Roberto Saviano: Marcado para morrer

Foto

"Nasci em terra de camorra, no lugar com mais mortes por assassinato da Europa...". A frase está no final de "Gomorra", o inesperado "best-seller" do italiano Roberto Saviano, mas podia ser o princípio da história. A história de um homem que um dia decidiu escrever um livro a contar o que via desde pequeno, as mortes, os negócios sujos, as guerras de clãs, o cheiro a sangue empapado com serradura, os rapazes que desde que nascem sonham em ser "boss", que crescem com uma pistola na mão e que já sabem como preferem morrer - com um tiro na nuca, de preferência, porque é a maneira de não descarregarem a bexiga ou os intestinos frente à curiosidade mórbida dos outros.

Saviano - que viu pela primeira vez um "morto assassinado" aos 13 anos - conhecia tudo isto por dentro e quis denunciar. Hoje vive protegido por vários guarda-costas, ameaçado de morte, limitado nas suas viagens (foi por isso que, ao contrário do previsto, não chegou a vir a Portugal para a promoção do livro, que a Caderno acaba de lançar em português). Mas "Gomorra" vendeu só em Itália um milhão de exemplares, está traduzido em mais de quarenta países, foi adaptado ao cinema, e o filme, realizado por Matteo Garrone, venceu o Prémio do Júri do Festival de Cannes.

"Gomorra" mudou a vida a Saviano - para o bem e para o mal. "Ninguém podia imaginar um impacto semelhante", confessa ao Ípsilon numa entrevista por email (traduzida do italiano por Carlos Aboim de Brito, também tradutor do livro). "Foi inaudito, sobretudo para um livro sobre a camorra [máfia napolitana], que sempre foi considerada um fenómeno menor, algo que interessava apenas a uns poucos estudiosos e cronistas locais". Saviano já tinha escrito sobre a camorra artigos, reportagens, crónicas. Sonhava escrever livros, mas ainda não se atrevera a dar esse passo. "Era natural que me estreasse como escritor com um livro que conjugasse a minha paixão pela literatura com aquele que é desde sempre o meu tema e talvez a minha obsessão". Não esperava que o livro tivesse "consequências graves". "A máfia e a camorra não se incomodam que se escreva algo de crítico sobre elas, o que consideram intolerável é a atenção, a excessiva atenção que caiu sobre elas. Porque interfere com os seus negócios, que têm necessidade de se desenrolar na sombra". Ou seja - e Saviano não se cansa de repetir isto - o que preocupa os "boss" não é o livro, é haver tanta gente a lê-lo. "O meu livro tornou-se perigoso para mim e para eles porque houve todos esses leitores que decidiram querer saber. E como podem bloquear todas essas pessoas que escolhem livremente o que querem ler?".

Nanni Moretti de periferia

Não é por acaso que a passagem do filme pelo Festival de Cannes e a boa recepção que aí teve coincidiram com novas ameaças que levaram ao cancelamento das "tournées" de promoção do livro pela Europa. Os negócios sujos da camorra apareciam em tamanho grande ecrã num dos mais importantes festivais de cinema do mundo, e avançam agora para as salas de cinema de vários países. O sucesso, e tudo o que veio atrás, fizeram com que Saviano deixasse de ser uma espécie de Nanni Moretti da periferia, passeando-se de Vespa pelas lixeiras onde a camorra despeja toneladas de lixo (muito dele tóxico), e passasse a ser um homem com uma sentença de morte sobre a cabeça.

Não foi com a frase do início deste texto que Saviano começou o seu livro, mas foi com uma imagem que, ao longo de toda a leitura, nunca mais nos sai da cabeça: um contentor levantado por uma grua no porto de Nápoles, as portas a abrirem-se por acidente e, de repente, uma chuva de corpos a cair. "Pareciam manequins. Mas em terra as cabeças rachavam- se como se fossem crânios verdadeiros.

E eram crânios. Saíam dos contentores homens e mulheres. Também alguns rapazes. Mortos. Congelados, todos juntos, uns em cima dos outros. Em fila, apertados como sardinhas em lata. Eram os chineses que nunca morrem. Os eternos que passam os documentos uns aos outros. Tinham acabado aqui".

