Os avisos na praia são como no filme: “Perigo — área sujeita a ataque de tubarão.” Tudo é como no filme: o céu cheio de torres, os guindastes de novas torres, as grades no passeio, no portão, na porta de baixo, na porta de cima, até à casa de Kleber Mendonça Filho, que é a própria casa do filme, porque o filme é sobre tudo isso, a casa, cercada pela cidade, cercada pelo medo do que não tem aviso.
O filme chama-se O Som ao Redor, estreou em Dezembro numa sala de Lisboa, saiu logo. Difícil de compreender. Nenhum filme brasileiro recente circulou com tanto reconhecimento, prémios nacionais e internacionais. Mas talvez essas centenas (dezenas?) que o viram em Portugal se lembrem da mulher que no filme mora nesta casa, uma jovem mãe de dois pré-adolescentes, continuamente à beira de um ataque por causa de um cão que não pára de ladrar. É um dos muitos sons ao redor, latidos que vêm do vizinho, bolas que batem no pátio, skates, bicicletas, patins, vozes. Bia, essa mulher (pele à flor da pele da actriz Maeve Jinkings), sopra o fumo da maconha para o tubo do aspirador, masturba-se com a centrifugação da máquina de lavar, mais dois sons ao redor. E à noite podemos vê-la sentada aqui, nesta cozinha-sala do bairro de Setúbal, junto à orla do Recife, capital de Pernambuco, exactamente onde dormita agora um dos bebés de Kleber.
Aos 45 anos, este realizador, durante muito tempo crítico e ainda programador, está a ser pai pela primeira vez, logo de gémeos. Marcou com o Ípsilon de manhã porque de qualquer forma acorda cedíssimo. Mas não parece cansado, menos ainda à beira de um ataque. Tudo em Kleber é quase fleumático, corpo, rosto, fala, o oposto do cineasta pernambucano nocturno, boémio, visceral, de que Cláudio Assis (autor de A Febre do Rato, premiado em Portugal) será o grande exemplo.
De resto, Kleber e Claúdio são amigos e partilham o mesmo actor como protagonista, Irandhir Santos. “O Irandhir saiu sábado à noite de O Som ao Redor e na segunda estava fazendo A Febre do Rato”, conta Kleber.
Há algo de família nisto. “Bródagem, véio...”, diria qualquer filho do mangue beat, o som de Pernambuco que ganhou o Brasil e não só nos anos 90. Os filhos disso estão com 20 e tal, mas tratam-se por véio e são bróderes de um fazer o disco do outro, que fez o som do que fez o vídeo.
Também pernambucano, Irandhir protagoniza ainda Tatuagem, o mais recente acontecimento vindo do Recife. Personagem após personagem — um segurança em O Som ao Redor, um poeta libertário em A Febre do Rato, um encenador homossexual em Tatuagem —, dá vontade de dizer que é o grande actor brasileiro da sua geração. É certamente um dos rostos da pergunta: afinal, o que é que Pernambuco tem? Depois da música, agora o cinema. Subitamente, os filmes mais interessantes parecem vir quase todos desta central eléctrica cheia de carros, torres e pontes, a meio caminho entre o estaleiro e a ruína, dois rios e o mar: Recife, quinta cidade mais violenta do Brasil, 47,8 homicídios por 100 mil habitantes, mais do dobro da média nacional.
Se O Som ao Redor é um filme sobre a classe média brasileira, é antes de mais um filme sobre o medo dessa classe média. Medo do pobre, do preto, do descendente de escravo dos engenhos de açúcar que fizeram a fortuna de Pernambuco, e também estão no filme, literalmente enquanto sangue de família. Nesse sentido, é um filme sobre agora porque é um filme sobre o desfecho da história do Brasil. E desde que Kleber filmou já se vêem mais torres novas desta varanda, no piso de cima do apartamento, onde o computador está aberto no Facebook.
