A marca do coleccionador

O anúncio da sua criação surgiu em 2008. Mas foi só agora, há cerca de dois meses, que a Oliva Creative Factory abriu as portas, com uma dupla vocação: albergar e expor a extensa colecção de arte do casal Norlinda e José Lima, por um lado, e sedear uma série de iniciativas culturais que nos extensos espaços da antiga fundição se poderão concretizar. Coisa feita, agora, com uma apresentação dos resultados de uma residência dedicada ao desenho no primeiro piso (Oliva Rewind Fine Arts) e uma selecção feita por Miguel Amado no extenso acervo da colecção de arte. E é sobretudo aqui que as surpresas, todas boas, se concretizam.

Traço Descontínuo foi o nome escolhido pelo comissário para esta apresentação. A colecção, na realidade, ultrapassa já o milhar de peças, de que aqui se exporão um quinto, se tanto. Como outras colecções, surgiu da vontade e do gosto do empresário José Lima, aliados às oportunidades que o mesmo encontrou nas muitas viagens que realizou. Sempre dispensou um conselho de curadores. Este facto não só está subjacente à própria natureza do acervo, como determina também a sua especificidade: uma colecção que se distingue de todas as outras que, sendo particulares, gozam de visibilidade numa instituição estatal ou municipal. Pensamos, muito obviamente, na colecção Berardo e António Cachola, a primeira em exposição no CCB, a segunda no MACE de Elvas.

Desde logo, essa diferença assenta no critério que presidiu (e preside) ao próprio acto de coleccionar. Guiando-se pelo seu gosto, comprando sem um fito outro que não seja o de encontrar a obra que “questionasse a realidade” e o fizesse sentir “um novo estado de alma”, José Lima não se preocupou em constituir sequências geracionais, estilísticas ou regionais, como é o caso dos dois outros coleccionadores mencionados. O seu impulso tanto o levou a adquirir um Serge Poliakoff ou uma Maria Helena Vieira da Silva, ambos da Escola de Paris, como a peça de um jovem artista moçambicano ou sul-africano feita a partir de pneus reciclados. E no arco temporal estabelecido entre estes dois extremos (ou seja, entre o imediato pós-segunda guerra mundial e a actualidade), cabe uma selecção ecléctica, onde o curador destaca grupos coesos, como o KWY (com um surpreendente Jan Voss, entre os outros nomes mais conhecidos), o El Paso espanhol e a Nouvelle Figuration francesa. Os portugueses são maioritários e traduzem o gosto de José Lima, que tanto opta por Júlio Pomar com por Helena Almeida, sem descuidar as gerações mais novas: tem destaque na montagem uma impressionante escultura de Miguel Palma, por exemplo.

Contudo, a mesma montagem, surpreendentemente diferente das associações a que estamos habituados, destaca semelhanças e distâncias muito interessantes. José de Guimarães, por exemplo, surge lado a lado com a Pop, ao passo que o mesmo Júlio Pomar já referido esté no mesmo espaço que um Malangatana, destacando simultaneamente o ascendente que o modernismo internacional exerceu sobre o último e o gosto pela arte primitiva presente em certas séries do primeiro. Num espaço mais rectado, uma espécie de cabinet d’amateur expõe peças e autores que trabalham a imagem do corpo por vezes até aos limites do erotismo. Julião Sarmento está neste grupo, mas também Andres Serrano ou Cindy Sherman. Uma selecção de artistas oriundos dos novos pólos e continentes da arte contemporânea completam a selecção.

No conjunto, e apesar de algumas falhas menores na organização, próprias de uma estrutura que ainda está nos seus inícios, este é um excelente exemplo daquilo que é possível apresentar em termos de arte contemporânea fora dos centros de Lisboa e do Porto: uma boa colecção de arte, que divide esforços com a autarquia na sua promoção e divulgação. E, neste caso, servida também por uma curadoria exemplar, onde também se nota o gosto pela investigação de formas de expressão artística pouco habituais que Miguel Amado sempre demonstrou possuir. 

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