Os chineses "que nunca morrem" - um dos mitos nas sociedades ocidentais onde esta comunidade tem crescido de forma imparável - tinham poupado dinheiro para poderem ser enterrados na sua cidade na China. Pagavam aos mafiosos para garantirem um espaço no contentor e uma viagem de volta à China. Acabam como uma entre as muitas mercadorias que passam pelo porto de Nápoles, num movimento constante e silencioso, como se, na verdade, nunca tivessem passado por ali. Só mais tarde no livro de Saviano vamos encontrar os "padrinhos", os ajustes de contas, os cadáveres baleados na rua, expostos aos olhos dos que passam. No início só há um aprendiz de "padrinho" - e é chinês. Xian Zhu chama-se esta personagem, mas para facilitar as coisas, como todos os mafiosos chineses em Itália, adoptou um nome italiano, neste caso o de Nino.

É a trabalhar para Xian/Nino que Saviano entra no submundo do porto de Nápoles. Os números são avassaladores. "Hoje, descarregam-se em Nápoles quase exclusivamente mercadorias da China, 1 600 000 toneladas. As registadas. Pelo menos outro milhão passa sem deixar vestígio. Só no porto de Nápoles, segundo a Agência das Alfândegas, 60 por cento da mercadoria foge ao controlo da alfândega, 20 por cento das guias não são verificadas e há cinquenta mil contrafacções: 99 por cento é de proveniência chinesa e calculam-se 200 milhões de euros de taxas evadidas por trimestre".

Mundo paralelo e invisível

Saviano depressa percebeu como funcionava este mundo paralelo, invisível aos olhos de quase todos. Alugou um quartinho num condomínio- dormitório no porto da cidade. Não pagava renda, mas tinha que trabalhar todos os fins-desemana nas casas-armazém. Era um trabalho de formigas, destruindo sistematicamente o interior dos edifícios para arranjar espaço para as mercadorias clandestinas. Tendo conquistado a confiança de Xian, depressa foi convidado para outro trabalho, este em alto mar, a descarregar os pacotes que iam encher os edifícios vazios. "[...] impera um silêncio de fábrica mecanizada. Parece que já não há ninguém no porto, os contentores, os navios e os camiões parecem movimentar-se animados por um perpétuo movimento. Uma velocidade sem barulho".

Nápoles, a "terra da camorra", é uma terra de silêncio. Ninguém vê nada. Ninguém fala de nada. Um dia, conta Saviano, em Agosto de 2003, chegaram à localidade de Mondragone dois "killer" em grandes motas. Vieram para matar Giuseppe Mancone, conhecido como "Rambo", que estava, naquele momento, no Roxy Bar. À porta estava um grupo de raparigas que, assim que os viram chegar, atiraram-se para o chão. Mas uma "não baixou o olhar". Atreveu-se a encarar os assassinos de frente e - crime imperdoável em "terra da Camorra" - atreveu-se a falar, a quebrar a célebre lei da "omertá", do silêncio. A partir daí "é como se um fio se tivesse enredado num gancho e toda a sua existência se fosse desfiando juntamente com a concretização do seu corajoso testemunho".

Perdeu o noivo, o trabalho, parte da família afastou-se "e uma solidão abissal caiu-lhe sobre as costas". Uma solidão que "explode violenta no quotidiano", com "telemóveis que soam no vazio e amigos que lentamente se afastam até que deixam de se fazer ouvir". Roberto Saviano sabia disso. Mesmo assim decidiu escrever o livro. Conhecia aquele mundo. Não é um jornalista infiltrado, é alguém que nasceu ali, cujo estômago se enrolou muitas vezes com os cheiros e as imagens dos corpos mortos, é alguém a quem o pai ensinou o "catecismo": "Robbe, o que é um homem sem licenciatura e com uma pistola? - Um parvo com uma pistola. - Bravo. O que é um homem com uma licenciatura e sem pistola? - Um parvo com licenciatura... - Bravo. O que é um homem com uma licenciatura e uma pistola? - Um homem, papá! - Bravo, Robertino!".

