Coimbra volta a ser Aeminium e nós romanos a passear no criptopórtico

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São galerias e galerias solitárias e um tanto desertas. E é por serem assim que apelam à imaginação. Mostra-se pouco e vê-se tudo. Pomo-nos calados a deambular por elas, subterrâneas, e conseguimos vislumbrá-los nitidamente, aos romanos, a passear por lá também. Coimbra volta a ser hoje a cidade romana de Aeminium, onde existe um criptopórtico, uma estrutura que tinha como função suportar o fórum. Dito assim parecem só uns alicerces, mas desenganemo-nos. É uma das mais importantes obras da engenharia e arquitectura romanas no país e uma experiência, da qual pode usufruir a partir de hoje, dia da reabertura ao público do Museu Nacional Machado de Castro. Foram quatro anos de espera.

Constituído por dois pisos, o criptopórtico abre pela primeira vez na totalidade. O piso menos dois nunca esteve visitável, era usado para guardar peças do espólio. Agora, com a ampliação do museu, já foi possível libertar aquele espaço e devolvê-lo ao público.

Comecemos, então, a visita pelo criptopórtico, situado por baixo do que hoje é o Museu Machado de Castro e do que foi outrora o fórum. Quem nos conduz é a nova directora da instituição, Ana Alcoforado. Trata-se de um dos criptopórticos mais importantes do mundo romano, vai contando. Terá sido construído em meados do século I, pelo arquitecto Caio Servio Lupo, para vencer o declive da colina sobre a qual se ergue a cidade e, assim, segurar o fórum.

Apesar de ter uma função muito específica, acredita-se que o conjunto de galerias, em arco, tinha uma utilização quotidiana, sendo bastante frequentado pelos cidadãos. Eventos culturais ou simples passeios no Verão, graças à frescura do espaço, são apenas alguns exemplos: "Poderia servir para acolher espectáculos de teatro, de música, para passeios, feiras... Tinha entradas, era acessível a toda a população", explica Ana Alcoforado, licenciada em História.

Novo fórum

No criptopórtico romano de Aeminium anda-se de pé, o local é amplo, parece uma pequena cidade cheia de ruelas para explorar. "É um conjunto de galerias sobrepostas e abobadadas. É um espaço interessantíssimo", diz Ana Alcoforado, que quer, no fundo, que o novo museu volte a ser um fórum, um "centro cultural" com vida na Alta de Coimbra.

Hoje, para além dos dois pisos do criptopórtico, vai abrir também a zona de exposições temporárias, a bilheteira, a recepção e a loja. As duas mostras que serão inauguradas, com a presença da secretária de Estado da Cultura, Paula Fernandes dos Santos, poderão ser visitadas até à reabertura total do museu, que deverá acontecer no Outono.

Uma das exposições - O Nosso Museu. Olhares Travessos dos Mini-Repórteres - resulta do trabalho desenvolvido por um grupo de jovens que fotografaram vários cenários durante o período das obras.

A outra exposição - De Fórum a Museu. Permanências - mostra "todos os trabalhos de arqueologia que foram feitos, alguns anteriores à obra, outros no âmbito da obra", explica a directora, ligada ao museu há 20 anos. "Esta exposição permitiu-nos conhecer melhor o edifício e, sobretudo, a parte romana, como o criptopórtico, o que nos possibilitou ter uma ideia de como é que seria o fórum romano", nota Ana Alcoforado. Por isso, nesta exposição vai ser apresentada uma imagem virtual do fórum romano, ao que se juntará um conjunto de fotografias e de peças encontradas nas escavações. "O espólio encontrado é diverso, são esculturas, muita cerâmica, e moedas", adianta.

Para assinalar hoje a data, o criptopórtico vai ser palco de uma dramatização do Grupo de Teatro da Liga dos Amigos do Museu Nacional de Machado de Castro. Ao final da tarde, é esperado um momento musical, com o Quarteto de Saxofones Cortisax e, à noite, o criptopórtico volta a receber o público, para assistir a uma criação da companhia Bonifrates, um recital de poesia, com textos de Fernando Pessoa.

Projecto de Byrne

Por hoje é tudo, mas espera-se muito mais lá para o final do ano. A primeira fase das obras de requalificação do Museu Nacional de Machado de Castro - um projecto da autoria de Gonçalo Byrne orçado em cerca de 11 milhões de euros, co-financiado pelo Programa Operacional da Cultura - só fica concluída no segundo semestre de 2009.

Aí sim, vai poder ver um Museu de Machado de Castro totalmente novo. Um cruzamento entre linhas contemporâneas e romanas. Agora sim, diz Ana Alocoforado, existem outras condições para expor o espólio da instituição. "Este projecto é de requalificação e de ampliação, tínhamos necessidade de ter mais espaço. Neste momento, o edifício está com espaços muito mais clarificados e definidos. Temos condições de acolhimento que não tínhamos. A grande novidade vai ser essa, as condições de acolhimento que o público vai ter", nota a directora, acrescentando que o próximo passo é "executar o programa de museologia", dispor as colecções pelo espaço.