Sim, há uma efervescência aqui, que para Kleber começa mesmo na música. “O que aconteceu no Recife nos anos 90 foi como Seattle nos anos 90, Manchester nos anos 80. Eu cresci nos anos 80 importando música, cinema, TV. E de repente, nos anos 90, principalmente com o Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, estávamos exportando. O que a gente tinha era admirado lá fora, Nova Iorque, Le Monde, Folha de S. Paulo. Eu ia para o show do Nação Zumbi e ficava dizendo: ‘É um dos melhores shows da minha vida, como Prince.’Isso criou uma auto-estima.” No pano de fundo “arcaico, patriarcal” que é Pernambuco. “A gente teve 300 anos de monocultura de cana do açúcar. Surge naturalmente um desejo de ir contra isso. A arte vai sempre contra aquilo que te irrita, vem muito dessa resistência, desse antídoto.”
Os descendentes dos senhores de engenho, do dinheiro antigo, são uma espécie de “aristocracia” pernambucana, diz Kleber. Mas, ao contrário do que acontece noutros lugares do Brasil, “muitos são de esquerda”, com apego à cultura. “O engenho onde a gente filmou é de uma família de artistas.” Isto, para sublinhar: “Sempre houve uma tendência para valorizar a cultura aqui. Teve o Movimento do Cinema Silencioso, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto...”
Ao mesmo tempo, o racismo está “arreigado”. Não vem de um ódio, mas do “adestramento”, “da falta de educação e de uma resignação católica”, em que o próprio negro se acha feio, alisa o cabelo. Kleber cita uma curta recente, Casa Forte, de Rodrigo Almeida. “Ele filma umas 50 fachadas em Casa Forte, um bairro aristocrático, com muito da história do Recife, e todas têm nomes que remetem à escravidão: Empresarial Pelourinho, Condomínio Colonial, Senzala... O Brasil é um país racista, mas essa região de Pernambuco está um grau acima. Aqui, é como se a escravidão tivesse sido abolida há 50 anos. E o que Rodrigo faz é um ensaio sobre como ele, homem gay, tenta lidar com o fascínio do homem negro, quase como um objecto de consumo.” Kleber diz que não consegue “imaginar um filme carioca que tenha essa intimidade” com a questão.
E isso faz parte do que este lugar gera. “Pernambuco é espectacularmente contraditório. Ao me irritar me estimula. Não me interessaria um filme onde tudo é ruim. Francisco [o velho senhor de engenho em O Som ao Redor] é um grande filho da puta e um grande avô, muito carinhoso. Ele está reflectindo uma série de modelos históricos quando recebe os dois homens na cozinha [candidatos a fazerem a segurança do quarteirão] e se dirige ao menos preto [Irandhir Santos]. Pernambuco é arcaico e cosmopolita. E o cosmopolita aqui é muito natural.”
O que se reflecte nos filmes. Por exemplo, Tatuagem, que é um filme gay de época, passado na ditadura. “Essas pessoas existem, esse lugar existe. Gostando ou não, as pessoas sabem do que estão falando.” De resto, para quem vem do Rio de Janeiro e vê um par de rapazes a namorar no forte de Olinda, depois namoradas de mão dada no calçadão aqui perto, Recife parece mais abertamente gay. Kleber confirma, com uma ressalva: “Recife é muito gay, tenho vários amigos que se sentem mais à vontade aqui, o que não significa que não haja muita homofobia.”
Tudo parece em convulsão, estruturas a serem mexidas, o que fisicamente corresponde ao momento da cidade. “Está uma bagunça. Num lugar onde entra muito dinheiro, e não existe um treinamento social para o investir, ele acaba por ser usado de forma estranha. Por exemplo, a ideia maluca de o governo construir quatro viadutos numa rua importante. Houve uma reacção muito forte de um grupo chamado Direitos Urbanos, e ele [o governador Eduardo Campos, pré-candidato à presidência do Brasil, na eleição que se disputa em Outubro] voltou atrás.”
Outro caso que domina as conversas no Recife é o Cais Estelita, uma orla de rio com uma fabulosa sequência de armazéns. “Vale milhões e milhões de euros e foi comprado por quatro milhões de reais, o preço de um apartamento na Vieira Souto [Ipanema, Rio de Janeiro], para construírem 14 torres de 40 andares. É como se não existisse Internet e as pessoas não viajassem para outras cidades. Ali podia ser uma grande área voltada para cidade, com uma escala humana.”