Não é um mundo a branco e preto, com os bons de um lado e os maus do outro. É mais complicado do que isso, explica Saviano ao Ípsilon. "Há muita gente de bem, de todos os tipos e classes, que se mantém à distância ou procura criar algo de alternativo. E também há as zonas difusas, cinzentas, e há quem esteja de certo modo dentro mas que tem a possibilidade de ver o que isso implica". Perante a realidade que vivia, nunca se sentiu "do outro lado". "Procurei contar o que conhecia, por dentro, mostrando também o fascínio daquele mundo".

Porque nasceu ali, Saviano era um rosto como os outros a trabalhar no porto de Nápoles ou a ir com Xian/ Nino aos leilões onde donos de fábricas clandestinas das quais depende a economia de regiões inteiras oferecem os seus serviços - quem conseguir entregar mais peças em menos tempo, com garantias de qualidade, vence; os outros participam na "corrida" e se perdem ficam pelo menos com os tecidos.

O fato de Angelina Jolie

Conheceu aí Pasquale, o costureiro que "quando falava dos tecidos parecia um profeta", o homem com mãos de ouro que "trabalhava em peças e desenhos expedidos directamente pelos estilistas", o artista a quem confiavam até o fato de calças e casaco de cetim branco que Angelina Jolie vestiu numa noite de Óscares. E viu como a Pasquale não restava mais do que andar escondido no porta-bagagens do carro de Xian para, às escondidas, ser levado para os barracões onde funcionam microfábricas chinesas e aí ensinar o que sabia aos operários chineses que, pouco a pouco, se vão especializando na alta costura. E mergulhar cada vez mais fundo na frustração de não poder dizer a ninguém que aquele fato - sim, o que Angelina Jolie usa naquela foto de um velho recorte de jornal que ele traz sempre na carteira - fora feito por ele em Arzano, uma das terras esquecidas por Deus no Sul de Itália.

Ao contrário dos jornalistas - que aparecem todos ao mesmo tempo quando as coisas aquecem demasiado, para cobrir uma das mais violentas guerras da camorra, entre os clãs de Secondigliano, em 2004 - Saviano estava sempre lá. Via como os mafiosos testavam heroína "cortada" em toxicodependentes que mal se aguentavam em pé, como os abandonavam a morrer no pó quando a droga não era boa, como preparam miúdos cada vez mais novos para serem pequenos "boss" - como Tonino Kit Kat, com o peito cheio de nódas negras por causa do impacto dos tiros que recebeu sobre o colete anti-balas ("para ensinar a não ter medo das armas mandavam vestir o colete aos miúdos e depois disparavam sobre eles").

Mas este não é apenas o retrato da camorra napolitana. É muito mais do que isso. É o retrato do mundo. "Se as pessoas percebessem que as máfias são um fenómeno não só italiano mas global, que estabelecem umas com as outras relações complexas, talvez já tivéssemos dado um passo em frente na possibilidade de agir contra elas", diz-nos Saviano, lamentando que se continue a combater este fenómeno com "instrumentos policiais e jurídicos estritamente nacionais". Era preciso coordenação internacional e ir para além das detenções e sentenças, criando "uma legislação que soubesse atingir os seus interesses económicos, os seus investimentos produtivos e de capitais".

O sucesso do livro leva-o a manter a esperança de que seja possível combater o "Polvo". "As máfias existem e tornam-se cada vez mais poderosas porque há uma infinidade de gente que tem conveniência em consumir os produtos e os serviços que as máfias oferecem: porque elas produzem, constroem, distribuem, reciclam resíduos a preços mais concorrenciais". E isto acontece em Itália e no Sul, mas não só. Acontece também no Norte, "na Holanda, na Alemanha, em Espanha, no Leste da Europa". "Gomorra" não é um exótico fenómeno da Itália pobre. "Parece uma realidade paralela, escandalosa para um país europeu, mas é a mesma realidade em que vocês vivem também", garante Saviano. Sermos capazes de nos indignarmos e de reagirmos é, para ele, um seguro de vida. E ele acredita que isso é possível. "Sempre acreditei que a palavra possui um poder capaz de se opor a um poder muito mais agressivo, feroz e forte. Não acredito num mundo totalmente maldito ou condenado, ainda que aquilo que descrevo por vezes se assemelhe bastante a um inferno e eu não tenha receitas para o salvar".

Sugerir correcção
Comentar