Uma sedutora sombra

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Paulo Pimenta

Quando a crítica começou a reparar no trabalho de Rogério de Carvalho, já o encenador havia decidido que o teatro era a forma de se relacionar com a solidão em que vivia. “Falar de Rogério de Carvalho é falar do amor pelo teatro, quer trabalhe como amador quer como profissional”, escreveu Carlos Porto em 1984, referindo-se a “um caso único em Portugal”, o deste “professor liceal que antes do 25 de Abril criou belos espectáculos contestatários e, depois, continuou calmamente a construir espectáculos que ficam ao lado do melhor teatro que se faz”.

Nessa altura, Rogério de Carvalho já havia ganho o prémio da crítica para a melhor encenação com o espectáculo Tio Vânia, de Tchékhov, no Teatro da Caixa (1980), e o teatro parecia uma escolha irreversível. A curiosidade vinha de longe. Nuno Carinhas lembra-se de o ver, ainda jovem, a propor-se como actor num espectáculo (Luz Fria) do grupo Proscénio, do qual faziam parte os pais do actual director do Teatro Nacional São João. Muitos anos antes de começar a encenar, ainda sem saber que o teatro ia mudar a sua vida mas já o intuindo. E, no entanto, “se tiver outra vida, é anulada por esta, que é a vida dele”.

Carinhas recorda “uma figura discretíssima que estava nos ensaios a gravar os textos”. Ainda hoje Rogério de Carvalho o faz. “É um exercício de memorização que me ajuda”, explica, dando-nos a ouvir a sua voz, pausada, a deixar espaço para que a frase possa ser repetida depois: “Às vezes, quando ao actor falha uma palavra, eu sei fazer a ligação, mas não lhe digo como fazer.” Nuno Carinhas diz que há na relação do encenador com o texto “uma matriz incontrolável que dá uma estrutura à palavra e procura um sentido para a frase”. Essa fidelidade, como lhe chama Carinhas — Rogério prefere “experimentação” —, “coloca os actores numa demanda de sentido, como se houvesse sempre algo para descobrir num texto que lhe é querido e que, para ele, funciona quase como se fosse um mistério”. Não sendo “automaticamente um encenador do corpo”, diz Carinhas, este encenador “da cabeça e da palavra”, como descreve a actriz Carla Miranda, trabalha uma relação de intuição entre o actor e o texto. Paulo Eduardo Carvalho, num breve ensaio sobre o encenador publicado em 2006 na revista Sinais de Cena, falava de “um trabalho minucioso sobre a palavra e as suas sonoridades”, assinado por um homem que acredita que “a palavra tem corpo, respira, sopra...”.

Jorge Andrade, do colectivo Mala Voadora, recorda o convite que lhe fez para inaugurar dez anos de trabalho completados agora. “Lembro-me de ele ter dito que se era para contar a história, a história estava bem contada, mas que o que nós estavamos a fazer era outra coisa”: Nicaragua Prologue tornou-se num dos mais importantes actos fundadores do novíssimo teatro contemporâneo português. A abordagem que o encenador trazia sustentava-se na exploração “das potencialidades esquemáticas ou musicais da língua” e isso interessava a Jorge Andrade, que procurava “uma forma bastante mais especulativa de olhar para os textos”. “Ele chegava ao espectáculo através de uma prática de experimentação e não apenas de análise dramatúrgica, o que nos libertava de qualquer ilustração do próprio texto”.

Nos 50 anos que leva desta vida sem pertencer a um grupo, a uma família ou a uma estética, Rogério de Carvalho permanece misterioso mas dedicado, um cúmplice presente mas que se observa. E que observa os outros. “O método dele leva-nos, claramente, à exaustão, até perdermos as defesas”, conta Emília Silvestre, do Ensemble, uma das companhias com que o encenador mais trabalhou. “Só através da exaustão deixamos de recorrer às defesas do costume.” Rogério chama-lhes “as nossas gavetas”, acrescenta Carla Miranda, do colectivo As Boas Raparigas, de que o encenador é director artístico — depois de ter sido professor das duas fundadoras, Carla e Maria do Céu Ribeiro. “Não podes abrir as gavetas dos teus medos e dos teus receios. Tens de trabalhar com elas, esgotá-las e começar de novo”, revela, descrevendo processos que deixam os actores à beira das lágrimas. “São ensaios violentos porque são espaços de descoberta. Ele não dá tréguas e vai-nos dando indicações que pedem que estejamos muitos disponíveis”, continua Emília Silvestre. “O trabalho de casa de uma peça encenada por ele não é ir decorar texto, é chegar com propostas e depois ouvi-lo dizer: agora faz.” Carla Miranda fala de uma relação translúcida, de consciência e responsabilidade, que vive do teste mas que nunca esmorece. “Ele tornou-se um marco fundamental na nossa vida de actores”, resume Emília. 

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