Patrícia Portela quer saber - e quer mostrar-nos - como é um homem a ter uma ideia. Esse homem é Acácio Nobre, "um fascínio de longa data". E também "um português de referência do início do século XX, mas agora esquecido".
"A colecção privada de Acácio Nobre", que no dia 10 inaugura a rentrée do Teatro Municipal Maria Matos, é uma história que parte de um baú encontrado em casa dos avós de Patrícia, onde estavam fragmentos de textos e maquetas de objectos criados por este "Lumière português, um Steve Jobs precoce, um bio-engenheiro sem par na História e um amante/apoiante acérrimo dos artistas e da arte".
Se Acácio Nobre - esse homem que foi de tal maneira apagado da História que "não aparece no Google" - existiu ou não, é uma pergunta à qual Patrícia não responde. Não responde porque não é isso que importa. "Podemos inscrever-nos em várias correntes. Nas artes decidimos inscrever-nos no paradigma da realidade. No cinema há um momento em que temos o Méliès e temos os Lumière, e nós escolhemos os Lumière, o que eu acho um disparate."
Além disso, continua, "um espólio, a partir do momento em que é encontrado existe." E "se nós decidirmos que o Matisse é um grande pintor, ele é um grande pintor, se decidirmos que não, então ele não existe. A História é um posicionamento nosso. As coisas que nós decidimos que existem, existem. Portanto o Acácio Nobre existe."
Tornado
Sejam, portanto, bem-vindos à cabeça deste homem. No palco estão a encenadora e o actor André e. Teodósio, ele em frente a uma velha máquina de escrever, ela em frente a um computador. Num ecrã vão surgindo os textos que cada um escreve - ele escreve cartas ao secretário de Estado falando da importância da introdução das escolas Froebel em Portugal, da necessidade de ensinar as crianças com jogos que usem peças geométricas, ou de ensinar o desenho também a adultos, para que estes se tornem melhores operários; ela escreve o inventário do que encontrou no baú de casa dos avós.
Entre os rascunhos de cartas e protótipos de brinquedos, havia também um cartão do CAAN e o regulamento deste Clube dos Amigos de Acácio Nobre, em que uma das regras era reunir o maior número possível de objectos concebidos por Acácio Nobre, mantendo-os ao mesmo tempo dispersos, nas mãos de diferentes amigos.
O discurso de Patrícia é tão torrencial como o que vai passar na sala do Maria Matos. E dizemos sala porque, a pouco e pouco, o espectáculo (ou seja, o interior da cabeça de Acácio Nobre) vai alastrando do palco para toda a sala, envolvendo os espectadores num tornado de luz (letras que vão sendo projectadas sobre o público), som (o teclar da máquina de escrever, com maior ou menor intensidade), e até cheiro.
Patrícia, que vive entre Portugal e a Bélgica, tinha já trabalhado o mesmo jogo com letras, sons e imagens na peça "Flatland" (uma triologia de 2006), a partir da história de um homem plano que um dia descobre que lhe falta uma terceira dimensão - e que (tal como vai acontecer com "A colecção privada de Acácio Nobre") se transformou depois num livro, "Para cima e não para Norte". Aliás, os seus espectáculos tendem sempre a escapar do palco e cruzar a performance, com a instalação ou o evento (no projecto "audio-menus", por exemplo, há peças radiofónicas que se podem ouvir durante o tempo de uma refeição).
"Acácio Nobre sofre de afasia. É um homem que consegue escrever mas não consegue falar. Queríamos apresentar o que é a cabeça de uma pessoa que pensa essas coisas todas. Na nossa cabeça somos um todo - da teoria do caos às cartas ao secretário de Estado." Ficamos a saber, entre outras coisas, que, precoce, Acácio Nobre correspondia-se com os irmãos Van Gogh, que todas as fotografias que existiam dele desapareceram, e que um dia a Pide conseguiu infiltrar-se no CAAN.
"Eu escolho o Acácio para falar, por exemplo, destes institutos Froebel que nunca existiram em Portugal. Hoje é tão natural dar uma caneta a uma criança para ela desenhar, mas houve gerações de pedagogos a lutar pelo direito da criança desenhar. Eu pergunto-me quais são as questões pelas quais hoje devemos lutar?".
É uma viagem ao princípio do século, ao princípio de uma série de ideias. Porque a Patrícia Portela interessa esse momento da revolução industrial, o momento em que foi possível começar a pensar coisas que antes não sabíamos que podiam ser pensadas. "Gosto da ideia de espólio porque quando se estuda um espólio estuda-se uma época, uma ideia, como se chegou a essa ideia", explica. "Citamos-nos constantemente a nós próprios, àquilo que achamos que é o nosso legado, aos anos 80, e se calhar podíamos citar muito mais além. As nossas referências têm que ser maiores, o mundo é maior. Nunca no mundo se teve acesso a tanta informação, e ficamos aqui, no fim do rabinho, convencidos de que isto é o novo e de que temos que inventar daqui para a frente." Afinal - e aí está Acácio Nobre para o provar - "todas estas coisas já foram pensadas e esquecemo-nos disso".
Acácio Nobre foi um incompreendido. Talvez a afasia não ajudasse, mas foi sobretudo por estar muito à frente do seu tempo. E do seu país. Agora, aqui, numa sala, rodeados pela criatividade do seu pensamento, mergulhados em palavras, sons, imagens, podemos, diz Patrícia, espreitar por cima do ombro dele e ver o momento em que as ideias começavam a formar-se. E aprendermos também nós a repensarmo-nos. Afinal não seremos todos membros do Clube dos Amigos de Acácio Nobre?