Um festival de Verão é um festival de Verão é um festival de Verão - a não ser que às duas da tarde de uma sexta-feira (esta sexta-feira) estejamos de mojito na mão dentro de uma piscina em Barcelos a ver o primeiro concerto da quarta edição do Milhões de Festa. Ao contrário dos festivais de Verão que são festivais de Verão que são festivais de Verão, este que começa hoje na tal piscina com os Hill e acaba domingo com Electrelane e Radio Moscow não tem o alto patrocínio de uma operadora de telecomunicações, não tem filas de trânsito, não tem 30 mil pessoas em cima (de momento, o limite não é o céu: são as quatro, cinco mil pessoas que a zona ribeirinha de Barcelos pode acomodar, o que já são milhões para um festival que começou em 2006 num bar do Porto com mais gente a tocar do que a assistir aos concertos) - mas tem uma pequena nação "hipster" com ele. E esta coisa um tanto ou quanto freak - mas mais verosímil do que parece à distância - de querer fazer Barcelona em Barcelos.
Antes de ser esta história colectiva (com um "link" para outra história colectiva, a "cena" de Barcelos), o Milhões de Festa é a história pessoal de Joaquim Durães (o "Fua", no quem-é-quem da "cena"), que em 2004 foi para Barcelona fazer o trabalho final de um curso que nunca chegou a acabar. "Para a apresentação multimédia que tinha de entregar, decidi registar o movimento ‘underground' de Barcelona. Passei lá quatro meses - acho que não falhei um único concerto. Mas aquilo não era só a música, era uma cena em que todo o pessoal se ajudava. Quando regressei ao Porto e comecei a editar aquele material, pensei: ‘Quero ter isto cá e sentir o mesmo'", explica, numa mesa do Café au Lait, no Porto, "set" regular das operações Lovers & Lollypops.
A editora que fundou em 2005, quando desistiu ("era inevitável") do curso, foi a continuação desse instinto por outros meios, mais profissionais do que as "fanzines" que escrevia e editava na escola secundária, ainda em Barcelos - onde já havia ("sempre houve") uma cena mesmo antes de os jornais de fora começarem a escrever sobre ela. Nessa altura, "organizava uns concertos para as festas de lançamento das ‘fanzines'", tipo brinde; com a Lovers & Lollypops começou a editar CD-R (Lobster, Green Machine, Veados com Fome, Tropa Macaca) e acabou a agenciar bandas estrangeiras (isto antes de se atirar para a piscina do Milhões de Festa). "É a lógica natural: editas bandas, organizas concertos para as tuas bandas, depois começas a agenciar concertos de bandas estrangeiras - para mim, isso foi a forma de pôr as minhas bandas em contacto com a força viva do ‘underground' americano e inglês. O Milhões de Festa é o sítio onde conseguimos fazer isso melhor", diz Durães.
Este Milhões de Festa - o quarto, se contarmos com a primeira edição falhada de 2006, "featuring" Riding Panico "e uma série de bandas americanas que ainda hoje são super desconhecidas", e com a segunda, no Censura Prévia, em Braga, que era para ter sido "só uma maneira de juntar toda a gente e dar por encerrado um ciclo de dois anos de Lovers & Lollypops, nunca um festival" - é mais ou menos a Barcelona possível numa cidade portuguesa com 20 mil habitantes e uma câmara municipal que descobriu (através de um artigo do Ípsilon) que tinha uma "cena" no quintal das traseiras. "Em 2010, quando decidimos voltar ao Milhões de Festa e pedimos apoio logístico à Câmara, tivemos a grande sorte de ter acabado de sair no Ípsilon uma reportagem sobre as bandas de Barcelos. O executivo tinha acabado de mudar e gostou da ideia - agora já vemos os vereadores entusiasmados a decidirem que concertos é que vão querer ver. Acabámos por conseguir um apoio financeiro a 50 por cento", conta "Fua", que actualmente organiza o Milhões com mais duas pessoas, o atelier de comunicação Bolos Quentes, um assessor de imprensa e um "intermediário" na Câmara (no resto do ano, coordena a parte editorial da Lovers & Lollypops, faz produção no Plano B e agencia bandas).
