"Não conheço muito da cidade. Basicamente, vivo neste gabinete. Tem todas as coisas de que um ser humano precisa: uma harpa acústica, um piano de cauda, uma harpa eléctrica, um sistema de som, dois computadores, muitos livros e CD. Tenho todas as necessidades básicas cobertas neste pequeno espaço e na natureza linda à minha volta". Estamos no gabinete de Zeena Parkins no Mills College, em Oakland, Califórnia, EUA. Desde 2007 que Zeena dá aulas intermitentemente no departamento de Música desta universidade nos arredores de São Francisco, substituindo Fred Frith, histórico guitarrista experimental (o gabinete, na verdade, é de Frith).
Vive no "campus". O cenário de Mills - relvados e árvores gigantescas, edifícios à escala humana, um gabinete pessoal pequeno, mas cheio de música, situado num pachorrento recanto do silencioso departamento - dá-lhe um quadro mental que Nova Iorque, onde passa outra parte do ano, não lhe pode oferecer. Zeena dá-se bem com a vida calma de Mills, onde ensina composição e improvisação, mas foi no frenesim criativo da Nova Iorque dos anos 80 que se tornou uma das personagens mais relevantes da música experimental contemporânea (no currículo tem colaborações com Björk, Fred Frith, Ikue Mori e Yoko Ono, entre outros).
Nova Iorque tinha já assaltado o mundo de Zeena, então uma jovem pianista com educação clássica (em piano e harpa) que vivia em Detroit, quando apareceu "No New York" - a compilação de 1978 com DNA (com Ikue Mori), Contortions, Mars e Teenage Jesus and the Jerks, tudo rock ruidoso, urgente, que desprezava a forma clássicas do que deve ser a música. Espantou-a a expressividade daquele conjunto de músicos sem treino clássico. "Fiquei totalmente seduzida por aquela maneira diferente de fazer música, de pensar música. Nunca pensei que fosse menos importante do que a maneira que eu fazia. Tinha uma energia e uma abordagem tão visceral, que sentia como ouvinte e que imaginava que sentiria também como instrumentista. Era só pegar numa guitarra e tocar - qual é o mal nisso?", recorda.
Aterrou em Nova Iorque em 1985 para estudar numa universidade, e não mais parou. Começou a compor música e a improvisar com as personagens mais importantes da cena experimental da cidade: "Não sabia especificamente o que ia encontrar musicalmente ou como me ia relacionar com isso, mas a partir do momento em que estava lá foi tudo tão claro...". Zeena já tinha tido algumas experiências musicais (num grupo de teatro, por exemplo), mas Nova Iorque ofereceu-lhe várias epifanias. "Estava sempre a ir a concertos de música improvisada. Foi incrível ouvir [John] Zorn a tocar saxofone. Na altura, ele tocava com apitos para caçar patos. Havia pessoas a fazer investigações muito criativas no que tocava a expandir os seus instrumentos - Nic Collins com o seu trombone, o Ben Neill com o trompete, (...) Fred Frith com as guitarras, Tom Cora com o violoncelo, os primeiros usos de caixas de ritmos. Toda a gente estava a fazer combinações, havia música em todo o lado", conta.
Harpa sem limitesNa Big Apple, Zeena experimentou de tudo um pouco ("Estava louca, não me fartava, estava no céu. Foi perfeito para mim"). Foi com os Skeleton Crew, projecto que partilhava com Cora e Frith, que teve a ideia de voltar a tocar harpa - até porque não havia muitos harpistas na cena experimental: "Eu era uma pianista, estudei harpa quando ainda vivia em Detroit. Depois, fui para a universidade e não podia ter uma harpa. Era muito caro. Quando fui para Nova Iorque decidi ser esperta: se trabalhasse numa loja de harpas, talvez me deixassem praticar lá, depois do trabalho. Um ano depois, acabei por comprar uma harpa. Foi uma estratégia perfeita".
Começou a tocar harpa nas primeiras aventuras musicais nova-iorquinas, mas ninguém a ouvia - era engolida pelos outros instrumentos. A harpa eléctrica - se Zeena não foi a sua inventora, foi, pelo menos, a sua principal figura - surgiu dessa necessidade. Não se ficou pela electrificação do instrumento. Inspirada pelos pianos preparados de John Cage, Parkins inventou formas de tocar harpa "com um pau, um papel, borrachas, lâminas". Arranjou uma harpa mais pequena, "não tão preciosa", e começou a desbravar terreno: "Nunca senti que tinha de ser cuidadosa com a harpa, nunca a vi como uma instituição que não pudesse destruir, só a queria explorar. Quando comecei a tocar harpa, soube logo que não queria ser uma harpista clássica. Quando fui para Nova Iorque e vi tantas formas de preparar instrumentos, apercebi-me que a harpa foi feita para ser outra coisa. Tem tanto potencial: pode ser textural, percussiva, não precisa de ser o que sempre foi".
É com a sua harpa eléctrica que Zeena estará este domingo em Serralves, no Porto, no âmbito do programa "Improvisações/Colaborações". O concerto será improvisado a partir de uma partitura gráfica criada por Dave Allen e porá, lado a lado, Zeena e o baterista-prodígio Chris Corsano. Partitura gráfica? A professora do Mills College explica: "São partituras que não incluem toda a informação. Estão semicompostas, não têm todas as notas, todas as dinâmicas. Há partituras que são só texto, outras que são só linhas, pontos, sinais mais e menos. Há muitas maneiras diferentes de pensar a notação". Um mapa com tudo em aberto, como o percurso de Zeena.