Depois ainda há uma outra fase que só deverá estar pronta em 2010 (no centenário do museu). Nesta segunda etapa, a Igreja de São João de Almedina - neste momento a funcionar como zona de reserva para guardar muitas das peças - será transformada no auditório do museu.

Porém, se tudo correr bem, no Outono já deverá poder visitar a exposição permanente, que vai reunir as peças de referência do museu, instituição que detém um importante espólio no que toca a escultura, cerâmica, ourivesaria e artes decorativas. "Vamos ter colocados todos os objectos num contexto muito mais adequado do ponto de vista arquitectónico. Vamos ter a escultura da Renascença toda reunida em torno da Capela do Tesoureiro. A parte romana vai estar exposta no criptopórtico. Tentámos criar esta harmonia entre a arquitectura e as colecções", explica Ana Alcoforado.

A Capela do Tesoureiro - zona do museu que era aberta e agora passa a estar coberta - vai ficar totalmente modificada. "Vai parecer a nave de uma igreja", diz Ana Alcoforado. É lá que vão ficar os retábulos da Renascença e a escultura em pedra do pré-românico até à Renascença. A cerâmica, a pintura e a ourivesaria vão integrar outra zona do museu. Vai haver também uma ala - com tectos mudéjares do século XV que vieram da Igreja da Sé Velha, em Coimbra - apenas dedicada às artes decorativas (têxteis e mobiliário). No último trimestre do ano, vai poder também usufruir da cafetaria, com uma soberba vista sobre os telhados da Alta da cidade até ao rio Mondego.

Paço episcopal

Antigo paço episcopal, o museu sofreu inúmeras transformações ao longo dos tempos, mas nenhuma foi tão profunda como a actual. A história deste espaço, como já vimos, começa muito antes, ainda por cá andavam os romanos, mas recuemos apenas até 1910, altura em que, à semelhança de outros, o paço passa para a tutela do Estado e se decide que será um museu.

Fazem-se obras nessa altura e, mais tarde, outras. Mas, segundo Ana Alcoforado, nunca houve um verdadeiro projecto de adaptação do espaço a museu - criado em 1911 e aberto ao público em 1913.

Quando abriu, expunha um conjunto de peças oriundas do Museu de Arqueologia do Instituto de Coimbra. "Depois, foram acrescentadas peças do tesouro da Sé, de vários coleccionadores particulares e foram sendo adquiridas outras... embora o grande núcleo seja oriundo dos mosteiros e conventos", conta a directora.

Hoje, o Museu Nacional Machado de Castro tem um dos mais relevantes espólios de escultura em Portugal: "Temos talvez o núcleo mais importante de escultura portuguesa, porque Coimbra tem uma grande tradição escultórica e, portanto, este museu é o reflexo do que é Coimbra e a região. É um marco nacional e internacional", diz.

"Tem um espólio variadíssimo, de natureza quase exclusivamente religiosa, arte sacra. No entanto, temos uma variedade imensa de colecções: pintura, escultura, cerâmica, têxteis, artes decorativas. Por feliz coincidência, este edifício está sobre uma estrutura romana. Por isso, o horizonte temporal das colecções vai desde o século I, das peças romanas, ao século XX", explica Ana Alcoforado, para quem o museu assume "uma dimensão muito importante na História da Arte".

Entre todas as colecções, a directora destaca as de escultura e de joalharia e admite uma predilecção pelo Retábulo da Natividade, das Oficinas de Antuérpia, e pela pintura do artista flamengo Quentin Metsys.

O museu é o museu

Para além das peças, o próprio edifício do museu também podia fazer parte da exposição permanente. "Costumamos dizer a brincar que o museu é o museu", diz Ana Alcoforado. "O edifício é quase um museu de arquitectura, repositório de várias épocas de construção, de inúmeros momentos arquitectónicos", explica, salientando que umas das transformações arquitectónicas mais importantes que o edifício sofreu foi no século XVI, com a construção da loggia.

Claro que a loggia panorâmica - espécie de varanda, da autoria de Filipe Terzi, ainda hoje o elemento que serve de emblema ao museu - continua lá. Mas há espaços novos neste projecto. Foram construídos dois edifícios de raiz, adjacentes ao museu. Um deles terá dois pisos de exposição e também as reservas do museu e a oficina de conservação e restauro. O outro ficará destinado a gabinetes, biblioteca, sala de direcção e de reuniões. O museu vai, assim, ficar com seis mil metros quadrados de áreas expositivas, dois mil dos quais foram agora acrescentados. A área total do museu deverá rondar o dobro.

Ainda assim, precisa de crescer mais, defende Ana Alcoforado. No discurso de tomada de posse, apesar de satisfeita com o projecto, a directora defendeu que continua a não haver espaço suficiente para um espólio tão vasto. O que a directora, no fundo, gostava era de aumentar o espaço do museu para um prédio e terreno anexo, no Beco das Condeixeiras. Trata-se de uma casa que ficou, agora com a ampliação em curso, emparedada pelo museu. "É um sonho... quero empenhar-me. Tem que haver uma sinergia de esforços. Mas acho que vamos conseguir", diz. E até citou Walter Benjamim: "Os museus são espaços que suscitam sonhos".

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