Não é caso único. “O Recife vai sendo loteado e vendido da maneira mais selvagem. Está controlado pela iniciativa privada, e o governo e a prefeitura não estão fazendo nada.” Kleber teve uma epifania numa véspera de Natal em que levou 2h40 do centro até aqui. “Percebi que a cidade inteira estava indo para o shopping. Os donos dos shoppings conseguiram criar um clima de pavor em relação a estar na rua. Então, os shoppings têm ruas, praças, um até tem sobrados [casarões] coloniais. Tentam simular uma cidade onde tudo o que você faz você paga. A cidade é ensinada a não querer estar na própria cidade.”
Como em todo o lado, os cinemas migraram para os shoppings. Não o S. Luiz, que Kleber ajuda a programar na Aurora, uma bela rua ribeirinha, boémia nas traseiras. E quando fez um ciclo Kubrick lá, “a fila dava a volta ao quarteirão”, contrariando a ideia de que as pessoas não vão em coisas de rua. “O Cláudio fez uma sessão d’A Febre do Rato no centro da cidade e teve mais de 600 pessoas. São acções de resistência.”
Outro exemplo, o Som na Rural, um carro antigo que pára na rua, improvisa concertos e de repente tem “3000 pessoas num lugar que estaria deserto”. Tudo isto combate o que Kleber chama “o encastelamento”. Que seriam as torres do Cais Estelita se não 14 castelos? “A grande luta é por um Recife com menos medo do outro, menos grades, menos sistemas de segurança, isso que está no meu filme.”
E o medo já diminuiu, em comparação, por exemplo, com a Bahia. “No centro histórico de Salvador eu me lembrei de filmes de zumbi. Está muito difícil.” Sempre houve uma rivalidade Bahia-Pernambuco, e da Bahia veio grande cultura brasileira. Agora, do que toda a gente fala é de Salvador estar a cair aos bocados, mais perigoso que nunca.
Entretanto, com todos os problemas, e toda a especulação privada, o cinema no Recife nunca passou tão bem. Já vinha a ser construído “há uns 15 anos”, situa Kleber. Mas Eduardo Campos deu um passo decisivo, “chamou todos os realizadores” quando chegou ao governo, no começo de 2008. “E foi criado um edital [concurso] muito sólido com 11 milhões de reais por ano para o cinema pernambucano.” São 3, 4 milhões de euros, só para a produção de um estado. “Eu sei que a situação em Portugal é tétrica, fico imaginando a diferença. Então ele [Campos] merece todo o crédito por isso. Claro que alguns interpretam esse gesto como marqueteiro. É inevitável que haja essas duas visões, mas os frutos estão vindo, é facto.” E isso não é só dinheiro: “Os filmes podem não dar certo, acho um milagre que dêem. O nível de acerto é muito grande aqui.”
E o nível de protesto é muito baixo. Foi mínimo quando as ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou Belo Horizonte se encheram, em Junho de 2013. “Não tenho resposta para isso. Foi muito estranho aqui, muito sem graça. Não tinha raiva suficiente, acho.”
É verdade que um apartamento neste prédio se aluga por algo entre 700 e 1000 reais, o que no Rio de Janeiro não dá para nem para um quarto num bairro mais modesto. Mas o trânsito do Recife não deve nada ao do Rio.
Descemos à rua. No muro do pátio um vizinho insistiu em pôr ferros pontiagudos. Adiante, uma casa sobrevive sem muro e sem grade. Kleber pára a elogiar a resistência da dona. Até que o porteiro em frente anuncia: vem aí um muro.
No estúdio da Aurora
O rio Capibaribe está seda. Nuvens verticais, como se alguém tivesse soprado fumo só para dar drama ao céu. Bom caminhar ao longo da rua Aurora, casarões que ainda sobram, alguns com graffiti, lemas de revolta, ao longe arranha-céus. Só falta gente a caminhar. Ninguém, ninguém.
Predinho antigo numa esquina. No segundo andar fica o estúdio onde JuveNil Silva grava o novo álbum. Tropeça-se no nome de JuveNil logo à primeira pesquisa sobre a cena nova no Recife. E não é difícil achá-lo, coisa de minutos com mensagem de Facebook. Marcámos à porta, ele é pontual, já sorrindo debaixo do chapéu de malandro. Um malandro dos anos 40, que adora música dos anos 60-70, que faz música em 2014 e tem 28 anos. Um cavalheiro.