Não há filas de gente para entrar no festival nem filas de gente a organizar a coisa, mas há filas de bandas em Barcelos - milhões, mais coisa, menos coisa, incluindo Black Bombaim e Glockenwise, os dois últimos brilharetes da Lovers & Lollypops. "Barcelos tem um sem-número de bandas, mas não tem nenhum palco onde elas possam apresentar-se, nem nenhum evento culturalmente relevante. Foi isso que dissemos à Câmara Municipal", explica o director do festival. Esta é a parte objectiva da história sobre a maneira como isto começou - a parte subjectiva é aquela onde entra um local hero" avistado em tempos em Vilar de Mouros, o Milhões, que nunca ninguém voltou a ver mas ficou imortalizado no nome do festival. Essa parte, que é também a das piadas privadas sobre o "chungwave" (há palestra sobre essa outra "cena", paralela à de Barcelos, com as obrigatórias demonstrações Powerpoint: é amanhã, às 19h, no Bar do Xano), a revista "Vai-se" (versão apócrifa da "Vice"), os cabos, a aeróbica na piscina, a única banda que não pode falhar uma edição que seja do Milhões de Festa (Riding Pânico) e outros mitos urbanos não saberíamos contar - mas é coisa para tratarmos por tu daqui a algumas horas, não muitas (já dissemos que há mojitos?).
A família MilhõesCom os seus cinco palcos, mais os eventos paralelos organizados pela Lula Gigante no auditório da Biblioteca Municipal e pela webzine Bodyspace, que vai pôr (e filmar, para mais tarde recordar) Filho da Mãe no Largo do Apoio e Tigrala na Azenha, o Milhões de Festa é possivelmente o maior pequeno festival do Verão português - e o mais singular. O cartaz não é a cara de uma TMN ou de uma Super Bock qualquer - é a cara da Lovers & Lollypops, para não dizermos a cara do "Fua": "O alinhamento começa por ser uma escolha egoísta - são as bandas que eu quero ver. Mas também não estou alheado do que as pessoas querem ver. Depois há as bandas portuguesas que editámos e que resumem o nosso trabalho no último ano, as que fazem parte da história da Lovers - como os Liars, que marcam o momento em que começámos a ser profissionais da organização de concertos, e uma série de outras que já tinham acabado e que se juntam de propósito só para tocar no Milhões (nuns casos em concertos que serão de despedida, noutros em concertos que serão de relançamento)".
Parte do que se vai passar até domingo entre a piscina e a praia fluvial, entre o Palco Milhões e o Palco Vice, entre os Hill e os Radio Moscow, entre as duas da tarde e as seis da manhã já se passou noutros acontecimentos Lovers & Lollypops: "Há bandas absolutamente incríveis que já trouxemos mas que só tiveram 20 pessoas a assistir - e que sabemos que se forem apresentadas a 500 ou mil pessoas vão ser um sucesso". Essa margem de decisão é o único ponto inegociável para Joaquim Durães: "Não queremos uma marca a apoderar-se do Milhões, e a programação é inegociável. É claro que ter um patrocinador grande podia permitir baixar o preço do festival - para quem organiza e para o público. Já tivemos algumas aproximações, mas o Milhões ainda é muito fresco para que as marcas queiram arriscar. E será sempre um festival para não mais de cinco mil pessoas, um festival familiar em que as pessoas que vão se confundem com as que organizam, as bandas andam no meio público, e parece que toda a gente se conhece - e se não se conhece passa a conhecer-se ao fim de três dias".
Isso, diz "Fua", é uma coisa muito de Barcelos. "O espírito da ‘cena' de Barcelos é muito aquela imagem mítica que temos dos Sex Pistols a tocarem num bar para 50 pessoas, e a seguir essas 50 pessoas formarem as suas próprias bandas. Se o teu vizinho mais velho consegue dar concertos e editar concertos, tu ficas a achar que também consegues. É um efeito bola-de-neve. Eu costumo dizer que toda a gente em Barcelos tem uma banda menos eu". Certo, mas também mais ninguém tem um festival.
Este - e os que hão-de vir, com concertos de manhã e talvez uma noite temática Black Bombaim, a propósito do álbum que vão gravar em 2012, com convidados - é tudo o que Joaquim Durães viu em Barcelona, mas concentrado num fim-de-semana e com piscina (que é onde, muito Nanni Morettianamente, imaginamos as Electrelane a tocarem a sua nunca suficientemente idolatrada versão do "I'm on fire" do Bruce Springsteen): "Não há melhor maneira de acordar do que dentro de água a ver um concerto".