perfeições técnicas, que transforma aquele “Let’s do the bird all night long” em mantra ébrio para repetir noite fora. Em True cabe mais: uma Wild beast de narrador amaldiçoado (“there’s nothing to die for anymore / except for the kill”), marcada pela opulência da orquestração e pelo piano sinistro, cortesia de Filipe Melo, que a colocam próxima da dimensão perturbadora de um From her to eternity.
Álbum de sombras de neblina, álbum de rock’n’roll como festa e catarse (Twenty First Century Rock’n’roll), álbum onde cabe a tal serenidade que antes não ouvíramos em Tigerman (My heart, safe at home é a canção-de-embalar que o confirma), True terminará com o tema eterno desta one-man-band, a vida como fuga constante, no dueto com Rita Redshoes (I’m on the run, com o som espectral da auto-harp a enfeitiçar a ponte para o refrão). Terminará verdadeiramente uma canção depois, a décima terceira, com Is my body dead? Música como fantasmagoria: blues como eco propagado até ao infinito, o ruído constante da cidade abandonada de gente como pano de fundo, o ritmo ecoando saturado, qual assombração que a voz, num quase sussurro, torna real.
“Sometimes it feels like my body is dead, but my soul is on fire”, repete Tigerman. Ouvimo-lo, ouvimos as vozes de outros e outras repetindo a mesma frase. Em português, em castelhano, em italiano, em japonês, em norueguês. Canção sem fim, poeira sonora que nos envolverá, mais e mais, até perdermos Legendary Tigerman de vista. Partiu novamente. Deixou um disco. O seu melhor.
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