Subimos as escadas. Cartazes retrô na parede: Jimi Hendrix, Pink Floyd, Stanley Kubrick, Miles Davis, John Coltrane, Johnny Cash, revistas alternativas do Recife. JuveNil cai num puf, pega num violão. Carlitos, o dono do estúdio, pede licença para um baseado. A conversa rola. “Tem de falar da Desbunda, véio...” Um dos festivais que esta geração faz no mato. É assim, escolhem um lugar, vão. Entre 300 a 500 pessoas de público. Mais pop é o Rec Bit, no Carnaval. JuveNil escalado para a primeira semana de Março, com outros representantes da Cena Beto.
Cena Beto? “O nome foi tipo uma trolagem, tiração de onda, brincadeira”, explica ele. “Não é um colectivo, porque colectivo tem muita regra. A gente é um bocado amigo, de beber junto, trocar ideia, um toca no disco do outro: ‘Tou sem guitarrista, véio...’” Com imprensa, virou Cena. Aí o jornalista perguntou: qual é o nome da Cena? “E a gente: ‘Bota João, bota Pedro, bota Beto.’ Então não significa nada, é um nome. Tem músicos e caras do vídeo que começaram gravando os músicos.” Como tem o Colectivo da Ostra Monstra, a Vício Clips, a Jacaré, que produz o Festival Pai da Mata, com música, vídeo e teatro. Tudo gente entre os 20 e os 40.
Alguns cruzam-se neste estúdio. “Venho aqui, a galera está gravando jazz, funk, heavy metal, Olinda style, pós-mangue...”
Veio de longe, criado num bairro mais para o interior, Areias, embrião da Cena Beto. “Comecei ouvindo brega, Jovem Guarda... Meu pai se vestia de colorido, ia para a gafieira, boemia, dia de sábado.” Pai solteiro, avós, casa grande cheia de família, “entre bêbados e evangélicos, o sagrado e o profano”, lembra. Um dia, numas férias, revelação: “Vi a capa do Help.” Depois, tinha ele 14 anos, o pai “comprou um violãozinho de 10 reais”. Aí já todo o mundo em Areias tocava violão, Beatles, Stones, Raul Seixas (“o” rocker brasileiro).
Segue-se: “Belchior [dito o Dylan brasileiro], pessoal do Ceará, Vanguarda Paulista [Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé], tropicalistas, Jards Macalé, Bob Dylan, Keith Richards, Pete Townshend...” Quanto a livros, Kerouac, Bukowski, sim, mas também o Livro do Desassossego: “Eu pirei!” O que o leva a falar como se já tivesse tido outra vida, apesar de serem só 28 anos: “Eu lia muito quando eu era um semideus, um vagabundo. O cara vai no bar, ou toma cachaça ou fica lendo. Eu lia livros colossais, género Assim Falava Zaratustra. Comprava num sebo, ou roubava, ou pedia emprestado. Todos os livros de Jorge Mautner, como Mitologia do Kaos. Era Dionísio com sexo, com rock’n’roll, aquilo me arrebatou, deu um nó na minha cabeça. Eu tinha 18 anos. Aí comecei a compor pra caralho.”
Até hoje Mautner enfeitiça quem o ouça, espécie de Messias. JuveNil conheceu-o em Olinda, a cidadezinha-croché colada ao Recife. Estava também o guitarrista e compositor Nelson Jacobina (que escreveu com Mautner Maracatu Atômico, um hit na versão de Chico Science, nos anos 90). “A gente ficou fumando unzinhos em Olinda. Aí eu disse: ‘Jorge, está chovendo...’ E ele: ‘Que bom!’ E falou uma poesia pra chuva.” O Mautner foi um poeta que virou minha cabeça.”
