Há muito que não se assistia a um tal delírio num concerto de música clássica. Ou talvez um tal grau de expansibilidade, comparável à atmosfera de um concerto rock, seja mesmo inédito na história recente do ciclo Grandes Orquestras Mundiais.
Gustavo Dudamel ainda não tinha entrado no palco para dirigir a sua gigantesca Orquestra Sinfónica Juvenil Simón Bolívar e já se sentia na sala uma atmosfera de efervescência, bem contrastante com a atitude mais convencional e circunspecta do público do Coliseu que costuma alimentar o coro de tosses entre andamentos...
Já se sabia que Dudamel era um fenómeno de culto e a sua actuação em Lisboa veio reforçar essa convicção. Mas não se trata apenas da poderosa carga mediática que o rodeia e do extraordinário projecto social e cultural criado na Venezuela em torno de uma rede de 250 orquestras infantis e juvenis que dão a jovens que vivem no limiar da pobreza a oportunidade de seguir uma carreira musical (ver ípsilon de 24/4).
Aos 28 anos, o maestro venezuelano é um caso raro de talento precoce numa área tão exigente como a direcção de orquestra nas mais altas esferas do circuito internacional e os jovens músicos da Símon Bolívar (com idades entre os 12 e os 26 anos) deveriam servir de exemplo a muitas orquestras profissionais, cujos instrumentistas nos dão por vezes a sensação de serem funcionários cinzentões a cumprir uma burocrática tarefa. É comovente a sua entrega sem limites, a forma como reagem às indicações do maestro em perfeita simbiose expressiva e a solidez técnica que demonstram.
Quase custa a acreditar na coesão que Dudamel conseguiu na primeira parte do concerto (com obras de compositores sul-americanos como Silvestre Revueltas, Antonio Estévez e Evencio Castellanos), tendo em conta que se trata de uma formação com mais de 150 músicos. Há uma vertente de impacto imediato pelo volume sonoro, mas a própria qualidade do som, que é muito denso e caloroso nas cordas e de grande colorido nos sopros e na percussão, causa espanto.
Em disco ainda podíamos duvidar (pois a tecnologia hoje tudo consegue), mas a audição ao vivo fez certamente render os mais cépticos. A Símon Bolívar tem uma identidade sonora própria que não se confunde com a de outro agrupamento.
Ver Dudamel dirigir é um espectáculo dentro do espectáculo. A géstica é ampla, generosa e dançante, mas nunca é gratuita ou exibicionista, pois cada indicação tem um resultado musical imediato quase "palpável". A sua concepção das obras não é a de um arquitecto, mas o maestro venezuelano é um escultor do som e também uma espécie de dramaturgo. Viaja ao sabor do seu instinto, conduzindo-nos numa sucessão de acontecimentos que mantêm o ouvinte sempre atento, e sabe moldar tensões e clímaxes de forma empolgante.
Obras como Sensemayá, de Revueltas, que tal como a Sagração da Primavera relata um ritual primitivo e propõe uma estética modernista, ou a festiva Santa Cruz de Pacairigua, de Castellanos, pedem o lado exuberante que se tornou a imagem de marca de Dudamel e da sua orquestra, mas é pena que a formação não desenvolva um trabalho mais aprofundado em torno de repertório que exige outro refinamento e subtileza.
Estamos até certos de que os resultados seriam igualmente bons, pois os belíssimos pianíssimos e as atmosferas criadas em Mediodia en el Lllano, de Antonio Estévez, fazem adivinhar que sim. Não se trata apenas de evitar a limitação de ficar colado a um determinado perfil (o da energia electrizante, da propulsão rítmica e da força dinâmica) e a um certo repertório. Precisamente porque estes jovens têm tanto talento e uma preparação técnica invejável, o seu potencial deve ser desenvolvido através das mais diversificadas experiências estéticas.
Muitos dos instrumentistas brilharam na primeira parte, dedicada aos compositores latino-americanos, em vários solos de óptimo nível, tanto nas cordas como nos sopros, mas na Sagração da Primavera as coisas nem sempre estiveram completamente sob controlo, a começar logo pelo emblemático solo de fagote inicial, mais à frente repetido correctamente.A revolucionária obra de Stravinsky é dificílima, mesmo para orquestras profissionais com muitos anos de experiência, e houve algumas descoordenações. O equilíbrio entre os naipes (sobretudo nos sopros) também foi menos apurado e uma obra desta complexidade requeria uma concepção da arquitectura do conjunto mais vincada.
Todavia, os desajustes não põem em causa a qualidade global deste projecto e foram compensados pela energia visceral da interpretação, que atingiu o rubro em pontos como a Dança da Terra ou a Dança Sacrificial. O entusiasmo juvenil, os ataques incisivos, os bárbaros fortíssimos e a força telúrica de algumas passagens estiveram em conformidade com o espírito da obra.
Depois veio a festa total. As luzes apagaram-se e quando se voltaram a acender o palco foi invadido pelas cores da bandeira da Venezuela, dos blusões e bonés que todos os instrumentistas tinham entretanto vestido. Ao longo dos contagiantes ritmos sul-americanos do encores os músicos levantaram-se, fizeram dançar (literalmente) os seus instrumentos e começaram a atirar os bonés e blusões para o público, que ficou ainda mais eufórico.
O episódio é recorrente e pode ver-se no YouTube em diferentes concertos da Simon Bolívar pelo mundo fora, mas a sensação foi de surpresa total. O milagre maior não foi porém esta delirante dança de cores final, mas sim o notável trabalho desta orquestra de jovens cheios de vida e a forma como conseguiram transmitir aos presentes a sua incandescente paixão pela música.