Passaram 20 anos. Era óbvio que isto ia acontecer. Isto, a edição comemorativa de In Utero, o último álbum de estúdio dos Nirvana. E é de uma verdadeira edição comemorativa que se trata: versão deluxe com caixa-livro em dimensão de vinil e três CD e um DVD dentro; CD duplo com o álbum original, mais o álbum remasterizado para esta ocasião, lados B e demos. A data está, portanto, devidamente assinalada e celebrada. Mas ouvimos a nova remasterização, para a qual se reuniram Dave Grohl, Krist Novoselic e Steve Albini e que nos devolveria a visão original do produtor, ele que em 1993 se recusou a alterar as misturas para alguns dos singles, tal como desejado, por razões diferentes, pelos Nirvana e pela editora (Scott Litt, nome ligado aos R.E.M., acabaria por fazê-lo), e, solo alterado de Heart-shaped box por Dumb com violoncelo mais apagado na mistura (má ideia, de resto), ficamos com alterações marginais que em nada alteram a nossa visão do álbum. Material para fãs obcecados. Tempo perdido, portanto.
Mas o que nos oferece mais a nova edição de In Utero? Versões demo de canções como Radio friendly unit shifter ou de All apologies que não passam de curiosidades, uma Forgotten tune que se percebe porque ficou esquecida e uma Jam que prova que os Nirvana admiravam outro power trio célebre, a Jimi Hendrix Experience. Material típico de edições comemorativas: ouvimo-lo uma vez para não mais regressar. Para além disto, há o obrigatório concerto, registado no Pier 48 em Seattle, em 13 de Dezembro de 1993, e disponibilizado em CD e DVD na edição deluxe (também existe edição autónoma no segundo formato), que é mais uma peça para juntar aos registos de concerto da banda e para comprovar o portento que eram em palco.
Felizes por reencontrar canções como a tão simples quanto perfeitinha Sappy, a cómica, escatológica e berrada Moist vagina ou Marigold, balada delicada gravada por Dave Grohl quando ainda estávamos longe de o imaginar futuro rei de estádio com os Foo Fighters, pesamos tudo e o que temos? O regresso ao que interessa, a In Utero, o último álbum dos Nirvana, assombrado pelo que veio depois. O melhor disco que gravaram Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl. Uma obra-prima de ira e negrume rock''n''roll. Uma obra-prima, simplificando.
O arranque do álbum era todo um programa: “Teenage angst has paid of well/ Now I''m bored and old” (Kurt Cobain tinha 26 anos e vivia há dois, uma eternidade, no estrelato). A guitarra queima e os graves do baixo enchem o som, colados ao bombo da bateria. Há um refrão que se canta, muito pop, como sátira recheada de bílis: “Serve the servants, oh no”. Isto é apenas o início. Isto e a guitarra metralhadora e a batida violenta de Scentless apprentice, a segunda canção, punk abrasivo, música sem cedências: “Go away”, berra uma vez e outra e outra Kurt Cobain. Sete meses depois, naturalmente, aquele grito ganharia toda uma outra ressonância. Tal como a ganharia o ambiente sinistro de Heart-shaped box, que quem era adolescente na década de 1990 não consegue hoje separar do Cristo velho e carcomido e do imaginário mórbido de respectivo teledisco. Tudo aponta, porém, para que Cobain estivesse vivo quando berrou “Go away” e quando idealizou o vídeo de Heart-shaped box. Vivo quando fez de In Utero o álbum que separaria as águas, eliminando do radar da banda aqueles que abraçaram Nevermind sem perceberem nada do que nele se passava.
No texto que acompanha esta reedição, o comediante Bobcat Goldthwait, que acompanhou os Nirvana como mestre-de-cerimónias na digressão de In Utero, conta-nos de concertos em que, quando o ambiente se tornava demasiado agressivo, culpa de alguns, citamos, “idiotas movidos a testosterona”, a banda punha de lado as guitarras eléctricas, puxava das acústicas e irritava a “mitralhada” tocando sentada na cabeça do palco. Em In Utero, o álbum, não encontramos destas provocações bem-humoradas. Nele, os Nirvana devolveram-nos, mais grotesco e distorcido e com um íntimo dilacerado, o pulsar geracional captado no já distorcido mas pouco grotesco Nevermind.
Vinte anos depois, Rape me continua a ser a pior canção do álbum, mas com um sentido óbvio: é um autoplágio do passaporte para o sucesso, Smells like teen spirit, adornado com título provocador. Vinte anos depois, estas canções não perderam nenhum do seu poder. Música negríssima e conturbada em que as guitarras mal contêm o feedback, em que a tentação pop, sempre presente, apesar da virulência da música, é sabotada pelo desconforto cantado - “I missed the comfort in being sad”, em Frances Farmer; “Give me a Leonard Cohen afterworld/ So I can sigh eternally”, verso de génio de Pennyroyal tea.
Em In Utero, o riff nas margens do metal de Milk it, a guitarra serra-eléctrica e os dois minutos de feedback de Radio friendly unit shifter (o título, é obviamente, uma piada) ou a ferocidade hard-core de Tourette''s - música furiosa, zangada, deprimida, vivíssima. Vinte anos depois, continuamos desprotegidos perante Dumb e aquele momento em que, depois dos versos “we''ll float around/ hang out on clouds/ then we''ll come down/ have a hangover”, a canção sobe, tocante, com o violoncelo, enquanto o mundo desaba. E continua a sensação de bonança na despedida com o vogar acústico de All apologies, violoncelo de crepúsculo protegendo as vozes que repetem como mantra “all in all is all we all are”.
In Utero foi o último disco de estúdio dos Nirvana. Um impressionante manifesto de independência, um visceral e inspiradíssimo pedaço de história rock''n''roll. Quando Kurt Cobain morreu em Abril de 1994, o álbum tornou-se o labirinto onde todos procuraram (e encontraram) uma carta de suicídio. Agora que é lançada a obrigatória edição comemorativa, esquecemos a simbologia que, inadvertidamente, lhe foi colada por um tiro de revólver, Atravessamos rapidamente as novidades da reedição e escolhemos o caminho mais simples. In Utero é um dos grandes álbuns da história do rock. A nota máxima é para as suas 13 canções.