Carlitos e JuveNil circulam o baseado, falam do Iraque, de irmos no Iraque. O Iraque? “É uma casa disfarçada de bar, um bar disfarçado de casa, todo o mundo tá lá directo.” O point, numa rua aqui por trás da Aurora. “ A cena que tá rolando aqui não se resume só a música, tá ligada? Não é só o estúdio, é o lugar da boemia, os festivais. O Desbunda não tem apoio de ninguém, a gente toca de graça, aluga um som, ingresso era cinco reais, ficou 10, dá só pra pagar o som, o táxi da galera.”
E o disco novo? “Vai chamar: Superqualquer no Meio de Lugar Nenhum. É um álbum que começa de manhã cedinho e vai até à noite, dei horas pras música.” Um Ulisses da Cena Beto? JuveNil gosta da ideia. “Li o Ulisses por teimosia. Não entendi, não.” Mas também deu um nó na cabeça dele.
Nisto, já estamos dentro de uma das cabines, a ouvir Ciranda, faixa do álbum: baixo, bateria, guitarra, guitarra de 12 cordas. Falta a voz. “Muita gente vai cantar nesse disco.”
Entra um gigante de barbas Hamas, versão mulata: o baixista Vinicius. “Foi ele quem me deu a dica de botar a guitarra de 12 cordas”, diz JuveNil. Já são três na cabine. Vamos lá ao Recife. Porquê o Recife? Por que tudo isso aqui?
JUVENIL — Porque o pessoal é inspirado.
VINICIUS — Porque a cidade é fodida mesmo. Vai ao meio-dia no banco: trânsito impossível, rua com buraco, sujidade. E agora todo o mundo tem carro.
JUVENIL — Bicicleta é lazerzinho de fim de semana. A galera que precisa mesmo não tem ciclovia nem calçada. Tanta agonia no dia a dia, tanto caos, faz com que a gente queira dialogar com o caos.
VINICIUS — Teve uma época, com o mangue beat, que aceitava a cidade. Mas a gente bate de frente.
JUVENIL — Total. Esse disco fala disso. Eu pegava muito ônibus, andava muito pela cidade. A cidade tem partes carnavalescas e hostis. O pessoal está entre o caos e o Carnaval.
VINICIUS — Que também é um caos.
JUVENIL — O cara do meu disco não tem noção de nada, ele só quer se apaixonar, só quer gozar.
VINICIUS — A gente tem um monte de teatro e cinema abandonado. O estado é quem investe mais em cultura mas muita coisa não é aproveitada.
Que acham de Eduardo Campos, o governador?
JUVENIL — O maior atraso. Tudo isso tem a ver com ele. Quem manda aqui é o Dudu. A gente está vivendo essa era das torres empresariais no Cais Estelita. A gente fez um bocado de ocupação.
VINICIUS — Mas a gente só sabe de uma ponta do iceberg. Ele deu um grau na economia do estado que eu acho razoável, construiu pra caralho.
Vinicius também tem um disco para lançar com os Pé Preto. Ouvimos na cabine: grande som, Fela Kuti no Recife.
Cláudio depois e antes de jantar
De volta ao cinema. A um filme de Cláudio Assis, mesmo. A repórter foi para Olinda, onde está a pernoitar. O fotógrafo Nelson Garrido foi a casa de Cláudio fotografá-lo, porque no dia seguinte, à hora a que a entrevista com Cláudio está marcada, Nelson tem outro compromisso. Hora e meia depois o telefone toca: Cláudio diz que está a caminho de Olinda com Nelson, que vêm beber uns copos. A repórter sai, desce à zona dos bares, é pré-Carnaval, de modo que Olinda está na rua. E lá está Claúdio, já depois de vários copos, a falar com toda a gente: abraça, discute, senta, levanta, brinda. Tem um boné e uma t-shirt com um esqueleto. Podia ser o poeta d’A Febre do Rato, numa cena agora a cores. Sumptuoso preto-e-branco, o do filme, para um retrato da danação do Recife. O grande casal é um coveiro e uma transsexual. A grande cena de amor é num barco à noite, quando a garota urina para fora e o poeta toca a cachoeira. O grande travelling é sob as pontes do Recife, à maneira de uma Paris ou uma Veneza, desembocando em favelas podres. Um filme desvairado, apocalíptico, cheio de alegria contra a morte. Não dá é para falar esta noite sobre isso, os copos ganham.
Reencontro no dia seguinte, antes de jantar, nas traseiras da rua Aurora, junto ao bar Central e ao Iraque (que estava fechado quando a repórter lá foi com JuveNil). Cláudio, 53 anos, pai de dois filhos, está com a namorada, Camila, também sua produtora. A esta hora, um homem doce, de rasgo repentino.
Começa por citar o seu compadre Xico Sá, cronista, escritor pernambucano de adopção, autor do romance “Big Jato”, que Cláudio vai adaptar. “O Xico Sá já dizia, a cidade só cresce, o de cima sobe, o de baixo desce. Hoje mais do que nunca. Porque o poder económico é uma ferida, uma desgraça, um rolo compressor.”
É apesar disto que Recife dá tanto ao Brasil, diz Cláudio. “É um celeiro de pessoas. Você vai de ponta a ponta e encontra expressões culturais. Outra coisa é o empresário que só quer ganhar. Quando a gente hoje tem um edital [como o do cinema], é uma conquista, não cai do céu. Porquê? Porque Pernambuco, mesmo antes dos anos 30, já era um celeiro: cinema mudo, super oito, curtas. E agora todos os filmes estão em festivais.” Desfila as obras dos conterrâneos, cheio de orgulho. “A gente não copia ninguém, a gente não quer ser igual. A gente se ajuda uns aos outros, mas não é igual. Muito menos é Hollywood. A gente faz um cinema com atitude. A gente só vem ao mundo uma vez e tem de contribuir para um olhar. Por que veio ao mundo? Para nada? Para ser um transeunte? Isso não sou eu.”
Porque as manifestações foram fracas no Recife? “Por isso, porque eles lá [Rio, São Paulo] não têm isto, não estão a fazer nada. Cadê o cinema de São Paulo? De Porto Alegre? Eles têm os rolezinhos dos shoppings, nós temos cultura. O ser humano tem inquietude, se se acomoda, pára. Lá é besteira, é só comédia. Eu só acredito em cinema que pensa. E esse cinema do eixo Rio-São Paulo é faz-de-conta, de caça-níquel. Por isso que tem rolezinho e passeata.” Ou seja, manfestação. “Aqui tem maracatu, mangue beat. Sexta teve o aniversário do Som na Rural, 2000 pessoas aqui na rua e não tinha bebida. Nós estamos ocupados com a cultura. Você vai na mata norte, na mata sul, tem festival de rock. É a ocupação do juízo, se não o diabo toma conta. Se você der cultura aos jovens, eles não vão fazer rolezinho de shopping.” É isso que os governantes do Brasil não estão vendo, diz Cláudio. “São burros, não percebem que o ser humano vive de um lazer que faz crescer. Estamos fadados ao fracasso. O Brasil não conhece o Brasil.”
Cláudio está a fazer uma série sobre artistas plásticos. O próxima longa é que será a adaptação de Big Jato. Isso quer dizer, explica ele, um filme sobre “a igualdade entre seres humanos, pessoas que são diferentes mas são iguais”. Há um Abel, um Caim, e no meio uma criança chamada Francisco. “É o Xico [Sá] e é o meu filho Francisco, afilhado dele, de nove anos. Ele vai ser o actor. A gente está brigando porque tem de fazer um teste de elenco.” É bisneto de Vinicius de Moraes, este jovem Francisco.
Cláudio conheceu Xico roubando livros. Xico trabalhava numa livraria, Cláudio roubava. “Ele ajudava a roubar. Aí falei para o dono: ‘Tarcísio, estou roubando teus livros.’ Ele riu. Eu roubava Maiakóvski, Gorki. Acreditava muito na revolução. Os livros de Jorge Amado, comprei com maconha a um amigo.” Agora sabe que a revolução não virá do cinema, e ainda assim é preciso fazer. E aqui. “Morei nove anos no Rio mas voltei, porque aqui não acabou a fonte. Não secou.”
Antes de se ir embora conta que uma grande amiga lhe ligou triste, queria se matar. “A gente é que escolhe, eu disse. A tristeza faz parte, a gente só tem de pegar ela bem pouquinho porque ela é ruim. Mas somos nós que escolhemos.”